ENSAIO DE CONCEITO DE ARQUITETURA: Técnica: tectônica, coisa, espaço.

Andrié Silva (graduando em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA)

É pelo meu amigo Rogério, da Faculdade de Arquitetura, que escrevo o seguinte ensaio, uma vez que lhe prometi, sob seu admirável interesse acerca do que penso sobre arquitetura, algo escrito, para esclarecimento. Tenho certeza de que outros com interesse igual aproveitarão este texto. E desde já: desculpo-me se repetir algo que algum autor já tenha dito sem citá-lo, pois meu conhecimento não é vasto em termos de teorias arquitetônicas alheias; entendo que seja mesmo necessária a aparente delonga para chegar-se à definição; desejo que perdoem a grande quantidade de notas; e, por fim, peço que se entenda também que isto é um ensaio, ou seja, já nasce com a certeza de que não resistirá a alguma contraposição rica a ponto de melhorar o entendimento sobre arquitetura.

OFÍCIO.

Os ofícios humanos têm um lado subjetivo, – propriamente artístico –, um lado outro, o técnico, e ainda um terceiro, o científico. Podem coexistir em diversas proporções essas esferas e são as diferentes posologias que discriminam as categorias das atividades propriamente antrópicas. Quando o viés científico fala mais alto, é claro, estamos nos referindo a uma ciência. À parte todos os outros casos dedutíveis, se nos parece a priori que a arquitetura é uma arte, a categoria que nos interessa primeiramente à discussão é gerada pela primazia do primeiro caráter, o subjetivo-artístico, sobre os outros.

No sentido amplo, em que admitimos a arte como grupo de ofícios, o fabrico da obra encaminha a atividade, pela técnica e segundo a ciência, para o produto final, cuja exposição consumará, por medida do viés artístico, a arte de fato. A obra, este produto final de toda arte, entretanto, é muito distinta entre os vários tipos de arte. E é esta diversidade justamente o melhor parâmetro para definir, dentro do conceito geral de arte, subdivisões seguras para análise.

A PROSA PURA, AS ARTES COSMOLÓGICAS, GRÁFICAS, RÍTMICAS, CÊNICAS E A POESIA.

A prosa pura é uma maneira artística cujo conteúdo é completamente dissociado e independente da forma. E mais, a literatura de prosa, ao contrário das artes em geral, não tem a forma como parte de si, pois é essencialmente pelo conteúdo, muito embora não exista sem aquela (a forma). Não se pode dizer ser a obra da literatura o livro tampouco dizer que a forma se expressa no conteúdo. Esta última premissa se mostra improvável, visto que são entes separados, até que se prove o contrário, conteúdo e forma. E de outro lado um Lima Barreto é igual em sua raiz de prosa, não importa de quais cores ou de que tipo sejam as serifas das letras nem a sua disposição das mesmas que perfazem seu volume. De sorte que o conteúdo é a obra. E não há a prova em contrário pedida para uma fusão conteúdo-forma, mas, isto sim, uma separação confirmada pelo dito.

Em caminho inverso seguem os ofícios artísticos que, grosso modo, são pela forma física. A idéia de Rodin que provavelmente precedeu “O Beijo” não era arte de escultura, esta só passou a vislumbrar a partir da confecção sobre pedra da estátua. Ocorre também na pintura, cuja imagem sobre tela é algo necessariamente físico para que seja a arte pictórica e possui, como as artes deste grupo, aquele algo, conteúdo. De um lado o conteúdo intencional (do artista), volátil, porém pressuposto1; e o conteúdo real e mais importante – vário, mutável, relativo, múltiplo, sempre em função de quem contempla a obra. Assim, essas artes são cosmológicas (se expressam na coisa).

Correto é dizer que nenhuma arte foge da natureza (das coisas e seus derivados ideais), todavia se relacionam as diferentes faculdades artísticas, através de suas obras, de modo diferente e particular com aquela.

O conteúdo nunca vem ao mundo. O conteúdo é uma idéia sobre o mundo: uma afirmação, uma negação, uma narrativa sobre as coisas2. Transita, portanto, tão somente pelo “mundo humano”. Precisa, então, para “ser” algo, transferir-se de alguma forma para sujeitos3. É aí que age a linguagem simbólica4, cuja principal função, na prosa pura, é transmitir com exatidão a idéia do autor (obra). Uma piada pode ser objeto da prosa pura, desde que o humor esteja na situação inventada, e não no modo como se a diz nem nos trocadilhos que se faz com a língua formal tampouco numa situação real5. Nas artes que se expressam na forma isso não ocorre, fundamento do qual decorre a separação que há no seu conteúdo6, haja vista a essência múltipla do entendimento das obras quando em forma.

A prosa utiliza-se unicamente da linguagem de referencial formal. De forma tal que, porém, não a tem como fim, mais como meio. Linguagem feita de símbolos, não de arquétipos ou combinações físicas, este é o motivo pelo qual não tem a forma como imanente. Portanto, a linguagem referencial formal é imaterial: ao seu parâmetro – código artificial e unívoco para um grupo – se pode referir com o molde do físico por analogia. É dizer, em palavras nuas, que forjar uma peça de aço em forma da A com a intenção de referir-se à letra é usar (também) daquela linguagem. Então, esta se refere a um parâmetro (neste caso o alfabeto “grego”, válido para quem o conhece), que por sua vez alude às coisas possivelmente existentes; um caminho indireto até as coisas do mundo.

Em contrapartida, as artes cosmológicas usam a linguagem do real apriorístico para transmitirem-se e existirem. A linguagem do real apriorístico é a pela qual conhecemos as coisas pela percepção imediata dos nossos sentidos (visão, olfato, audição, tato, paladar), os quais nos remetem automaticamente, de forma mais ou menos profunda, a idéias nossas. É por esta linguagem que percebemos ser o sol menor que uma das montanhas que o escondem no horizonte. Esta linguagem diferencia-se, portanto, da linguagem do real, que se abriga na filosofia7.

As artes cosmológicas usam a existência como coisa (forma física), de suas obras, para transmitirem algo que é uma analogia, uma relação de exortação, uma comparação entre o que está exposto e o que é subjetivo (interior) ao receptor. Se a intenção do artista se aproxima (pois nunca coincide) com o que despertou em quem lhe contempla a obra, isso é admirável, embora de forma alguma esta não consecução seja reprovável. Importante é entender que, devido à existência como coisa, à percepção de uma coisa pela linguagem apriorística, à existência de, principalmente, uma distância quase sempre grande entre o que se quis passar e o que se transmitiu de fato – existente pela intermediação da forma, a arte deve ser considerada cosmológica.

