EFEITOS INTERTEXTUAIS E A TRADUÇÃO DA HISTÓRIA NA POÉTICA DE LAUTRÉAMONT: análise do Canto Quinto do "Cantos de Maldoror", de Isidore Ducasse (nova versão do artigo "Alegoria é olhar de Medusa", editado em 25/01/2006)

EFEITOS INTERTEXTUAIS E A TRADUÇÃO DA HISTÓRIA NA POÉTICA DE LAUTRÉAMONT:análise do Canto Quinto dos “Cantos de Maldoror”

Autoria: PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS

verão de 2006

E veio a nona praga (1):

“E Iahweh disse a Moisés: ‘Estende tua mão sobre a terra do Egito, para que venham os gafanhotos sobre a terra do Egito, e comam toda erva da terra, tudo que a chuva de pedras deixou.’ Estendeu, pois, Moisés a sua vara sobre a terra do Egito. E Iahweh mandou sobre a terra um vento oriental todo aquele dia e toda aquela noite. Quando amanheceu, o vento oriental tinha trazido os gafanhotos.

E subiram os gafanhotos por toda a terra do Egito. Pousaram sobre todo o seu território, e eram muito numerosos; antes destes nunca houve tais gafanhotos, nem depois deles virão outros assim. Cobriram toda a superfície da terra, e a terra ficou devastada. Devoraram toda a erva da terra e todo fruto das árvores que a chuva de pedras deixara. E não ficou nada de verde nas árvores, nem na erva do campo, em toda a terra do Egito.” (Ex. 10, 12-15)

O mal é parte integrante do teatro do mundo: é um dos seus atores ao lado do bem. O mal e o bem estão entrelaçados. Perseguindo os elos perdidos que unem religião e poética, Maldoror, herói de um romance negro, dando-nos a impressão de rastrear poética e tematicamente a “Bíblia”, nas linhas inaugurais do Canto Quinto dos “Cantos de Maldoror”, assim poetiza:

“Os bandos de estorninhos têm uma maneira própria de voar que parece obedecer a uma táctica uniforme e regular, tal como uma tropa disciplinada que obedecesse com exactidão à voz de um único chefe. É a voz do instinto que os estorninhos obedecem, e o seu instinto leva-os a aproximarem-se sempre do centro do pelotão, embora a rapidez do vôo os lance continuamente para além dele; de modo que esta multidão de pássaros, assim reunidos por uma tendência comum para o mesmo ponto magnético, continuamente de um lado para o outro, circulando e cruzando-se em todos os sentidos, forma uma espécie de turbilhão agitadíssimo (...) Apesar deste modo especial de rodopiar, os estorninhos nem por isso deixam de fender com rara velocidade o ar ambiente, e de alcançar sensivelmente em cada segundo um terreno precioso para o termo de suas fadigas e final da sua peregrinação.” (Lautréamont 1988, pp.157-8)

Século XIX, final da peregrinação. Repudiando os fundamentos sobre os quais descansam a Igreja, o Estado, a ordem reinante de sua época, isto é, a sociedade burguesa moderna, individualista, fundada no egoísmo racionalista e calculador; misturando arte, religião, filosofia, ciência e técnica numa única expressão poética, o livre arbítrio do escritor romântico Lautréamont - do “Eu” particular - desperta o homem para a visão perdida e insurgi-se contra a banalização da palavra humana, que perdera o poder de nomear: “No momento em que escrevo, novos estremecimentos percorrem a atmosfera intelectual: o que é preciso é ter coragem para os olhar de frente.” (Lautréamont 1988, p.159)

Século XX: noutro registro, o poeta-filósofo, não ignorando e apontando para os perigos da interferência progressiva da ciência e da técnica no desenvolvimento da escrita moderna, evoca a imagem bíblica das “nuvens de letras-gafanhotos” - a praga do Egito antigo - e afirma:

