Prisioneiros&encarcerados

A natureza humana é complexa. Gera indivíduos com diferentes personalidades e dota-os de um irrestrito direito de plena liberdade. Em contra-partida, para a própria perpetuação da espécie, lhes impõe a necessidade de viver em grupos. Como são detalhadamente diferentes entre si, surgem às dificuldades.

Ainda crianças são levadas a se dedicarem às pretensões paternas induzindo-se por opções que, aos olhos dos progenitores, são corretas. São talhadas a seguirem por caminhos, às vezes, opostos ao seu puro desejo aniquilando dons de valores incalculáveis para o seu bem estar. Quando adultos, obrigam-se a curvarem perante acordos, pessoas, agremiações que nem sempre correspondem àqueles ideais que, desde a mais tenra idade, arraigaram em seus subconscientes. Os líderes que detêm o poder nem sempre os agradam; os compromissos são cansativos. Sonhavam com fatos vultosos e se vêem forçados a defenderem idéias com as quais não comungam; é como bater em pontas de facas o tempo todo; nada lhes dá prazer e isso, além de perturbar o seu comportamento, afeta as relações com a família, com os amigos e desperta o rancor e o ódio antes reprimidos. Nas vãs tentativas de progresso, há a necessidade da omissão e do silêncio. Surgem as reações tensas e os desequilíbrios emocionais gerando as disputas, a violência, o medo e a insegurança. Dos tantos dissabores que enfrentam, tudo perde o encanto e, quando despertam, vêem-se traídos, mal casados, humilhados e seus melhores sonhos transformados em pesadelos. Estando rodeados por pessoas que tanto falam e nada dizem; pelas falsas amizades que atrapalham; são tomados pelos antigos dons que, na infância, coloriam as suas fantasias. O sentimento de derrota é inevitável. Nessa hora não há discurso ou promessa que os iludam. Tudo acabou; é tarde demais para voltar. Só lhes restam uma fuga - mesmo que ilusória - onde o álcool e as drogas servem de consolo para quem caminha na mais densa multidão e na mais completa solidão.

Sentindo-se acuados, apegam-se à violência na cega tentativa de reaver seu mundo utópico e de se proteger do caos silencioso que a comunidade lhes impõe.

A sociedade, por sua vez, dentro dos legados de cada povo e alheia às vontades e ambições dos indivíduos em queda; julga, condena e os responsabiliza pela degradação em que vivem. Esquece, no entanto, que tais elementos são vítimas de um complexo sistema que nunca lhes deu trégua; hoje se encontram marginalizados, presos por uma muralha invisível que os impede de gozarem da cidadania e, por isso, entregam-se à devassidão por não suportarem mais pagar o preço imposto pela sua liberdade.

Se pudessem falar, certamente diriam o que os corrompeu. Se pudessem voltar, seguiriam por outros caminhos; mas é impossível. Os tempos são outros. Aqueles que, mesmo inconscientes, impediram que tais pessoas, hoje enfraquecidas, seguissem seus intentos; sequer os aceitam em seu meio. Preferem vê-los afastados, enjaulados, longe dos olhos para se sentirem menos cúmplices.

Vivemos num período em que muito se refletiu sobre renovação (Quaresma).Tempo em que vieram à tona os melhores sentimentos em relação ao próximo. Época em que se povoa o espírito de demônios, inunda a alma de remorso e cai por terra em sinal de arrependimento. É também o momento de se reunir em torno de uma mesa e pôr tudo "a pratos limpos"; travar um diálogo franco, romper com todos os laços mórbidos que nos prendem, reaver os planos, reaproveitar o que for apreciável, remendar se for necessário, jogar fora tudo o que é estorvo e seguir em frente. O ser humano não pode ser condenado pela vida farta ou miserável em que vive, nem importa como chegou, onde se encontra e qual a sua origem. Deve, outrossim, espelhar-se no passado e partir em busca do que resta de suas aspirações pessoais. As grandes mudanças estão no interior de cada um e não nos mitos que a civilização cria porque, passados os dias de remorso, tudo volta ao normal. A sociedade, com suas inquietações, caminha presa pelas desigualdades que o silêncio consegue deter. Entre muros e "grades", homens são encarcerados por terem sidos ousados na busca de seus objetivos. Entre muros e "gradis", homens pacíficos olham incrédulos para os rumos que o mundo se encaminha, armando-se até os dentes contra seu pior inimigo: a própria raça. Lá fora, os dias e as noites são os mesmos... E os homens, também!

A Notícia.março de 1997.