A prosa é pela própria idéia do que tenciona dizer. Uma narrativa pura, assim como uma argumentação, é o que pretende ser entendido, e não o que se ou a forma pela qual se mostra. Dessarte, a linguagem simbólica, em sua função de transmitir universalmente uma idéia, faz jus a si tecnicamente na prosa. Se o autor, ao escrever a prosa, transmite com clareza o que pensa, está antes sendo técnico que artista. A arte está na estória inventada, na anedota, de forma que, por exemplo, quem escreve as estórias pode ser um terceiro, sob o ditar do autor. Ao mesmo tempo, todavia, somos cônscios de que é impossível a uma arte existir se não trazida ao conhecimento de alguma forma; para a prosa isto se prende à expressão da linguagem simbólica – a forma. Portanto, a forma é necessária para a existência da prosa, embora não seja parte sua.

Se a prosa pura tem como obra o seu conteúdo, não é a arte cosmológica a única detentora da forma como obra. A arte gráfica é uma categoria artística, no entanto que não é nem a transformação do físico nem é o conteúdo puro e simples. Se a prosa pura se externa também pela linguagem simbólica gráfica, a qual gera uma imagem e a pintura trabalha com a composição de tintas, o que além de gerar um objeto físico resulta também uma imagem, é justamente este elemento último, em qualquer de suas formas graváveis e apresentáveis, a obra das artes gráficas. É, então, uma arte formal, porque, malgrado não se apresente como coisa, tem na forma imagética seu objeto8. Nesta categoria estão as artes em que a imagem é a obra e independe da maneira como ela (a imagem) se mostra9. O design, dito grosso modo em “duas dimensões”10, é uma arte gráfica, assim como o cinema11, cuja realização dispõe ainda de uma outra dimensão, o tempo.

Existem artes em que há a junção daquela dimensão às expressões físicas. A dança trabalha com a mutação constante da composição física do corpo humano, como as posições são formas físicas, podemos dizer sem receio que a dança é a variação, em qualquer intensidade, sob um ritmo proposital12, do próprio corpo humano, em determinado espaço de tempo, com fim em si mesma. De tal maneira que esta arte sem dúvida se expressa cosmologicamente, porém, como subjacente à sua atividade há um mudar necessário, esta arte se caracteriza não tanto pela forma constante, mas pela sua variação (que supõe um tempo), de forma que se abriga melhor sob a categoria de arte rítmica, e não de arte cosmológica. O mesmo para a música, cuja expressão física existe no limite de sua variação e cuja dúvida quanto ao caráter desta expressão pode ser dissipada pela identidade entre energia e matéria.

No teatro, as cenas se constituem essencialmente de pessoas com falas e gestos. Não nos parece, aí, absurdo pensar em dança e música sobre o palco... Igualmente de maneira natural nos vem à mente a primazia da representação13. Entretanto, não é somente com falas e gestos que se representa, afinal operar mamulengos e o trabalho do ventríloquo o que são? Representação é, na acepção aqui entendida, a montagem ou desenvolvimento14 de uma cena. Esta que por sua vez caracteriza-se por “maquetear” intencionalmente a realidade à qual se refere15. De um lado existe a cena animada, nas quais pessoas operando os seus corpos ou instrumentos representam com os movimentos e expressões necessários; de outro há a cena estática, composta de elementos físicos para a alusão a outra realidade. O teatro é a expressão da facção animada da arte cênica, grupo artístico que trata da representação como objetivo ostensivo16.

Por fim, a poesia, outra categoria artística, não se expressa pela forma física necessariamente nem é o conteúdo tampouco o objeto de determinado sentido. Existem artes que dependem da linguagem simbólica para se expressarem, assim, a prosa pura, conteúdo, se externa pela linguagem simbólica. A poesia é a responsável pela maneira com que se usa a linguagem simbólica. Ela está tanto na maneira pela qual se dispõem as palavras no papel, no sentido múltiplo dos símbolos, na composição deles para a geração de sentido quanto na entonação do discurso. De tal forma que, entretanto, não foge às regras gerais do sistema de símbolos referidos. Por exemplo, se se usa a escrita para fazer poesia, a variação de cores das letras está distante do sistema de símbolos da escrita. Na medida em que este uso é uma confluência entre poesia e arte gráfica, coisa não pouco comum nem para estas nem para as outras artes todas aqui descritas, em acepção ampla é possível dizer ser a poesia o uso convergente dos vários sistemas de linguagem referencial.

A COISA: ARTES DO DEVIR E ARTES DO ELEVAR.

(...)

Vive, a coisa, aquela harmonia indiferente

de saber ser por si e não invadir o ser do outro

tampouco lhe ministrar absolutos, dogmas, ditames.

É, a coisa, como tal, indiferente às outras...

Que, porém, sabe serem, mas por si; ainda que delas nada soubesse.

(...)

KELLER, A. In O ser da coisa e o ser da pessoa.

Em primeira impressão, haja vista a consumação na forma, necessária às artes formais como a pintura e a escultura, tendemos, creio, a aproximar a arquitetura das tais. No entanto, é de forma especial que se deve relacioná-las entre si, sobretudo quando investigamos de que maneira se comportam os produtos desses ofícios cosmológicos.

Há senão um erro meu de interpretação algo de incauto na alusão de Frampton à arquitetura como diferente das artes plásticas17 em geral, como a pintura, por ser, como a dança, uma arte cosmológica. Na realidade, o que ocorre é que tanto a arquitetura quanto a pintura se consumam através das suas obras, as quais são entes físicos materiais e, portanto, são coisas. E muito embora esses ofícios tenham, na forma, certa constância que os diferencia da dança – como já vimos18 –, pelo dito sobre a consumação na forma física tanto as artes plásticas quanto a dança são cosmológicas. Portanto, há, não uma identificação cabal da arquitetura com a arte cosmológica, mas a necessidade de identificar, dentro desse grupo, outro mais específico onde ela (a arquitetura) se encaixa.

