Raul Seixas: O Carimbador Maluco

Raul Seixas: O Carimbador Maluco

"O Cantor Cantou errado e a Censura concordou..."

Por Fernando Pinéccio

Colaborou: Sylvio Passos

Quando em meados de 1983, Raul Seixas lançou a canção “Carimbador Maluco” (também conhecida como “Plunct, Plact, Zuum”), no álbum ‘Raul Seixas’ pelo selo Eldorado, milhares de fãs se revoltaram com o ídolo. Afinal, onde estava aquele rocker contestador e rebelde que há uma década tinha ficado famoso com ‘Ouro de Tolo’ – um verdadeiro tapa-na-cara daqueles que sonham em ser felizes seguindo todas as regras impostas pelo que o próprio Raul Seixas chamava de ‘Monstro Sist’, o Sistema vigente, o capitalismo e o consumismo em todas suas formas? Com certeza era frustrante ver o ‘Maluco Beleza’ sorrindo – talvez orgulhoso por ter finalmente vencido na vida -, em meio a dezenas de criancinhas, cantando uma música altamente comercial, e gravando programas para a Rede Globo de Televisão.

A situação piorou (?!) ainda mais quando Raul ganhou seu segundo Disco de Ouro, graças ao sucesso da música. Nas ruas, nos parques, nas casas e nas escolas, crianças e adultos, doutores e operários, dançavam e cantavam, divertindo-se ao som da música, tema do especial infantil da TV Globo, chamado Plunct, Plact, Zuum.

Mas em meio aos fãs de carteirinha, a decepção era quase que total. Também pudera, o mesmo homem, de óculos escuros e jaqueta de couro, que classificou o rock ‘n’ roll “Let Me Sing, Let Me Sing” e “Eu sou eu, Nicuri é o Diabo” no Festival Internacional da Canção de 1972, e que exaltava multidões em seus shows convocando a “Sociedade Alternativa”, havia finalmente se rendido ao poder do sucesso. Acabara de se vender ao Sistema com uma música aparentemente imbecil e sem a famosa dose de filosofia, típica de Raul Seixas. Onde estaria o Raul Subversivo? Raul Seixas havia finalmente desistido de seus ideais e agora, fazia parte da mesma panelinha que tanto criticara. Certo?

Errado! Em quase toda a extensa obra de Raul Seixas é possível encontrar citações, segredos, dicas, enfim, verdadeiras mensagens subliminares. Num tempo em que dezenas de suas músicas após serem avaliadas pela Comissão da Censura voltavam com um imenso “X” vermelho de lado a lado do manuscrito, a saída era usar de metáforas. E Raul soube usar esse truque muito bem, dizendo tudo o que quis, só que com palavras diferentes. Mudou apenas o jeito de falar, mas disse exatamente o mesmo – tudo aquilo que queria dizer. Muito gente não sabe que para compor a música ‘Gita’ por exemplo, uma de suas canções mais conhecidas, Raul e seu parceiro na época, Paulo Coleho, foram buscar inspiração no livro ‘Bhagavad Gita’, considerado um dos três principais livros sagrados da humanidade, ao lado da Bíblia e do Tao-Te-King (Lao-Tse). 'Gita' é baseada em uma conversa entre o guerreiro Arjuna e seu deus, o Senhor Krishna. No livro, datado de seis mil anos atrás, cultuado na Índia, o guerreiro, cansado dos horrores do campo de batalha, invocou o Deus Krishna, questionando o porquê de tanta maldade. Segundo a história, Arjuna teria se assustado com a aparição, e perguntou "Quem é você?". Krishna respondeu dizendo "(...) Hoje eu vou lhe mostrar... eu sou a luz das estrelas, eu sou....(...)". Familiar, não?

Já na primeira versão de “Check-up”, Raul precisou trocar os nomes de alguns medicamentos psicotrópicos (tarja-preta), por nomes confusos e indecifráveis como “Quilindrops, Discomel e Ploct-Pluct 25”. Só depois que a versão original foi liberada pela censura, o público entendeu o recado.

Na época, somente os amigos pessoais de Raul Seixas, pessoas que conviviam com ele, e poucos fãs com maior conhecimento, sacaram o lance que estava acontecendo. Raul Seixas não havia mudado! Não tinha se rendido ao Sistema, tampouco se vendido ao lado comercial da música. Raulzito continuava o mesmo. Afiado, abusado, libertário e muito, muito inteligente. Simplesmente, num golpe arriscado e temperado com seu tradicional sarcasmo e sua indiscutível ironia, Raul Seixas ‘injetou’ na letra da canção trechos de um texto anarquista de Pierre Joseph Proudhon, considerado o percussor do anarquismo moderno, morto em 1865. "Idée générale de la révolution au XIXe siècle”, de Proudhon, é uma pesada crítica a burocracia imposta pelo governo ou estado vigente, em toda e qualquer atividade ou processo, a fim de retardar o mecanismo ou conduta em questão.

Na música, Raul Seixas diz: “Tem que ser selado/ registrado /carimbado /avaliado e rotulado se quiser voar, pra lua a taxa é alta, pro sol: identidade, mas já pro seu foguete viajar pelo universo é preciso meu carimbo dando sim, sim, sim!”. O texto original diz: “(...) Ser governado é ser guardado à vista, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado, identificado, doutrinado, aconselhado, controlado, avaliado, pesado, censurado, comandado... Ser governado é ser, a cada operação, a cada transação, a cada movimento, anotado, registrado, recenseado, tarifado, selado, tosado, avaliado, cotizado, patenteado, licenciado, autorizado, apostilado, administrado, impedido, reformado, endereçado, corrigido... ser posto à contribuição, exercido, extorquido, explorado, monopolizado, pressionado, mistificado, roubado; depois, ao menor resmungo, à primeira palavra de reclamação, reprimido, multado, enforcado, hospitalizado, espancado, desarmado, garroteado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído, e por cúmulo, jogado, ludibriado, ultrajado, desonrado (...)”.

O fato é que o golpe deu certo. Talvez, se na época alguém percebesse o forte teor anarquista, a imensa crítica ao sistema, a música teria ficado na gaveta da censura, entre tantas outras. Mas isso não aconteceu. O público foi atingido em cheio! As crianças gostaram, os pais aprovaram, a TV mostrou, o governo concordou. E Raul, mais uma vez, deu seu recado, sem ser censurado, avaliado, rotulado, inspecionado...

F.Pinéccio