MUNDO CÃO

Na antiguidade multidões dirigiam-se ao teatro para assistir grandes espetáculos. O Coliseu de Roma foi especialmente construído para divertir o grande público e em sua arena cristãos eram jogados aos leões e tigres que devoravam gente. E o povo assistia, o povo delirava!

Depois de muitas exibições o show passou a ficar monótono e os marqueteiros da época convenceram o César de plantão a substituir os famintos leões por escravos musculosos, treinados para combate entre si, até que um dos gladiadores fosse o vencedor. O imperador romano, presente ao estádio lotado e acomodado na tribuna imperial situada no podium dava a ordem suprema de abate do vencido, posicionando seu polegar para baixo. E o povo aplaudia, o povo vibrava!

Após muitos anos e espetáculos fabulosos, a decadência do Império Romano deixou de expor e divertir o povo que ficou privado de seu circo favorito.

As touradas, na Europa e na América trouxeram de volta a alegria da população, sedenta de sangue, que lotavam estádios para ver o esguio toureiro elegantemente vestido espetar certeiramente a fina lâmina de sua espada no coração do touro até que morto é arrastado para fora da arena. E o povo aplaudia, agitando-se num contentamento frenético!

Nos dias atuais não precisamos sair de casa para assistir grandes espetáculos. A Televisão nos presenteia com as cenas mais contagiantes da ocasião. Imagens analógicas tradicionais ou digitais perfeitas em alta definição com recursos dos modernos sistemas de computação brindam nossos olhos no conforto de nossos lares.

E os grandes espetáculos tão ao gosto do povo estão de volta. Recentemente, por dias seguidos acompanhamos o caso dos Nardonis, aquele pai acusado de empurrar a filha de 5 anos pela janela do 6º. andar. A reconstituição do crime, o cenário televisionado, a boneca simbolizando a vítima fizeram o espetáculo tão ao gosto de muitos. E o povo vibrou, o povo estremecia!

Nos últimos dias, novamente as cortinas abriram-se e um jovem apaixonado foi o personagem principal do espetáculo. Rapaz simplório, trabalhador, sem antecedentes criminais, “seqüestrou” a namorada e durante 5 dias a manteve encarcerada, sem quaisquer exigências próprias de verdadeiros seqüestradores, a não ser a de ficar mais alguns momentos ao lado da amada. E a imprensa explorou de todas as formas a potencialidade da nova atração. Assistimos ao vivo o local do crime a quilômetros de distância. Acompanhamos o drama da vítima, enquanto viva, nas suas aparições na janela. Os dias e as noites foram poucos para tanta sensação! Entram em cena os trapalhões uniformizados que tentam subir ao cativeiro com uma escada tão curta que não alcançou a janela do castelo. Grupo anti-seqüestro toma “um baile” do inexperiente seqüestrante. Um deles sobe com a maca enquanto seu companheiro desce carregando a vítima ferida e ele retorna, atarantado, com a maca vazia em baixo do braço. Um médico não consegue chegar ao ferido, pois não foi possível ultrapassar a barreira de soldados formada desordenadamente na escadaria do prédio. E o povo delirava, e os mais próximos corriam para a arena!

Na modernidade a atração, além do visual, conta com comentaristas que no decorrer da representação justificam tudo. Psicólogos, psiquiatras, médicos, advogados, promotores, peritos, técnicos, e inúmeros profissionais dão suas opiniões, suas previsões, diagnósticos, etc. tudo para enfeitar e glorificar a cena e o espetáculo. E os espectadores deliravam!

Aproxima-se o desfecho de uma história de amor com fim trágico, pois o rapaz mata a sua amada, não com um punhal como fez o enciumado Otelo, o Mouro de Veneza, quando matou sua Desdêmona na tragédia de Shakespeare, mas com um tiro na cabeça da jovem Eloá.

Fecham-se as cortinas do espetáculo e reabrem logo a seguir para apresentar os atores do drama. Uma multidão, em fila indiana contorna o caixão branco da morta sem olhar para ela, mas sim para a abundância de repórteres que registravam o velório. Oficiais da corporação declaram o êxito da missão. Em entrevista, o assassino é exposto a uma emissora de TV que alardeia insistentemente a exclusividade do fato. Nu, humilhado, com o rosto inchado, hematomas nos olhos e orelhas, falando desordenadamente é a própria imagem do lutador vencido e espancado impiedosamente pelo adversário trapalhão. Só faltou o polegar do imperador baixado para decretar a morte do meliante cujo corpo deveria ser jogado aos leões famintos. E o povo aplaudiu e o povo adorou!

Aguardem para breve novo espetáculo!

FLAVIO DIAS SEMIM
Enviado por FLAVIO DIAS SEMIM em 30/10/2008
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