Como para a arte em geral, é o produto das artes cosmológicas, por seu tipo, que as diferencia internamente. De tal sorte que há uma diferença fundamental entre a obra (forma) na escultura e na pintura em relação à mesma nas artes outras como a culinária. Expressa no produto, esta diferença nasce da raiz das artes. Enquanto que a escultura e a pintura se pautam pela finalidade idêntica à própria contemplação, a culinária, a arquitetura e o design têm um pressuposto além: o de serem funcionais19. Por conseguinte, ao passo que o produto destas últimas é uma coisa cuja função essencialmente define a sua forma e é deduzida dela, naquelas outras o produto é algo elevado à fruição estética exclusivamente.

Sendo claro, recorramos ao velho Duchamp, cuja famosa atitude é sempre útil em termos de definição de arte. A expressão cosmológica da arte que projeta a forma de um urinol é o próprio urinol. Ora, o design confecciona o projeto de forma tal que sirva, o objeto, à sua função prática sobretudo. Então, este objeto é uma coisa cuja forma atende (ou visa atender) diretamente sua função; a forma deriva da função prática. Entretanto, quando aquele artista põe o urinol em exposição num lugar próprio, o promove à obra de contemplação. O urinol, dessa maneira, passa a ser, tanto produto do design quanto da arte cosmológica que há em pôr, de determinado modo, o objeto ali em exposição.

Aquele urinol jamais deixou de ser coisa, visto que existia e perfazia duas artes cosmológicas. Contudo, foi coisa de forma distinta para duas artes. As coisas de maneira natural nunca se dedicam somente à contemplação, têm na realidade muitas funções outras, embora algumas o definam como coisa determinada para determinado ser. Quando promovo a coisa a “objeto a se contemplar”, através de uma intervenção volitiva (composição de coisas outras, transformação, deslocamento etc.) a afasto de todas as suas outras funções para transformá-la nisto. A coisa não deixa de ter funções não-estéticas, mas passa a tê-la como principal e determinante.

Assim, para aquela arte cosmológica de Duchamp, o urinol torna-se “coisa-suspensa”, analogamente para as outras artes de mesmo matiz. Enquanto que para o design, o urinol é “coisa-prima”, uma vez que, tão logo não tenha sido promovido enquanto coisa, está naquela dita maneira natural da coisa e é por si a obra. A arquitetura e a culinária possuem em consonância com o design o caráter de serem também funcionais não esteticamente em sua forma, de maneira tal que são, estas artes cosmológicas que se expressam em coisas-primas, artes do devir (vir-a-ser). Também sendo artes cosmológicas, mas se expressando na coisa-suspensa, a escultura e a pintura são artes do elevar.

MISCELÂNEA DA PRÁTICA E O PURISMO TEÓRICO.

É mesmo artificial e quase didática a separação que aqui se faz dos diversos ofícios artísticos. Na prática, o que ocorre é que algumas artes, no mais amplo dos sentidos dos termos que lhe dão nome, são mais frequentemente abarcadoras de outras demais, as quais se cooptam para conceber o produto final. Assim, chamamos a associação prosa-poesia ou somente de prosa, ou somente de poesia, afinal dizemos ser Hamlet prosa e Os Lusíadas poesia, considerando a artificial diferença entre a confecção por parágrafos ou versos. Por outro lado, a pintura é uma arte que costuma manifestar-se só, igualmente a música, o que não podemos dizer também da dança, eterna amante das sete notas.

Um afresco, o que é? É uma obra de arte integrada geralmente à construção arquitetônica, mas sob zelo da rígida filosofia sua consubstanciação, junto à arquitetura, para o edifício, não automatiza a sua inclusão como parte desta. Separação que não necessariamente torna aquele persona-non-grata na construção arquitetônica. Na verdade, o inverso: a construção é uma obra de arquitetura, no mais amplo dos sentidos deste termo, pois, embora a composição de tinta seja obra própria da pintura, a arquitetura – na amplidão referida do termo – pode ser a integração deste, e das demais obras, à construção do lugar.

Exemplificado pelo uso do afresco, a arquitetura, arte do devir, associa-se às artes do elevar, de modo que delega à sua obra composta uma função estética através de elementos destinados para tal, contrariando o seu sentido estrito, no qual a função estética deve ser um zelo constante, mas derivado da adequação às demais funções. Desta forma, ao se admirar a forma de tetos nórdicos, se sabe que sua forma, angulação aguda, deriva principalmente da sua função, qual seja, a ligada ao não acúmulo de neve. De tal sorte que podemos supor aí uma pureza arquitetônica. Não obstante, é mais difícil em certos casos afirmar acerca da primazia do objetivo estético exclusivo ou não de um elemento.

Apesar todo o dito, são necessárias as análises das artes nas suas formas puras, porque se quisermos conceituar cada uma das artes partindo de seu conceito amplo não teremos sucesso em defini-las. Isto, uma vez que as artes nesta forma ampla tendem a uma miscelânea cujos conceitos seriam imbricações das possibilidades de agregação de outras artes a uma determinada para sua obra, e de cada uma daquelas com o restante e assim ao infinito e à não definição. Portanto, as questões relativas à pureza ou não de um ofício artístico não são critérios valorativos aqui e seria equivocada a interpretação de que este autor faz apologia à pureza do ofício como ideal de arquitetura20.

A subjetividade, a parcela técnica e o viés científico do ofício.

O que diferencia a primeira mancha de um rolo com tinta negra, executada por um profissional pintor de paredes, do famoso quadro de Malevich? Ora, se soubéssemos como foi feito o quadrado negro deste suprematista, poderíamos dizer que este faz arte porque, ao contrário daquele, fez o quadrado com pincéis – o que não parece muito coerente –, e na prática, se fizessem de forma igual, o cliente do profissional ficaria insatisfeito, coisa que dificilmente ocorreria se tivesse na sua parede um Malevich.

Por trás do quadrado negro de Malevich existe o que sustenta a existência da pintura como arte do elevar, de forma que é forçoso dizer que, em primeiro lugar este sujeito faz arte porque expõe suas obras à contemplação. Argumento válido neste caso e para casos que envolvam as artes do elevar em geral, mas deve haver algum que, além de servir também às artes cosmológicas, seja unívoco para o campo das artes. Antes é preciso esclarecer que, salvo a atestação de que certa obra tem por trás atitude humana, de modo algum devemos aferir o caráter artístico de uma arte nos arraigando na sua guisa de confecção.

