"Religião e Caridade" =Paradoxos-

Ele estava concentrado na leitura e não percebeu a avó entrando na sala e aproximando-se dele. Assustou-se ao sentir pingos d’água atingindo sua cabeça raspada:

-Pô!! Que negócio é esse, vó? Está ficando maluca?

-Desculpe-me se te assustei, filho. É água benta que estou espalhando pela casa toda.

-Água benta...E quem foi que benzeu essa coisa? Aquele padre viadinho da igreja que a senhora freqüenta? Aquele que namora o sacristão em plena missa?

-Não fale desse jeito, menino...Isso é pecado. Não se pode falar mal de padre.

Ele riu.

-Essa é boa, vó! Muito boa mesmo. “Não se pode falar mal de padre...”. Chamar aquele tipo de viadinho é pouco, vó. Muito pouco mesmo. O sujeito é um descarado. Ele e o sacristão trocam olhares de amor em plena missa. Não fazem o menor segredo que têm um caso.

- Você, por um acaso, freqüenta a missa pra poder dizer uma coisa dessas?

- A senhora sabe muito bem que não tenho religião. Naquele dia em que tive que acompanhá-la à missa eu vi o jeitão dos dois safados. Não tenho nada a ver com a vida deles nem com o homossexualismo dos dois, mas namorar em plena missa é revoltante. Quando o sacristão saiu rebolando com o turíbulo na nave e o padre foi atrás, rebolando também, ficou parecendo ensaio de desfile de escola de samba.

- Você podia muito bem deixar de bobagens e freqüentar a missa comigo, menino.

Ele riu de novo.

- Só a senhora mesmo pra me chamar de menino e achar que um dia me verá na igreja, vó. Nem morto quero ver padre perto de mim.

- Se você soubesse quanto me dói ouvir você falando assim...

- Não devia doer nada, vó. A vida é minha, as opiniões são minhas, a crença ou descrença são um direito meu e, desculpe-me a rudeza, a senhora não tem nada a ver com isso. Lembre-se que, apesar da senhora me chamar de menino, já sou um homem de meia idade.

- Mas você pertence a uma família católica...

- Em primeiro lugar eu não “pertenço” porque não sou objeto. Em segundo lugar a família não pode impor crença alguma. Pode apenas sacanear a gente desde criança incutindo os conceitos nos quais nem ela mesma crê. Nem ao menos bons exemplos católicos sabem dar, na grande maioria dos casos.

- Quanto a mim, tenho certeza de que sempre fui uma boa católica.

- Bem, vó, essa é a sua opinião. A minha, a seu respeito, é bem diferente.

- Você não me considera uma boa católica? Vou à missa todos os domingos, rezo o terço todos os dias, faço as novenas quando preciso, acendo velas para os meus santos, batizei todos os meus filhos. Porque é que eu não seria uma boa católica?

- Em minha opinião, minha querida avó, a senhora é boa cumpridora dos ritos católicos mas não é boa católica. Nem nunca foi.

A velhinha fechou a cara e sentou-se com raiva na poltrona à frente dele.

- Agora você vai me dizer tudo que acha a meu respeito. De uma vez por todas.

- Sem problema, vó. Vamos por partes: a senhora é racista. Nunca me esqueci do dia em que o Pelé apareceu na televisão pela milionésima vez e a senhora disse “Esse preto pensa até que é gente.” Nunca, vó, nunca, em toda minha vida, ouvi uma frase tão cruel sobre uma pessoa negra. O Pelé, vó, é muito gente. Muito mais gente que a senhora, muito mais importante para o país e para o mundo que cem mil de cada um de nós dois. É um homem conhecido e respeitado no mundo todo. Um atleta que nunca se deixou vender para anunciar bebidas e cigarros. Essa frase da senhora é apenas uma das muitas que já a ouvi dizendo sobre os que a senhora chama de “pretos”, como se fossem objetos e não pessoas.

- É só isso que tem a dizer sobre mim e os pretos?

- Negros, vó. Ou, como dizem hoje, afro-descendentes. Tenho mais a dizer, caso queira me ouvir.

- Claro que quero. Pode desembuchar.

- O modo como a senhora olha e trata a empregada. Fico impressionado com a paciência da moça. Ela leva em conta a sua idade, sabe que a senhora veio de uma outra época e releva, mas eu, no lugar dela, mandaria um palavrão à senhora e pediria as contas.

- O que é que eu faço de errado com ela? Você pode me dizer?

- Com todo o prazer. Falando com ela, parece que a senhora nunca ouviu mencionar a importância das palavras “obrigado”, “por favor”, “com licença”, enfim, aquelas palavras amáveis que a senhora usa para com os que considera seus iguais. Com ela a senhora é curta, grossa, seca mesmo. A ponto de doer na gente, nos daqui de casa que gostam dela e a tratam como o bom ser humano que é.

- E ela, por acaso, é minha igual?

- Não senhora. De maneira alguma.

- Está vendo? Você mesmo reconhece que ela não é minha igual.

- Ela é superior, vó. Ela é muito superior à senhora nos quesitos educação, boas maneiras, gentileza, paciência, compreensão.

- Se é tudo isso, meu filho, é apenas por causa do salário e das mordomias que tem aqui.

- A senhora acha mesmo? Então vamos fazer um teste. Amanhã eu a despeço e a senhora verá em quanto tempo ela estará empregada de novo, com um salário melhor do que o que podemos pagar e sem ter que agüentar uma senhora de idade que só se dirige a ela como se fosse uma escrava, dando ordens de maneira curta e grossa. Aliás, se a senhora continuar tratando-a como trata, tenha certeza de que é o que vou fazer. Sem empregada em casa a sua vida será menos confortável.

- Acabamos nos desviando do assunto...

- O assunto catolicismo? Não nos afastamos nem por um segundo dele. Tudo que lhe disse até agora tem a ver com catolicismo diretamente. Ou a Igreja católica não foi fundada sob a égide da caridade? Adianta cumprir todos os ritos, fazer toda aquela papagaiada de abrir a boca pra receber uma hóstia com aquela cara de santidade, persignar-se a toda hora, e depois tratar os outros como se fossem inferiores? Achar que negros, subalternos, mendigos, gente que pensa diferente da gente são inferiores é caridade? Eu acho que não. Eu acho que é discriminação, prepotência, arrogância que são, aliás, bem resumidas na tal “infalibilidade papal”. Pretensão e água benta...

- Nunca imaginei que um dia fosse ouvir de você, meu neto preferido, as coisas que me disse. Que decepção...

- E eu nunca imaginei que a senhora desrespeitaria meu modo de pensar me jogando a tal da água que a senhora chama de benta. Se acontecer de novo, vó, eu vou colocar uma macumba completa no seu quarto.

- Em macumba você acredita; né?

- Eu não, mas a senhora, como é boa católica, aposto que acredita.

Fernando Brandi
Enviado por Fernando Brandi em 02/02/2009
Código do texto: T1418674
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