“... o jornal quase necessariamente é lido na vertical - em posição de sentido - e não na horizontal; filme e anúncio impõem à escrita a plena ditadura da verticalidade. E antes que um contemporâneo chegue a abrir um livro, terá desabado sobre os seus olhos um turbilhão tão denso de letras móveis, coloridas, litigantes, que as chances de seu adentramento no arcaico estilo do livro já estarão reduzidas a um mínimo. Nuvens de letras-gafanhotos, que já hoje obscurecem o sol do suposto espírito aos habitantes das metrópoles, tornar-se-ão cada vez mais espessas, com a sucessão dos anos...” (Benjamin 1987, p.28).

O poeta é um visionário, por um longo, imenso e ponderado desregramento de todos os sentidos. O poeta multiplica imagens ameaçadoras geralmente vinculadas à idéia do fim dos tempos, mas que falam, ao mesmo tempo, de um estado de coisas presente, de um tempo sombrio, de um tempo de horrores. O olhar do poeta reorganiza o mundo e dirige-se para uma nova ordem, enigmática e viva, por força de uma linguagem incomum: “... se o livro errático de Lautréamont se inscreve em alguma tradição, supondo que isso seja possível, seria uma tradição insurrecional.” (Benjamin 1985, p.31)

Com efeito, a sociedade moderna encontrou no século XIX o seu inimigo mais tenaz e mais perigoso: Maldoror, o maior poeta do seu tempo. Opondo-se aos ideais de felicidade humana, gerados pelo pragmatismo burguês, o poeta, em tom provocativo, desafia o leitor a abandonar as suas concepções ingênuas de bondade. Estabelecido o combate perigosíssimo nas páginas dos “Cantos de Maldoror”, o leitor defronta-se corpo-a-corpo com o texto. O murmúrio da mordacidade picante de Maldoror, a um só tempo, seduz e desagrega o leitor:

“O leitor que não se zangue comigo, se a minha prosa não tem a felicidade de lhe agradar (...) Tu, [leitor] (...) não dás atenção à maneira como eu canto cada uma destas estrofes (...) não seria impossível que tivesses assinado um tratado de aliança com a teimosia, essa agradável filha da mula, fonte tão rica de intolerância” (Lautréamont 1988, pp.157-8-9)

As variações fisionômicas de Maldoror ou seu hábito de “mudar de cara” (Maldoror, Lautréamont ou Ducasse?), além de fazer com que o leitor se perca (afinal, com quem estamos falando nos “Cantos...”?!), não seriam atitudes de se proteger contra a esteriotipação fisionômica da sociedade burguesa? Uma tentativa desesperada de preservar a privacidade? Uma luta contra o iminente perigo de perder o rosto?

Na sociedade do século XIX, período no qual se desenvolveram os “Cantos de Maldoror”, as cidades e seus tentáculos começam a comprimir e a massificar o homem perdido no anonimato das grandes metrópoles: “Quais eram então os teus verdadeiros motivos para fugires das colméias humanas? Fazia a mim mesmo esta pergunta com alguma perturbação...” (Lautréamont 1988, p.186)

Maria Stella Bresciani inicia seu belo estudo sobre o advento da sociedade de massas nas cidades de Londres e de Paris do século XIX, enfatizando que “nenhuma questão se apresenta mais carregada de compromissos para os literatos do século XIX do que a ‘multidão’...” (Bresciani 1990, p.7)

Por conseguinte, Walter Benjamin - em seus ensaios sobre o lirismo de Charles Baudelaire (2) - ressalta que o século XIX assistiu ao florescimento da literatura fisionômica. Benjamin, com freqüência, refere-se à geração de fisiologistas que fizeram moda em Paris na primeira metade do século XIX. Além disso, foi na “escola de Baudelaire” que o poeta Isidore Ducasse fez a aprendizagem de escritor.

