Um Voto em Favor dos Pardos

Nossa era de "ações afirmativas" e posturas politicamente-corretas trouxe evoluções, mas também mal-entendidos e simplismos. Na questão étnica, ou racial (como preferirem), pode-se dizer que o Brasil pegou o bonde do "black power" andando e com trinta anos de atraso. A revisão que se vem fazendo em nossas concepções de democracia racial - derrubadas pelo óbvio há muito - ocorre como quase tudo neste país: às pressas, nas coxas, heterogênica, politiqueira e passionalmente. Copia-se de modo tosco a iniciativa norte-americana de cotas para minorias num período em que são questionadas em seu solo formador e sem que se leve em conta a absurda diferença de miscigenação entre os povos destes dois países. Nos "states", dois gêmeos jamais ocupariam grupos distintos entre cotados e não cotados, por um ser mais claro e outro mais escuro. Aqui sim. Por que? Por que nossa visão cultural de cor (ou raça, ou etnia...) se dá mais pela aparência do indivíduo do que por sua árvore genealógica. Arrisco dizer que, no Brasil, não vemos raças, mas cores e variações de uma mesma "raça", enquanto nos Estados Unidos e em partes da Europa, brancos e negros não são encarados como dois entre vários pontos extremos de um conjunto, mas como entidades distintas, separadas, como "espécies" independentes e, por isso, "raças", e, também por isso (entre outros fatores), uma tendência nestes pontos do globo de se "arredondar" grupos miscigenados para "raças pré-estabelecidas", de preferência as "não-brancas". O "moreninho", o mulato, o mameluco, o mestiço viram índios, negros, latinos e árabes. Arregimenta-se o "impuro" para as "espécies distantes", para conceitos mais "pluralistas" criados pelo homem branco destes países que almeja "salvaguardar" o que considera mais nacional, puro e integralmente seu. Lembremos que em tais culturas há uma ligação ideológica entre cidadania e hereditariedade bem mais forte que no Brasil. O negro daqui, ainda que tenha sofrido uma desvalorização sistemática e brutal, sempre foi visto pela coletividade como um brasileiro legítimo, e não como um africano em terras que não lhe pertencem.

Nosso atraso em pegar o bonde da ação afirmativa, aliado à velha subserviência tupiniquim para com os cânones do primeiro mundo, gerou desejos de imitação que não se adaptam a nossa cultura e história. A negros e brancos imbuídos em solucionar os dilemas raciais e sociais do país, copiar pode ser mais fácil que criar, porém não mais eficiente. Abolir os chamados pardos do código coletivo para torná-los negros, como querem muitos, talvez funcione em estatísticas, mas na vida prática é um retrocesso. Não sou contra a discussão ou reformulação do nome "pardo" para algo diferente, visto que foi fundado sob óticas escravistas e utilizado para diferenciar negros ou mestiços cativos de negros ou mestiços livres. A implicância atual, todavia, não vem disso, mas da histórica aura eufemista, separatista e divisória atribuída ao termo na relação com os negros mais "escuros", ou seja, menos "branqueados", "verdadeiramente negros". A extinção do pardo buscaria desmantelar essa escala hierárquica de enclarecimento, arregimentando os negros mais brancos junto aos outros e unindo-os contra o "inimigo comum", os brancos. Mas muitos desses brancos também são pardos, tão "pardos" quanto o gêmeo que ficou fora da cota, que tinha as mesmas raízes negras do irmão aprovado. Sendo assim, os pardos claros tornar-se-ão brancos, e os mais escuros, negros? E quanto às demais etnias que compõem o caldeirão de variantes constituintes da "raça parda"? E os índios, muçulmanos, vizinhos indo-latinos, indianos, etc, quem será responsável pela determinação das tendências genealógicas majoritárias de cada pardo e seu lugar nas novas raças do Brasil?

A valorização da negritude nacional deve vir como parte de um processo maior que é valorização do Brasil para os brasileiros. Nosso racismo é, em parte, sintoma de um velho complexo de inferioridade onde procuramos em antigos e novos colonizadores referências de valor que ignoramos internamente. Importar visões, categorias étnicas e soluções dessas mesmas culturas nada faz além de perpetuar um típico legado de autonegação. Diferentemente de americanos e anglo-europeus, não somos tão exatos em nossas qualificações interpessoais. Um negro pode ser pardo... e negro... e mulato... e branco, por que não? Cada caso é um caso, e isso é brasileiro, dúbio, inexato, difícil para um gringo entender. Se temos - e como temos! - problemas sócio-culturais profundos de racismo e classismo, devemos discuti-los e elaborar mudanças, radicais, se preciso, mas que respeitem a real natureza do "ser brasileiro". Entendamos este país único, que demanda remédios próprios, antes de tomar as atitudes cabíveis.

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(Luiz Mendes Junior é escritor, cronista e roteirista. Seus textos também podem ser encontrados no blog http://www.noticiasdofront3.blogspot.com e http://www.dominiocultural.com)

Luiz Mendes Junior
Enviado por Luiz Mendes Junior em 21/12/2008
Reeditado em 09/01/2009
Código do texto: T1346492
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