Se, e somente se, a fruição estética da obra por parte de alguém somar-se à realização da mesma, de vontade (e não de acidente), por um homem21, é caracterizado o caráter subjetivo de um ofício antrópico. Fruição que não precisa ser uma aquilatação positiva, mas apenas uma experiência estética, mas que necessita ser por uma pessoa diferente do realizador. Mas esta forma, que versa sobre a existência ou não do caráter subjetivo, ainda não nos satisfaz, na medida em que todos os ofícios humanos têm em certa medida os requisitos necessários àquele caráter. Precisamos perceber, porém, que, se é a primazia do caráter subjetivo que define um ofício como arte, este domínio é notado durante a confecção. Mas não no modo como se faz a obra, mas na prioridade da busca desta função subjetiva durante sua confecção, ou seja, o objetivo durante o fazer do ofício.

Malevich então se dedicou a fazer um quadro, baseado nas suas referências acumuladas sobre estética, em forma e cor puras, pois assim considerava que conseguiria certa reação do público, o que seria, como já dito no texto, “algo que é uma analogia, uma relação de exortação, uma comparação entre o que está exposto e o que é subjetivo (interior ao sujeito) ao receptor22”. Fez arte, pois. Quanto ao profissional, embora alguém passante no local de seu trabalho tenha se admirado profundamente com aquela mancha negra na parede, embora também a mancha tenha sido feita de vontade por um ser humano, – coisas que sem dúvida denotam a subjetividade existente em tal atividade –, não existiu vontade estética.

Pois bem, embora este texto esteja dominado pelas artes cosmológicas, as quais, junto às artes gráficas, têm identidade entre forma e obra, há os casos em que, como na prosa, não ocorre assim. Entretanto, tanto estas como aquelas outras, passam a ser arte somente a partir da obra, que por sua vez é o produto final do oficio.

É mais difícil entendê-lo para a prosa, visto que parece não haver, como nas outras artes, uma mediação técnica entre idéia e obra. No entanto, há uma distância para uma estória a partir de uma idéia, pois não é porque imagino um personagem de nome Ponciano de Azeredo Furtado e alguém esmurrando uma sereia que escrevo o Coronel e o Lobisomem. Há uma mediação que corresponde a concatenar idéias em forma estória, só esta, então, e não os vultos precedentes, é o conteúdo e, pois, obra da prosa.

Nas artes cosmológicas é patente a mediação, na medida em que se forja por algum meio a arte, ainda que seja deslocando com as mãos um urinol a um pacote encaminhado a uma exposição. Assim a pintura tem os seus meios próprios, afinal a escultura, a dança, a música, a culinária... Igualmente o ferreiro, o marceneiro, o encanador, o zelador, o restaurador e o garçom os têm. Meios que são não exclusivos de cada ofício, mas também pontos de interseção, como a possibilidade de Malevich ter usado o mesmo rolo e tinta negra do profissional. São, estas mediações de cada ofício, a parte técnica de cada um deles.

Por conseguinte, não é difícil conceber, de modo análogo ao caráter subjetivo e a arte, que a prevalência da parte técnica caracteriza um ofício como uma “técnica”.

Quando Michelangelo esculpiu Davi, executou uma técnica. Mas, é óbvio, o renascentista não partiu do nada. Aprendeu a sua técnica em algum lugar e ao desenvolvê-la guardou, seja em si, seja num documento, seja toda ou em parte. A ciência é justamente a base da qual salta a técnica. O desenvolvimento desta última é a parte dos ofícios em que se reúnem as experiências da técnica. Banco de dados que torna possível a execução de uma atividade qualquer.

ESPAÇO

A delimitação é o começo de qualquer investigação, afinal a natureza é uma unidade e todos os recortes que fazemos nela nada mais são que a fixação do objeto de pesquisa. E ela é sempre artificial, posto que as partes, resultados das delimitação, são divisões formais e relativas apenas. Afinal, se posso dizer serem os elétrons, prótons, nêutrons e outras partículas parcelas de uma parte maior a que chamo de átomo, posso, analogamente, dizer que certo elétron deste mesmo átomo e um lápis de colorir são partes de uma counóise – sendo que o leitor não encontrará esta palavra no dicionário, pois é um ente de invenção minha; amostra da artificialidade da parte.

“Em determinado extensão física do mundo acontece”. Esta afirmação carrega justamente os caracteres que definem o objeto de pesquisa a que se pode dizer “espaço”. O espaço físico, invólucro ou continente, não é suficiente para se definir um espaço. Assim como não apenas os seus sujeitos e conteúdo físico. Também as atividades que ali ocorrem ao longo do tempo e o próprio tempo são necessários para “localizar” o espaço, mas mesmo junto às anteriormente descritas não são sempre suficientes.

Uma determinada área em que há bem dois anos havia um resquício de floresta atlântica paralela a uma rodovia agora abriga atividades residenciais e comerciais, o que nos dá a clareza de que são espaços diversos? Primeira diferença existe na medida em que primeiro nos referimos a um antes e posteriormente a um depois (não é uma redundância). Os objetos estão como distintos primeiramente por um intervalo de tempo, então. Mas que lei natural que não a da minha conveniência – e aí a artificialidade da delimitação – determinou estes intervalos de tempo?

A definição matemática de espaço pode confundir aqui. Afinal, o espaço matemático que mais se aproxima do real pode ser definido por três vetores, mas a expressão não supõe nada mais que variáveis que suprem um vazio imaginário no plano cartesiano. Se não fosse imaginário ainda não poderíamos dizer imediatamente, deste vazio, espaço. Para a definição determinado espaço deve ser computado o seu conteúdo físico. Ainda que não haja nada. Sobre a superfície da terra geralmente há, ainda que nitrogênio, e em nosso exemplo o que há de físico nos espaços é, na floresta, seus animais, o ar e tudo que ali tenha matéria e assim como no outro as casas, lojas, pessoas e tudo que tenha matéria.

A filosofia cartesiana, porém, acrescentaria a esta definição algo, uma vez que defenderia a existência de um sujeito superior à matéria e diferente dos animais. Digo, claro, de nós, dos humanos. Mas é mesmo evidente a artificialidade também desta separação cartesiana, que considera o homem sujeito e o resto das coisas objeto. À parte todas as implicações terríveis que este modo ocidental de pensar suscitou e suscita, não parece que é mais do que narcisismo da parte do homem definir-se sujeito. Ora, por que não seria também objeto? E assim uso, como Frampton, Heidegger, mas de modo diverso. O sujeito não é senão que um recorte mundano que interfere no resto do mundo, sobre influência deste, que é, como ele, coisa23. E deste modo será usado o termo aqui.