Contudo, do que afinal tratava tal gênero de literatura? De feição panoramática, capturava instantâneos da vida parisiense (aspectos da cidade, dos povos, dos animais etc.) numa revista colossal que, em última instância, antecipava o bombardeio incessante das imagens sobre as massas, patrocinado pela Indústria Cultural do século XX. Assim, a literatura fisionômica, descrevendo as massas e perseguindo funções que são próprias às massas nas grandes cidades, procurava o diálogo entre modelos de conhecimentos científicos e poéticos.

Nessa atmosfera, na tentativa de recompor o que fôra perdido - em meio a tantas vozes impacientes à procura de um espaço onde pudessem estabelecer uma relação qualquer de comunicação dissociada da arte -, Maldoror opõe-se, radicalmente, à literatura daquela ocasião, a qual procurava incorporar o texto científico.

É freqüente um turbilhão agitadíssimo de palavras atravessar as épocas da história do mundo, retornando vazias para o espaço vazio e caindo finalmente no esquecimento, nada mais sendo que uma nuvem de pó que foi agitada.

A “Enciclopédia”, obra monumental dos filósofos iluministas, foi o grande acontecimento da época; o objetivo para onde convergiu tudo o que procedeu, a origem de tudo o que se seguiu e o verdadeiro centro de qualquer história das idéias no século XVIII. Somente um século filosófico era capaz de tentar elaborar uma Enciclopédia. A “Enciclopédia” foi a mais famosa de todas as experiências na popularização do conhecimento. Obra suprema do Iluminismo,

“...o elemento radical da ‘Enciclopédia’ não residia em uma visão profética das revoluções Francesa e Industrial, mas em uma tentativa de mapear o mundo do conhecimento segundo novas fronteiras, determinadas única e exclusivamente pela razão. Como proclamava a página de rosto, a obra pretendia ser um dicionário ‘raciocinado’ das ciências, das artes e dos ofícios - ou seja, medir toda a atividade humana com padrões racionais, e assim fornecer a base para reinterpretar o mundo.” (Darnton 1996, p.20)

Contudo, às vezes, acontece que algumas palavras ou linhas juntam-se em uma nova forma. Elas respiram, vivem e sobrevivem mais tempo que gerações inteiras. Soa, então, uma voz superior na poesia francesa: a poética de Maldoror apresenta-se, repentinamente, a uma época que apostava no progresso da ciência de uma forma desmedida. Apareceu um poeta justamente num momento em que a poesia interessava a poucos. A época, obcecada pela perspectiva resolutamente positivista da ciência, e que postulava a idéia de progresso para fazer recuar a ignorância e a superstição, foi surpreendida pela sombria melodia recém-surgida dos “Cantos de Maldoror” - eco da última trombeta, convertendo em ruínas o vocabulário da linguagem científica: “ musaranho; rotíferos; tardígrados; acre serosidade supurativa; estercorários; anhinga; unguiculada; tentaculiformes; élitros...” são palavras ou expressões que povoam o Canto Quinto dos “Cantos de Maldoror”.

Enfim, surgiu um poeta que envolveu a matéria bruta - suporte do conhecimento científico - num mundo de sentimentos. Aqui o poeta é o centro do cosmo, sem suportes filosóficos ou religiosos, mas apenas abençoado pelo “óleo sagrado da linguagem”:

“Um escaravelho rolando no solo com as mandíbulas e as antenas uma bola cujos principais elementos eram compostos de matérias excrementosas, avançava a passos rápidos para o mencionado outeiro, esforçando-se por pôr bem na evidência a vontade que tinha de tomar aquela direcção. Este animal articulado não era muito maior que uma vaca!...” (Lautréamont p.161)

Poética articulada com poética, e os belos efeitos intertextuais. Eis a comunhão poética dos “Cantos...” com o consagrado conto de Edgar Allan Poe: “... examinei então a caveira com cuidado (...) num canto da faixa, diagonalmente, em oposição ao lugar em que se delineara a caveira, a figura do que, a princípio, supus ser uma cabra. Um exame mais acurado, contudo, demonstrou-me que se tratava de um cabrito...” (Cf. Edgar Allan POE in “O Escaravelho de Ouro” , p.32) (3)

