Crise? Que crise?

3/27? 2/28? Que raios vem a ser isso? Isso, meus caros, é o estopim da crise atual. A forma das hipotecas americanas. Todos sabem que os norte-americanos compram suas casas através de hipotecas. Baratas, dizem alguns. Mas não é bem assim. A mecânica da operação da, por exemplo, 3 por 27 é a seguinte: durante os 3 primeiros anos o mutuário paga uma prestação mínima, com juros fixos. Findo esse triênio, calcula-se a prestação real, agora com juros variáveis, de mercado. Como durante o triênio inicial pagou-se muito pouco, praticamente o valor da divida original se manteve. O que o cara pagou foi, digamos, um "aluguel" da hipoteca. Sem amortização nenhuma do principal. Assim, o capital integral é agora dividido pelos 27 anos restantes e acrescido dos juros. E a porrada pega bem no meio do queixo. Melhor, bem na carteira, sabidamente a parte mais sensível do corpo humano. O que era um compromisso mensal de 100 vira, chutando, 450! Eita porra! Isso eu não posso pagar! Vou lá falar com o gerente.

I

O Gerente.

Gerentes de banco são sujeitos educados, agradáveis até. A gente até pensa que são humanos, quando tudo corre bem. E o mercado estava favorável, os imóveis valorizando. Assim, o gerente já livrava o mutuário de suas angústias. Não te preocupa, tchê! Prá tudo tem solução, já vai dizendo o gerente de dentro do seu Armani. Olha bem, o mercado de imóveis aqui na doce América está de vento em popa. Tua casa que valia 100 agora vale 180. Assim, fazemos um novo 3/27 de 180, quitamos o anterior e está tudo bem. Salta um cafezinho! Volta prá casa o mutuário todo feliz. Fica igualmente feliz o gerente, que garantiu seu bônus anual.

Passam-se 3 anos. Voltam as angústias. E volta a visita ao gerente. Agora vestindo um Zara. Mesma conversa. Casa de 180 agora vale 300. Levas prá casa ainda 120 limpinhos! E o mutuário sai novamente feliz. Com 120, ainda compra aquele carro importado. Alemão, de preferência. E libera o cartão de crédito da mulher. E financia uma idéia do futuro genro da área de informática. Feliz por estar na América. Viva o capitalismo!

Outros 3 anos e estaciona o Mercedes em frente ao banco. Estranha que o banco está apenas com metade das luzes acesas. E metade dos funcionários. E o cafezinho, antes bem à vista, hoje não está lá. Eita, pensa, esses latinos que o banco contrata não valem nada mesmo. Faltam ao serviço, esquecem de acender as luzes, nem fazer o cafezinho fazem. Mas não é problema dele - americano é individualista - e segue para a mesa do "amigo" gerente. De cara nota que o Zara é o mesmo de 3 anos passados. E está meio puído. Como a face do gerente. Nossa, pensa, como o cara se acabou em 3 anos. Deve beber demais. Ou a mulher o largou. Ou a mulher que o tinha largado voltou, sei lá. Sorridente, vai apertando a mão do gerente e perguntando se o novo 3/27 está pronto para ser assinado. O gerente não responde ao sorriso. Seus olhos azuis, que antes eram simpáticos, lembram agora um glacial enorme. Daqueles de afundar Titanic. E vai dizendo - direto, ao estilo saxão: olha, o banco não quer mais brincar. Tua casa de 300 agora vale 180. A excesso de oferta, os preços desabam. Assim, vamos fazer o cálculo dos 27 para você começar a pagar.

O mutuário descobre, nesse momento, o que é terror. Seu ganho manteve-se estável, mas a manutenção do Mercedes é uma fortuna. O que o cartão de crédito cobra de juros, um roubo. E aquele investimento seguro no futuro genro e na área de informática não deu em nada. Aliás, a filha nem namora mais aquele canalha!

Feitas as contas, o mutuário se descobre agora quebrado. Não existe a menor possibilidade de assumir uma prestação daquele valor. Sem alternativa, devolve o imóvel ao banco, pensando que afinal ninguém precisa mais do que um trailer para morar. O gerente o ameaça com o fogo dos infernos. Mas nada o demove. Toma que o filho -a casa - agora é tua!

II

Lá, em algum lugar da Índia, um contador mal pago faz uma pequena alteração na contabilidade do banco. Que vai influir - e muito - no bônus do gerente. No ativo circulante do banco, sai um contrato de hipoteca de 300 e entra um imóvel de, num pau brabo, 180. 150, se considerar o momento atual e a pressa de vender. E assim desaparecem, do capital do banco, 150. Mas o contador está bastante ocupado. Essa operação tem que ser feita alguns milhares de vezes, visto que vem acontecendo em toda a rede de agências. E o prejuízo de 150 é elevado a n devoluções de imóveis, que cada dia valem menos. O indiano está feliz. Seus serviços serão necessários por mais tempo ainda.

III

The Banker - o banqueiro.

Esse é o cara. Inventa dinheiro. Ganha com o dinheiro dos outros. Aquela hipoteca, a última, de 300, não saiu do bolso dele. Muito menos dos seus cofres. O que ele fez? Simples, quando o cara foi lá negociar a de 300 ele - the banker - emitiu um papel de 280 e vendeu no mercado. Para um mais vivo. The banker opera assim, recebe 300 e resgata seu papel por 280. 20 limpinhos no cofre. Ops! Dinheiro no cofre não dá lucro. E o the banker, com essa sobra de 20 - e outras milhares de sobras - vai transformado esse dinheiro em mais hipotecas de 300. Que vendia aos mais vivos por 280. Numa roda cármica, infinda! Pois os mais vivos vendiam esses papéis por 260 para os vivos. Que os vendiam por 250 ao público em geral.

IV

O Mais Vivo.

Este soube que seu vizinho tinha devolvido a casa ao banco. E que o vizinho do vizinho também. E o outro vizinho igualmente. Ligou para o the banker e disse: Tou fora!

V

O Vivo.

Salvou o que podia e mudou-se para um paraíso fiscal. Afinal, saiu ainda com um belo lucro.

VI

O Público Em Geral.

Esse somente agora descobriu que o rei estava nu. E, além de nu, não tinha nenhuma outra roupa para vestir. E que ele, público em geral, terá que pagar todo um guarda-roupas novo para o rei, para a rainha e para todos os rebentos reais. E vai sair caro...muito caro!