Da definição matemática é possível retirar algo útil ao entendimento do espaço. Justamente aquele vazio que está no plano cartesiano, se transposto para a realidade, define um vazio real, o que constitui um dos definidores do espaço. Por vezes este vazio é definido pelo conteúdo físico, quando, por exemplo, se define o espaço “Cordilheira dos Andes”, “Sierra Maestra” ou “Amazônia”. Relação invertida quando se refere a limites políticos, como Haiti, Benin, Amazônia Legal... Esse vazio é, claro, relativo também a um ponto conveniente, afinal, se a terra gira e também o sistema solar, para um referencial no infinito seria impraticável delimitar o vão que envolve certo espaço. O Pacote imaginário que contém a floresta e o condomínio que a suplantou são o vazio continente de ambos os lugares e coincidem nesse caso.

Durante aquele intervalo de tempo por mim definido ocorreu certa atividade. Na paisagem natural, houve o desenvolvimento das teias alimentares, o ciclo de vida dos animais e sua decomposição, a evapotranspiração e os deslocamentos de ar etc. Enquanto que no condomínio pessoas estão circulando com seus carros e um centro comercial os apóia em sua diversão, as empregadas domésticas varrem, os balconistas atendem, alguém escreve um ensaio. Coisas se interam e supõem um passado, são o resultado dele. A soma de coisas mais tempo encontra identidade com a atividade. Ainda que seja a constante, muito embora seja rara esta situação quando pelo menos existe, em determinado vazio continente, algo material, acrescente-se a impraticabilidade do zero kelvin.

E a atividade transforma o espaço. É segura a transformação se suposta a atividade, uma vez que, se for constante, malgrado não haja transformação física, terá pelo menos decorrido tempo. Em situação contrária, quando não houver intervalo de tempo para supor uma atividade de transformação ou continuidade, não haverá também o devir constante de espaços diferentes; de tal sorte que advém a impossibilidade de deduzir pelo menos um espaço.

O que torna fácil inferir que, além de transformar, a atividade caracteriza um espaço, ou seja, define-o em essência ao mesmo tempo em que nega sucessivamente todos espaços do determinado vazio continente disposto na linha do tempo. Antes das construções completas na floresta, houve um espaço de trabalho, uma atividade que caracterizou o canteiro de obras, mas que o negou como canteiro no futuro, tornando-o condomínio. Isso através da negação sistemática de espaços menores que sempre devinham, surgiam.

Portanto, o que delimita um espaço genericamente é o intervalo de tempo, o conteúdo físico, o vazio continente e as atividades (corolário soma coisas-tempo).

O ESPAÇO HUMANO

“O homem encontra o ambiente sem hospitalidade

E trata de provê-la incontinenti para si

E modifica, cresce; em redor: uma cidade!

E outras dentro do tempo hão de vir

Uma tribo não é uma reunião de casas

E o mundo não é a reunião das tribos

Pois não só no que se toca e é útil a vista

Os homens encontram o seu abrigo.

O mundo transcende o material, o aqui e agora

Mundo se vive dentro, aqui, hoje, lá fora!

Na saudade, na recordação, no outrora

No prever, no planejar, no falar, em discorrer...

Não é propriamente o chão que sustenta

Pela idéias o ser também é erigido, é sustentado!

Pelo que cria em parte, e em muito vive embuçado

nas palavras que cria por criar.

As tradições nada mais são que fumaça

Fumaça fixa que não se pode fustigar

pela certeza no que não existe

o homem constrói e derruba o que se obtemperar

O homem é refém do querer absoluto

E espelha sua imagem em Quem o criou

Quando, na verdade, é o Seu deus a criatura

E loucura é falar com quem se desenhou!

O homem tem a cabeça cheia de significados

que dizem que à sua natureza deve contrariar

Tanto que o homem tenta o suicídio!

Então, racional é ele ou o animal que nunca iria se matar?”

KELLER, A. In O que é o mundo.

A Europa Feudal é o maior dos exemplos do conceito de espaço. Da queda do Império Romano do Ocidente à do Oriente ocorreu; seu conteúdo físico? a Europa daquele intervalo de tempo, além das trocas com os árabes, por exemplo; suas atividades? do dito mesmo deduzida: do trabalho da terra pelos servos sob o olhar e atividades do clero e dos senhores – ovelha, pastor e lobos, respectivamente, segundo um texto da época. Mais as atividades da natureza e de todo o conteúdo físico em geral; o vazio continente podia deduzir ser um grande prisma de base idêntica aos limites da Europa, mas estendido ao céu, de onde, além das lunetas árabes, só o imaginário e a conjetura transpunham.

Se definíssemos um sólido de vazio continente para abrigar a conjuntura globalizada atual, o nosso mundo, veríamos que as fronteiras são as que não podem ser transposta senão pela imaginação. A figura geométrica referida teria nos limites a potência de um telescópio espacial. O espaço humano, no entanto, exige muito mais que a expansão possível por naus e astronaves, ocorre também da influência das coisas do mundo sobre o que pensa o homem e o que das idéias provenientes retroagem, ou seja, o homem associa com o lugar.

A priori me parece que a idéia nasce, ou de outra idéia, ou das coisas que existem em forma de matéria e do tempo, da natureza. São sensações só passíveis de apreensão, até onde sei, pelos seres que dispõem de um órgão de nome cérebro24. Não de tão simples gradação como a temperatura ou a cor, as idéias provêm de micro-associações tão diversas, que suas distintas formas de relação tornam humanamente ilimitadas as suas possibilidades. Se ao observarmos a natureza forçosamente parece de uma infinidade incognoscível, devemos imaginar quão maiores são as relações que dela fazemos, então. E se são as idéias o nosso conhecimento acerca da natureza, é evidente que jamais conheceremos todas as idéias.

O limite se impõe às idéias, para por sua vez limitarem tal espaço humano, em forma cultura. Um animal sem nenhuma dúvida tem idéias, afinal um cão executa tal truque sob o pensamento de que posteriormente será recompensado e foge de algo que lhe possa ferir, sobretudo sob uma lembrança. Há, entretanto, entre muitas outras, uma principal diferença entre a relação do animal e do homem com a idéia. E decorre da capacidade de comunicação mais precisa das idéias dos humanos, mais elaboradas, entre os próprios e a decorrente mediação de suas vidas pelas tais.