O poeta Lautréamont deixa Montevideo para tombar desterrado na cidade de Paris. Na referida metrópole, o poeta pacientemente reúne fragmentos do discurso científico - que se apresenta como único e verdadeiro - estocados numa memória artificial (o enciclopedismo), colecionando-os e catalogando-os à sua maneira: “ao leitor de Baudelaire e de Walter Benjamin ocorre, inevitavelmente, a imagem do trapeiro”, falando com Joaquim Brasil FONTES (4).

Transfiguração da linguagem técnica em linguagem poética, Lautréamont desveste o conteúdo do texto enciclopédico de toda cientificidade e tecnicidade, cobrindo-o de poesia e fazendo-o enfim significar outra coisa. Pelo uso de uma linguagem literal dos termos científicos, emprestados da “Encyclopédie d’Histoire Naturelle du docteur Chenu” (5), acessível a todos os leitores daquela ocasião, mediante um gesto alegórico tudo é reorganizado e ressignificado pelo poeta, fazendo do texto uma alegoria:

“Seguindo passo a passo uma hipótese anterior, eu teria seguidamente apontado a sua verdadeira natureza e encontrado um lugar nas tabelas da história natural para aquele cuja nobreza estava admirando na sua doentia posição. Com que satisfação por não ser totalmente ignorante dos segredos do seu duplo organismo, e com que avidez de os conhecer melhor eu o contemplava na sua duradoura metamorfose.” ( Lautréamont 1988, p.162)

O tema da metamorfose (7) nos “Cantos de Maldoror” também merece nossa atenção, porque coloca a questão do limite entre o humano e o animal. Não podemos nos esquecer que o poeta é um agenciador de metamorfose, visto que ele desnuda o arcaico à luz do moderno, e vice-versa:

“Logo que se afastou, o pelicano exclamou: ‘Esta mulher pelo seu mágico poder, deu-me uma cabeça de palmípede e transformou o meu irmão em escaravelho (...) Além disso, ela despojou-vos da vossa forma humana transformando em cruel brincadeira as vossas dores mais santas (...) Que grande animal sou eu!” (Lautréamont 1988, pp.164-5)

Metamorfose num mundo privado de deuses, num mundo em que reina o Império da Técnica?

A existência material não é sempre compreensível, pois existem enigmas e pontos vagos durante seu curso. Elias Canetti, no ensaio “A metamorfose” (6), já alertara com acerto que é extraordinariamente difícil investigar a essência da metamorfose.

As interpretações religiosas, filosóficas ou científicas não conseguem representar a existência material enquanto evento total, jamais o quadro completo de um homem, mas apenas uma sombra de sua verdadeira existência - sempre qualquer coisa de fragmentário. O poeta só deverá compreendê-la nos seus pontos duvidosos. Não esquecendo que nosso poder de raciocínio é sujeito a limites terreais, o poeta, ao deparar-se com os milhares de pontos indecifráveis da nossa existência, aí tentará interferir pela imaginação: “... continuarei a minha narração com sombria solicitude; pois que, se, pelo que vos diz respeito, vos tarda o momento de saberdes onde quer chegar a minha imaginação (prouvesse ao céu que na realidade não passasse de imaginação)...” (Lautréamont 1988, p.162)

Fracasso da ciência diante do irracional? É, geralmente, no mito que a vocação esotérica da matéria resplandece: Proteu, o Velho do Mar - uma espécie de pan-metamorfoseador nas páginas da “Odisséia” homérica. Ou Circe – a feiticeira homérica -, a mulher que um dia transformou os companheiros de Ulisses em porcos (8). Na poética de Lautréamont:

“... ela tinha prometido amor a cada um de vós, e por conseqüência enganou-vos aos dois. Mas não sois os únicos. Além disso, ela despojou-vos da vossa forma humana, transformando em cruel brincadeira as vossas dores mais santas.” (Lautréamont 1988, p.165)

Nesta passagem, o poeta parece conferir à mitologia uma dimensão pessoal, procurando desvendar o sentido da condição humana. Parece-nos evidente que, para alcançar a mundividência de Isidore Ducasse - freqüentemente apresentando o mundo às avessas -, é preciso que o leitor tenha conhecimento prévio do nosso patrimônio cultural (9).

Tal pressuposto intertextual vale para a constância dos motivos bíblicos que percorrem as páginas dos “Cantos de Maldoror”. Amotinador contra o Criador, Maldoror encerra-se, dramaticamente, em vestes sombrias na 3a. estrofe do Canto Quinto. A partir daí, os anjos decaídos são escolhidos como seus personagens prediletos. Na condição de solitário, escarnecedor do mundo, sua fronte aparece coroada de idéias e de crimes extravagantes; do sofrimento de milênios troa dos versos de Maldoror um satanismo elevado maravilhosamente à dimensão poética:

“Vedes na minha fronte essa pálida coroa? Foi a tenacidade que a entrançou com seus dedos magros (...) Humilhação! a nossa porta está aberta à curiosidade feroz do Bandido Celeste. Eu não mereci este suplício infame, ó horrendo espião da minha causalidade! Se existo, é porque não sou outro. Não admito em mim esta equívoca pluralidade. Quero morar sozinho no meu íntimo raciocinar (...) A minha subjetividade e o Criador, é de mais para um cérebro só...” (Lautréamont 1988, pp.166-7-8)

Suprimir o mal é golpear o bem. Lúcifer (o portador da luz) foi o primeiro nome de Cristo. Satã é um anjo, ainda que decaído. O mal e o bem estão entrelaçados:

“_ E quem és tu, tu, substância audaciosa? Não! ... não!... não estou enganado; e, apesar das múltiplas metamorfoses a que recorres, sempre a tua cabeça de serpente reluzirá diante dos meus olhos como um farol de eterna injustiça e de cruel dominação!” (Lautréamont 1988, p.170)

Pairando acima do bem e do mal, no abandono de si mesmo, na indiscrição, na revelação dos sentimentos mais íntimos, Maldoror, dissolvendo as dissonâncias e transformando-as em harmonias, proclama (10):

“Ó pederastas incompreensíveis, não serei eu a injuriar a vossa grande degradação (...) Legisladores de instituições estúpidas, inventores de uma moral estreita, afastai-vos de mim, porque eu sou uma alma imparcial ...”

(Lautréamont 1988, p.172)

Os poetas abalam como ninguém os muros que separam os conceitos das palavras. Afinal, “la creación poética se inicia como violencia sobre el lenguaje...” (Paz 1990, p.38) .

Habitando o mundo e penetrando no âmago do seu acontecer, os poetas captam o sentido misterioso que envolve o real.

Cada época da história da humanidade é uma época de errância. Superá-la não é negá-la, mas é ir além da mera aparência. Nossa época, coincidindo com uma revolução tecnológica sem precedentes, deve superar-se, para ir além da massificação despersonalizante.

Caberia, então, ao poeta que há em cada homem - consciente de que nunca estamos livres de fazer o mal - alterar os padrões estabelecidos e renovar as harmonias perdidas:

“A promessa vaga de que falavas não foi a nós que a fizeste, mas sim ao Ser que é mais forte do que tu: tu próprio compreendias que mais valia submeteres-te a este irrevogável decreto. Desperta, Maldoror!” (Lautréamont 1988, p.188)

O mal vem de longe e jamais se deixa intimidar!