As idéias sobre o lugar, conteúdo físico e suas relações, formam-se ao longo do tempo e constituem humanamente o passado. Constituem a tradição, a ideologia, a projeção. A cultura, pois. Torna-se esta mesmo, para a relação humana com espaço, um vínculo indispensável e que deve ser considerado como delimitador do espaço humano. E que, obviamente, está em função de cada humano, e grupos humanos. No caso da Europa Feudal, talvez possamos delimitar pelos pensamentos, em relação à terra, ao céu e a todo o conteúdo físico do lugar: religioso cristão católico, pela influência germânica, pagã, romana etc., embora seja evidente aqui a generalização25.

O QUE É ARQUITETURA

A Arquitetura, assim mesmo, com maiusculação, abrange tanto a arquitetura quanto o urbanismo. Não há aqui a engenharia civil, a qual, como disse certa vez, é ofício parceiro da arquitetura, ambos dependentes entre si.

Em sentido estrito, a Arquitetura é o ofício antrópico que fornece a resposta física ao atendimento das delimitações/definições de certo espaço humano previamente existente em plano ideal, através de uma forma resultante da construção tectônica – forma, a qual por sua vez terá repercussões ulteriores, – advindas de sua existência como coisa prima –, que também destoarão dos objetivos previamente imaginados, redefinindo o espaço.

AS DELIMITAÇÕES, O ESPAÇO EM PLANO IDEAL E A TÉCNICA.

As delimitações do espaço humano são, a saber: 1. o conteúdo físico; 2. o intervalo de tempo; e, 3., o vazio continente. De modo especial relacionam-se aí, porém, os dois primeiros itens, os quais se consubstanciam em um outro, qual seja, atividades. As atividades do conteúdo físico no tempo, que para o espaço humano admite-se o homem como sujeito protagonista, passam também pela cultura – tradição, passado, ideologias, idiossincrasias. Definidas assim, podemos chamar as atividades do espaço humano – próprias ou ligadas ao homem – de atividades humanas.

Há, segundo o conceito, um ofício humano26 responsável por atender fisicamente aos caracteres que definem o espaço humano. É óbvio, mas há menos perdas que ganhos em ressaltar que o ofício antrópico é uma atividade munida de três vieses imediatos, quais sejam, o técnico, o científico e o artístico. O arquiteto segundo o conceito deve, portanto, ser habilidoso o suficiente para responder da melhor maneira, pela forma, aos caracteres que delimitam o espaço existente em plano ideal – deve ser técnico. Apoiar-se, assim, em experiências, num léxico de respostas anteriores, às quais estuda e contribui sistematicamente em sua ação – donde a ciência. E a arte, como se dá neste ofício?

O espaço previamente existente em plano ideal pode estar abrigado em qualquer lugar, inclusive no mundo em forma de coisa, desde que não a seja. De tal sorte que ele ora está na imaginação do arquiteto, ora aparecesse representado formalmente ou num croqui, sobre o papel, em outra situação pode estar em maquete ou numa construção vizinha. Nesse último caso, se quero objetivar um edifício cuja construção tem os mesmos parâmetros de um outro existente, eles são cópia, mas não são a mesma coisa, de forma que, embora se abrigue na construção anterior a idéia idêntica da minha posterior, esta não é aquela – do contrário a arquitetura não construiria, seria uma contradição no ato, pois, ora, se a construção posterior fosse a mesma da anterior, não haveria atividade cosmológica alguma27.

Esse espaço está nas idéias sob influência direta dos sujeitos da ação arquitetônica, que por sua vez recebem influência de sua cultura. E, por mais que um espaço do plano ideal esteja demasiadamente influenciado, de tal jeito que, por exemplo, seja fac-símile ideal de certo espaço anterior, será ele sempre considerado projeção, projeto, uma vez que, primeiro, ele antecede uma objetivação (sua realização como coisa, no caso da arquitetura) e, em segundo lugar, será necessariamente um espaço novo – recorte de tempo diverso, conteúdo físico distinto etc. Um quarto, por exemplo; fortemente influenciados pela nossa cultura concebemo-lo como um cubo que deve abriga alguém, durante a noite, dos ruídos. Quando for construído será espaço diverso de todos os outros quartos.

Uma das demandas possíveis dos espaços humanos refere-se à estética28. Podemos chamar por função estética do objeto arquitetônico o atendimento a este requisito. Mas, consoante o dito, é claro que a função estética é um entre muitos dos caracteres de delimitação do espaço humano que a arquitetura deve atender. De maneira que, embora dito para as artes cosmológicas do devir serem principais as funções não-estéticas, um espaço humano geralmente requer algum caráter estético, sobretudo se partimos para a influência cultural de que se munem esses espaços. Se porventura não se põe como demanda a estética, o que resultar das propostas para as outras delimitações do espaço somará uma forma que inelutavelmente terá um efeito estético – donde a afirmação de que deriva a forma da função29.

Posto isso, o viés artístico da Arquitetura é suprimido de quando em vez, visto que não é necessário enquanto objetivo principal o atendimento estético30. Ou seja, o atendimento estético é uma entre outras tantas demandas do espaço, mas acima de tudo a Arquitetura deve atendê-las, de tal maneira que é esta sua função principal. Tendo-o em vista, a parcela técnica predomina na Arquitetura, o que fica mais evidente quando sabemos que ação arquitetônica é sobretudo a execução das técnicas (para atender as demandas do espaço idealmente existente), e não o acúmulo e produção de técnicas. É dizer, às vezes o arquiteto é artista, às vezes cientista, mas quando faz Arquitetura é impreterivelmente técnico.

A Arquitetura? Essencialmente técnica.

A ATIVIDADE, A TECTÔNICA E A REDEFINIÇÃO DO ESPAÇO.

Ao contrário do animal, o homem trabalha. O animal atende suas necessidades imediatas através de impulsos instintivos, por seu lado o homem é capaz de executar atividades planejadas de modo a atender demandas imediatas e futuramente esperadas; através da produção cria novas demandas31; ademais o faz por diferentes maneiras segundo o seu entendimento da questão e suas experiências32. Na realidade, assim são todos ofícios antrópicos, divisões para o trabalho, que é uma atividade propriamente humana. A Arquitetura é uma atividade deste jaez cujo pólo se concentra no planejamento e cuja consumação se dá na existência do planejado, e não na maneira ativa e direta pela qual o planejado devém fisicamente33.