NOTAS

1. Em uma de suas inesquecíveis aulas (consoante meus registros: em 1996, no Instituto de Ensino da Linguagem, da Unicamp), na qual eu me encontrava presente, a professora Jeanne Marie GAGNEBIN, filósofa e estudiosa do pensamento de Walter Benjamin, afirmou, subitamente, que a “Odisséia”, de Homero, “O Capital”, de Karl Marx e a “Bíblia” constituem-se nas três maiores fontes de sabedoria da nossa herança cultura, classificando tais textos como leituras obrigatórias a todos aqueles que desejam adquirir um grau razoável de cultura. Tal afirmação, tão repentina, provocou uma “onda” de risos no grupo de alunos, mas, logo em seguida, abalada por um silêncio perturbador que invadiu e se instaurou no ambiente, isto é, na sala de aula. Desprevenidos, rodopiamos...

Penso que, talvez, a beleza impactante daquele momento permaneça na memória dos privilegiados, que tiveram a oportunidade de ouvir tão rica e desconcertante lição.

A razão deste breve depoimento prende-se ao fato desta lição desconcertante - contida no mencionado roteiro de leitura proposto por Jeanne (o que implica na fusão da ciência, da mitologia e da religião) - ter provocado em mim uma profunda inquietação. Fantasmas começaram a povoar a minha consciência. E multiplicaram-se tão logo eu tive contato com os “Cantos de Maldoror”. Assim, a bela e desconcertante lição começou a guiar a minha leitura dos “Cantos...” ou desta ameaçadora poética. Portanto, o estudo que realizei dos enigmáticos “Cantos de Maldoror” inspira-se, em grande medida, nesse insinuante, atrativo, cintilante e perigoso labirinto que nos foi apontado por Jeanne Marie GAGNEBIN. Grato, Mestra!

2. Referimo-nos ao texto de Walter BENJAMIN intitulado “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”. In ‘Obras Escolhidas III’, São Paulo: Brasiliense, 1989.

3. Edgar Allan POE (1809/1849) - escritor americano de imaginação ardente e às vezes mórbida. Poeta maldito, crítico e teórico literário, E.A.POE tornou-se famoso com as histórias de horror, de mistério e de especulação metafísica. Com amplo poder de análise e forte sensibilidade, Poe criou uma obra original na qual a volúpia pelo sobrenatural mescla-se ao rigor da matemática. O conto intitulado “O escaravelho de ouro”, nesse sentido, parece-nos bastante ilustrativo. Para tanto, segue abaixo um breve trecho do referido conto:

“Legrand, então, levantou-se, com ar grave e imponente, e trouxe-me o bicho, tirando-o de uma caixa de vidro em que ele estava encerrado. Era um belo scarabaeus de tipo, naquele tempo desconhecido para os naturalistas e naturalmente de grande valor, do ponto de vista científico...” (p.15)

4. Sobre o tema ‘Lautréamont, leitor de Baudelaire’ consultar “Poesias de Isidore Ducasse: o argumento pela metamorfose”, de Joaquim Brasil FONTES. In “Letras”: R. do Instituto de Letras da Puccamp. Campinas, v.2, n.1, pp.93-109, abril 1983. Consoante FONTES:

“Em 1869, quando Isidore Ducasse termina a aventura de Lautréamont e tenta, ao que tudo indica desesperada e inutilmente, alcançar o público que o constitua como escritor, o romantismo já era letra morta... E o resultado da experiência ducassiana (...): é o aparecimento de um vazio no interior da plenitude verbal. De uma suspeita lançada sobre a própria linguagem, sobre a unidade do “sujeito pensante”, sobre a “verdade “do mundo burguês que esconde, atrás das fachadas “góticas” ou “renascença” de suas monumentais

construções, a modernidade da técnica e a verdade do dinheiro e do lucro.

(...) Lautréamont trabalha com o lixo, com os detritos de uma cultura: o romantismo que subsiste, na época, graças aos poetas provincianos e à nascente literatura de massa (...) Lautréamont lida com os fragmentos de um discurso que foi desprezado, colecionando-o, catalogando-o. Ao leitor de Baudelaire e de Walter Benjamin ocorre, inevitavelmente, a imagem do trapeiro” (Joaquim Brasil FONTES, in “Poesias de Isidore...”, p. 96)

5. CHENU, Jean C. (1808-1897), ortinólogo e naturalista francês é autor de uma Enciclopédia Natural.

6. Cf. Elias CANETTI. “Massa e Poder”. São Paulo: Cia. das Letras, 1995. O tema da metamorfose merece um especial interesse, porque coloca a questão do limite entre o humano e o animal. Não podemos nos esquecer que o poeta é um agenciador de metamorfoses, pois mostra o arcaico à luz do moderno e vice-versa. Em seguida, buscando refletir um pouco mais sobre tal questão, as palavras inaugurais de Elias Canetti no ensaio ‘A Metamorfose’ são precisas no que se refere a tal temática:

“A capacidade do homem de metamorfosear-se, que lhe rendeu tanto poder sobre as demais criaturas, foi ainda muito pouco estudada e compreendida. Constitui um dos maiores enigmas: todos a possuem, todos a empregam e todos a consideram absolutamente natural. Poucos, porém, têm consciência de que devem a ela o que possuem de melhor. É extraordinariamente difícil investigar a essência da metamorfose (...) (Cf. Canetti 1995, p.337)

7. É geralmente no mito que a vocação esotérica da matéria resplandece. Situemos aquele que, na mitologia clássica grega, é uma espécie de pan-metamorfoseador: o deus Proteu. No Canto IV da “Odisséia”, Homero assim descreve suas façanhas:

“Pelo meio-dia saiu o Velho do Mar, localizou as nédias focas, percorreu-as todas, contando o seu número; começou a contagem dos monstros por nós, sem mesmo suspeitar em seu ânimo uma trapaça; em seguida, deitou também ele. Nós, aos brados , saltamos-lhe em cima e envolvemo-lo nos braços. O velho não se esqueceu de suas manhas astuciosas; primeiro, tornou-se um leão de bela juba, depois uma serpente, um leopardo, um javali enorme; virou água fluente, uma árvore de altas frondes. Nós, porém, o segurávamos com firmeza, pacientemente. Quando , afinal, o velho artificioso se cansou, começou a falar perguntando: “Que divindade, filho de Atreu, te aconselhou e deu a idéia de ficares de emboscada e me agarrares mau grado meu? O que estás querendo...” (Cf. Homero 1994, pp.50-1)

8. Um dia os companheiros de Ulisses foram transformados em porcos:

“Parados no vestíbulo da deusa de belas madeixas, ouviam a voz maviosa de Circe, que, dentro cantava, indo e vindo a tecer uma trama grande e imperecível como são os trabalhos finos, bonitos e brilhantes, das deusas. O primeiro entre eles a falar foi Polita, cabecilha de guerreiros, o mais caro e precioso de meus camaradas:

_ Amigos, uma tecelã canta lá dentro maviosamente, indo e vindo diante duma grande trama, e o soalho todo ecoa. Deusa ou mulher, eia, não demoremos a chamá-la.

Assim falou Polita e eles chamaram-na bradando. Ela não tardou a sair; abriu as luzidias portas e convidou-os. Todo o grupo, em sua ignorância seguiu-a (...) Ela os fez entrar e sentar (...) preparou-lhes uma papa (...) nessa comida misturou drogas daninhas, para tirar-lhes toda lembrança da terra pátria. Assim que lha serviu e eles a sorveram, bateu-lhes com a vara de condão e fechou-os em pocilgas. Tinham agora cabeça, voz, cerdas e corpo de suínos, embora conservassem inteligência como antes. Foram assim encurralados a chorar e Circe deitou-lhes glandes, bolotas, pilritos para comer, alimento habitual de porcos que chafurdam na lama.” (Cf. Homero 1994, p.118).