Entretanto, evidentemente a Arquitetura não é o projetar e existir de qualquer forma física a partir das demandas do espaço. Os objetos arquitetônicos são compostos tectonicamente, ou seja, necessariamente através da construção tectônica vêm ao mundo. A composição (junção) de materiais e o manejo dos mesmos em sua “pureza”34 são as bases da construção tectônica. Além de uma leitura atenta do texto de Frampton35, exemplos evitarão que eu escreva um novo capítulo para definir a construção tectônica. Usar argila para confecção de uma escultura pequena é construção tectônica, é o manejo de material “puro”. De outro lado, quando ponho duas pedras em forma de coluna e com madeira compensada concebo um teto, faço uma construção tectônica igualmente.

Claro, nem toda construção tectônica é arquitetura, mas toda arquitetura é uma construção tectônica. Esta construção supõe o elemento físico, o qual justamente é o que atende as demandas de definição do espaço existente em plano ideal. Ora, se me encomendam algo que impeça a entrada de outros homens em determinado território, posso propor um muro, ele é justamente uma resolução física para a demanda. Mas nem todas as resoluções são fisicamente diretas em termos de espaço humano, afinal, por vezes uma cruz é barreira maior que um fosso profundo. Do mesmo modo uma luz acesa pode ser um item arquitetônico de segurança. Barreiras tais que decorrem da associação entre o fisicamente existente e idéias humanas; entre elas a cultura, para um grupo, e a idiossincrasia, individualmente.

Se é a partir de demandas para definição de um espaço ideal36 que nascem as formas arquitetônicas, também estas, quando objetivadas, definem um novo espaço. Este novo espaço, definido agora também pela existência física da forma arquitetônica (novo conteúdo físico e, por vezes, novo “continente físico”), é o espaço arquitetônico de fato. Para cada ciclo de atividade arquitetônica, entretanto, o espaço arquitetônico varia. Afinal, um espaço já construído no qual se vai intervir é, para a intervenção, um espaço existente, sobre o qual se sobreporá a partir da idéia de um outro espaço (o ideal, claro) um novo espaço arquitetônico em algum ponto ou de forma geral (na antiga construção). Sob outro ciclo, claro, a antiga construção era o espaço arquitetônico, quando da idéia veio ao mundo sob a condução de alguém.

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NOTAS.

1. Volátil porque não é possível deduzir seguramente qual foi a intenção de um artista a partir de determinada obra. Erro de entendimento já postulado sabiamente por Spinoza (no seu “Tratado da Correção do Intelecto e do Caminho pelo qual melhor se dirige ao verdadeiro conhecimento das coisas”), qual seja, o de deduzir uma causa pelo seu efeito. Mas devido à aproximação por parte das ciências humanas através de certo determinismo histórico, as disciplinas de história não erram, desde que não afirmem certeza sobre o que dizem. “Pressuposto”: a intenção é pressuposta, uma vez que, se toda arte nasce da ação volitiva de um homem, há alguma intenção sempre.

2. O conteúdo é uma sensação, como prefere Spinoza, se partirmos de seus dizeres sobre a idéia.

3. Se uma idéia como uma ficção se transmite para as coisas, estamos falando de teoria e práxis, e não de arte e forma.

4. A. Evidentemente linguagem simbólica é aquela feita de símbolos. Daí decorre o seguinte: 1. é criação humana, 2. refere-se a um sistema geral, 3. é entendida por um grupo. Exemplos: o alfabeto e o português (coloquial ou denotativo), falados ou escritos; a linguagem matemática; a língua de sinais para deficientes auditivos; a linguagem tribal de percussão; a linguagem entre os jovens na internet (embora oriunda de uma língua oficial), o desenho arquitetônico. B. O teatro não se aproxima duma transmissão exata do que determina o autor, afinal sua linguagem não é simbólica formal, mas real apriorística, própria das coisas (mais em parágrafo posterior).

5. Se o humor tivesse sentido na situação real descrita com exatidão e indiferença, não haveria arte, por ausência de transformação subjetiva intencional.

6. Cf. parágrafo anterior.

7. Deve-se entendê-lo no sentido de que o método da filosofia supõe uma investigação (indutiva ou dedutiva) para elidir dúvidas. De maneira que, se temos uma impressão sensorial apriorística e resolvemos, baseados na certeza da enganação dos nossos sentidos, investigar o que realmente ocorre além de nossas impressões, estamos fazendo filosofia.

8. Notar que, porquanto as artes cosmológicas se expressem pela linguagem do real apriorístico, ou seja, pelo a priori de todos os sentidos, e a imagem seja o objeto da arte gráfica, esta faz uma espécie de “recorte” naquela linguagem ao prender-se na visão unicamente.

9. A pintura não se encaixa nas artes gráficas. A obra da pintura é a composição de tintas sobre uma superfície, ou seja, a pintura depende e se define pela forma através da qual a imagem se mostra. A imagem, nesta arte, é uma derivação da percepção dela pelo sujeito, como ocorre com todas as coisas físicas visíveis. Do mesmo ocorre também com a escultura e as artes cosmológicas cujas obras se percebem também pela visão, nas quais este sentido é imprescindível. Portanto, pintura não é uma arte gráfica.

10. Os outros exemplos em “duas dimensões”, exclusive p.ex. a fotografia, podem ser incluídos no design “em 2D” (que, na verdade, trabalha com três, embora sobre o plano) lato sensu: a foto montagem; a arte em pixel`s; as artes cosmológicas quando expostas por meios diversos, como a reprodução computadorizada, sem perder a composição imagética geral (reproduções diferentes distorcem, ainda que imperceptivelmente, a imagem).

11. Na categoria de quatro dimensões se abrigam também a televisão e o cinema quando estes se caracterizam por si, mantendo, apesar de eventual cooperação, independência em relação à arte cênica.

12 Para qualquer refutação formalista a respeito do ritmo devemos compará-lo à escolha na medida em que ela nunca é aleatória realmente, quando parece ser, na verdade segue uma regra, porém infinita, motivo pelo qual “ritmo” não precisa ser cíclico.

13. O que denota uma finalidade ulterior e principal, que afasta o “fim em si mesma” das artes rítmicas.

14. Em conjunto ou isoladamente, ao mesmo passo ou não.

15 Realidade deve se entender por situação ou coisa do mundo que ocorre antes do ato cênico ou as que se pode buscar internamente (subjetivo ao espectador). E depois, o objeto ao qual se refere a cena pode ser um remendo de realidades.

16. Fica clara a necessária expressão física para a representação teatral, o que ajuda explicar a questão da nota no. 4. Ora, no teatro há uma interpretação através de falas e gestos de personagens p.ex., ferramentas que não se igualam à expressão física de uma linguagem simbólica formal (como o fonema está para uma língua), mas são expressões físicas “reais”. Ou seja, no palco, um aperto de mão é mesmo um aperto de mão, e não a expressão física que traz ao conhecimento um símbolo, símbolo que por sua vez alude a um sistema de referência, e que só então se refere à natureza (realidade). O aperto de mão é um aperto de mão, mas a finalidade de representação faz com que ele aluda a outro aperto de mão (em certos casos o aperto de mão de personagens) ou a outra coisa, mas diretamente (gesto-realidade). Portanto a linguagem é real apriorística.

17. Que são afinal as artes plásticas? São uma categoria das atividades cosmológicas nas quais a confecção técnica da obra física é feita por modelagem em algumas das etapas. Várias das artes e dos ofícios cosmológicas são plásticos: a escultura, a metalurgia, a marcenaria, a pintura, a arquitetura. Apesar disso, essa categoria, como diz respeito ao fabrico, é mais concernente à técnica, e não à parte artística, cuja determinação principal se encontra na obra (como dito), motivo pelo qual por ora não devemos considerá-la rigidamente para a nossa análise.

18. Acerca da dança cf.pág.3, parágrafo 3.

19. Entender por “funções não estéticas”.

20. Cabe-se notar que não é incomum a demonstração de preferências particulares quando se define um conceito. Talvez isto seja inevitável, mas ostentá-las é um erro nesta atividade.

21. Ou vários deles. E, a saber, é mesmo uma tautologia dizer ser necessária (mas não suficiente) a ação humana para que um ofício antrópico seja arte, afinal antrópico é sinônimo de humano. Mas seguirei dizendo, é adequado a uma exposição.

22. Analogia, comparação exortação diretas no caso das artes cosmológicas e das não presas à linguagem formal; mediadas, porém, nas artes em que se utiliza a linguagem simbólica.

23. Metaforicamente poderíamos dizer, do sujeito, “ser de atitude”, mas isso cai por terra quando inteligimos que qualquer sujeito é feito de matéria e suas atitudes são influenciadas totalmente. Não se deve entendê-lo de modo determinista ortodoxo tradicional, mas pela razão de que o intelecto humano pode ser livre, claro, mas a liberdade alcançável supõe apenas a complexidade das influências e das condições físicas do intelecto (habilidade de pensar, por exemplo), e não uma independência do intelecto, autonomia que suporia um sujeito. Marx parece ser cartesiano em sua filosofia, com a “apropriação da natureza através do trabalho”, no entanto pelo menos formalmente o autor considera o homem como parte da natureza. Alguns teóricos delegam esta liberdade total a Deus ou à existência de alma; isso foge à minha filosofia.

Após bilhões de anos uma estrela some. Parece mesmo muito diverso, mas tanto um humano que age quanto àquele corpo celeste podemos aludir como coisas que exercem uma atividade. A dúvida urge, contudo as duas situações são influenciadas pelas coisas. Ocorre, porém que, se compreendemos e nos satisfazemos, no caso do astro, com a explicação de que com o tempo de queima o seu combustível gasoso tenha se esvaído, nos causa suspeita que um processo de influências sobre coisas nos tenha levado a certa atitude. Suspeita nascida da complexidade evidente desta influência, mas que não é levantada corriqueiramente sobre outras coisas, como quanto a tudo que precedeu aquele astro e, portanto, tudo. O que guina ao “da onde viemos” e, por conseguinte e não menos frequentemente, ao divino e à negação do conceito tradicional de tempo. Limito-me a considerar, pelo menos para esta análise, o conceito tradicional de tempo.

24. Embora de Spinoza eu busque a definição da idéia por “sensação”, este filósofo integra a idéia como uma das extensões da Natureza e diz que o intelecto é independente de tal modo que isoladamente, por ligações entre elas numa seqüência tal, é capaz de conhecer a Natureza. Verso, por meu lado, pela diferença entre as regras que regem as idéias e as que coordenam a matéria.

25. Esse conceito de espaço que exponho talvez seja semelhante ao espaço geográfico de Milton Santos. Não afirmo a certeza por não o conhecer bem. Ademais, parece se encaixar esta definição minha num método de estudo da história e da sociologia, embora não seja intencional.

26. Que é uma atividade também, mas que peço para que não se pense assim profundamente, pois isto pode confundir o leitor. E que o mesmo não se preocupe, porque retomarei adiante o assunto, mas – pretendo –para dar um nó de entendimento, e não de confusão.

27. Ou, e isto ainda mais absurdo, poderíamos ter um ofício cosmológico humano sem interferência antrópica no mundo.

28. Estética, como sabido, não é sinônimo de beleza. Basicamente a estética trata de avaliações não racionais, ou de avaliações emocionais (para recorrer-se a etimologia da palavra estética, que significa “sentimento”) e a classificação como ‘belo” ou “feio” é uma das quais, igualmente o sublime etc.

29. Cf.pág. 4, parágrafo 3.

30. Embora frequentemente seja. Quando não é, embora em menor intensidade o viés artístico existe, uma vez que a forma é resultante de ações humanas conscientes.

31. De acordo também com a doutrina marxiana (Cf. MARX, Karl. “Para uma crítica da Economia Política”).

32. Marx distingue melhor as atividades animais do trabalho (uma atividade humana). Outra nota: “diferentes maneiras” e “entendimento/experiências”, podem ser interpretados, respectivamente, como “diferentes técnicas” e “ciência”, fato que nos leva a associar corretamente aos ofícios humanos – divisões formais do trabalho.

33. Isso é atribuição da engenharia e/ou da ergonomia. Lembro de que trato da Arquitetura em sentido estrito.

34. Entre aspas porque é impossível, a não ser pelas definições formais químicas da matéria, dizer absolutamente ser um material puro. Impossibilidade nascida da artificialidade da parte – longamente tratada aqui.

35. “Rappel a l`ordre”. A saber, considero aqui a “estereotomia” e a “tectônica” – termos de Frampton, no mesmo texto – como elementos da construção tectônica.

36. “Existente no plano ideal”.