De outra parte, uma tradição controversa diz que certos teólogos possuíam a opinião de que a mulher era, por natureza, mais próxima dos animais que dos humanos. (in nota de rodapé n. 16, “Cantos de Maldoror” - apresentado e comentado por Louis FORESTIER. Paris: Imprimerie Nationale Éditions, 1990)

9. Lautréamont exige que o leitor tenha conhecimento do patrimônio cultural. Contudo, outro fator complicador: Lautréamont apresenta o mundo às avessas, o mundo de cabeça para baixo. Aqui, vale lembrar que o texto, na concepção de Bakhtin, é “tecido polifonicamente por fios dialógicos de vozes que polemizam entre si, se completam ou respondem umas às outras. Afirma-se o primado do intertextual sobre o textual (...)” Deve-se observar que a intertextualidade na concepção de Bakhtin é, antes de tudo, a intertextualidade interna das vozes que falam e polemizam no texto, nele reproduzindo o diálogo com outros textos.

Nesse sentido, intertextualidade não é plágio, mas trata-se de um apoderar-se dos textos dos outros, sabendo que os leitores vão reconhecer tal apropriação.

Dentro de uma perspectiva filosófica, para tais questões, também Michel Foucault já dissera, com acerto, que cada discurso se defini em relação aos outros. (Cf. Michel FOUCAULT in “A ordem do discurso”)

10. Consoante estudos do filósofo francês Michel Foucault, o início do século XIX assinala o momento em que a medicina, criticando seu passado e para justificar sua originalidade, se apresenta como medicina científica. O novo tipo de configuração que caracteriza a medicina moderna implica no surgimento de novas formas de conhecimento e novas práticas institucionais. (Cf. Michel FOUCAULT in “O Nascimento da Clínica”). Daqui resulta um trágico fato: a construção do mito da homossexualidade no decorrer do século XIX.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BAKHTIN, Mikhail. “Problemas da Poética de Dostoiévski”. Tradução Paulo Bezerra. Rio de Janeiro: Forense, 1981.

BENJAMIN, Walter. “Charles Baudelaire: um lírico no auge do capitalismo”. Tradução José C. Barbosa, Hemerson A. Baptista In: ‘Obras Escolhidas III’, v.3 , São Paulo: Brasiliense, 1989.

____. “Rua de Mão Única”. Tradução Rubens R. R. Torres Filho. In ‘Obras Escolhidas II’, v.2, São Paulo: Brasiliense, 1987.

BRESCIANI, Maria S. M. “Londres e Paris no século XIX: o espetáculo da pobreza”. 6 ed. São Paulo: Brasiliense, 1990.

CANETTI, Elias. “Massa e Poder”. Tradução Sérgio Telarolli. São Paulo: Cia. das Letras, 1995.

DARNTON, Robert. “O Iluminismo como Negócio: história da publicação da Enciclopédia 1775-1800”. Tradução Laura T. Motta, Maria L. Machado. São Paulo: Cia das Letras, 1996.

FOUCAULT, Michel. “A Ordem do Discurso”. Tradução Laura F. A. Sampaio. São Paulo: Loyola, 1996.

________. “O Nascimento da Clínica”. 3 ed. Tradução Roberto Machado. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1987.

HOMERO. “Odisséia”. Tradução Jaime Bruna. 13 ed. São Paulo: Cultrix, 1994.

LAUTRÉAMONT, Conde de. “Cantos de Maldoror”. Tradução Pedro Tamen Lisboa: Fenda Edições, 1988.

PAZ, Octavio. “El Arco y la Lira : el poema, la revelación poética, poesía e historia”. 7 ed. México: CFE, 1990.

POE, Edgar A. “Histórias Extraordinárias”. Tradução Oscar Mendes, Milton Amado. Rio de Janeiro: Editora Globo, 1987.

REVISTA:

1) “Letras”. R. do Instituto de Letras da Puccamp, v.2, n.1, abril 1983.

OUTRAS FONTES:

1) “A Bíblia de Jerusalém”. 7ed. Paulus: São Paulo, 1995.

PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS