A NECESSIDADE DA DEMOCRACIA: o que é democracia e por que ela é necessária.

Defino, para início de análise, que “ideal” é um conceito cuja existência, ou é contraditória em si mesma, ou, apesar de possível em certas condições, as condições mundanas recusem agora e tenderão a recusar para sempre a sua existência. Por exemplo, se sabemos que as pessoas discordam entre si e que isso inelutavelmente tende a se manter, é acreditar num ideal se trabalho por uma concórdia de todos acerca de tudo. Se, todavia, tenho objetivo de voar e sei que daqui a uma hora terei asas, não busco um ideal.

Começo por essa definição para que o leitor não desista de continuar já neste parágrafo. Faria isso com razão: poderia supor inútil tal discussão, uma vez que dissertar sobre utopias não teria nenhuma importância além da estética. Este escrito pretende, pelo contrário, contribuir para a ação. Por isso, apresento um conceito de democracia em que ela é possível. Conceito oposto às imagens ideais que dela se costumam ter, as quais fazem muitos equivocadamente a recusarem como factível.

A abordagem da democracia, aqui, será a respeito do que de mais profundo deve prevalecer para que um regime não perca o caráter democrático. Não listarei nenhuma instituição, código ou leis senão aquelas que regem a essência da democracia e que, portanto, decorrem do conceito a seguir: democracia é o método que media a convivência humana baseado numa ética fundamental cujo objetivo é dar máxima liberdade possível ao máximo possível de pessoas de um grupo e ao máximo de cada uma delas.

A democracia é sempre aplicada a um grupo de pessoas. Daí o motivo de a ética que a funda ser um tipo de ética social, que é aquela que media as relações entre os humanos. Porque a única parte interna ao ser humano que envolve uma demanda da democracia, é aquela que determina a disposição do indivíduo para contribuir à democracia – nada mais. Isso quer dizer que o regime que aplico ao meu espírito ou a minhas ações dentro de meu “círculo liberdade” parte de minha vontade, e são adequados assim.

É costume apresentar ética e moral como sinônimos. Todavia, denominando por “Moral”, toda ética ou moral que não é a que funda a democracia, algum motivo deve haver para que a “ética fundamental” se diferencie das demais. Esse motivo parte da premissa de que, ao contrário das demais, a ética fundamental se pauta pelo estabelecimento da “máxima liberdade possível ao máximo possível de pessoas de um grupo e ao máximo de cada uma delas”, conforme já dito.

O conceito de liberdade, tomado plenamente, é um ideal. De onde decorre que toda liberdade praticável cerceia outra liberdade. Ora, a liberdade total é uma contradição no ato, uma vez que, p.ex., se tenho liberdade para existir como corpo, ocupo um lugar no espaço, em determinado tempo, que não é livre para nada (que não seja eu) ocupá-lo. No caso das relações humanas, não posso estapear alguém apenas porque quero. Então, as liberdades factíveis devem trazer junto a elas palavras que as caracterizem.

A ética fundamental, ao determinar a sua “máxima liberdade possível”, entende que esta é mesmo a maior que pode haver numa convivência humana. Já nisso, nega a liberdade ideal, – que seria “total” –, em sua contradição em relação à convivência. Nega baseada na idéia de que as pessoas são seres diversos entre si, cada ser humano com personalidade e peculiaridades tais que os definem como sendo cada um. Posto que cada ser livre “exerce-se” (exerce a si mesmo, ou seja, vive livre) de vontade, não é praticável que todos os seres exerçam toda sua liberdade, uma vez que as liberdades se interceptam, se obstruem.

A “lei do mais forte”, em todas as suas formas, cumpre a função de dar liberdade máxima possível, mas somente a poucos indivíduos. A Moral, por seu lado, pode dar certa liberdade a muitos indivíduos, mas, não raro, esta liberdade é mínima demais. Ou, se quisermos ser tenaz no pensamento, não fornece liberdade nenhuma. Uma vez que se a liberdade é necessariamente consciente, – partindo da premissa de que quando uma pessoa entende plenamente a democracia, entende também a sua necessidade de ser aplicada –, logo a pessoa está em falta de consciência.

A consciência (ou “esclarecimento”), na democracia, entretanto, tem peculiaridades que devem ser explicadas. Afinal, com razão o leitor pode acusar-me de antidemocrata, porque a determinação de consciência, fora do ambiente democrático, é sempre unilateral. Mas, antes que se julgue precipitadamente, peço que se leia os próximos parágrafos, nos quais pretendo explanar acerca dessa questão, inclusive com exemplos e completar a explicação do conceito.

Um texto como este, que fala em democracia de maneira essencial, jamais poderia supor coisas específicas de um tipo de democracia. Ora, se no conceito de democracia eu dissesse que é necessário um tribunal com seis juízes, me contradiria no conceito verdadeiro na medida em que delego a mim uma decisão que deve ser dos integrantes internos a cada democracia. Entretanto, quando não estou definindo o conceito, posso sugerir e defender o tal tribunal.

Imaginemos que certa democracia proibisse opiniões externas (as bloqueasse). Aceitando que isso acontecesse, poderemos usá-lo como exemplo para definir a variação da democracia. Então, supondo que a proibição fosse fruto das peculiaridades culturais daquele grupo (nação, país, departamento), notemos que a cultura parece uma grande questão na democracia, mas que não é problema para o seu conceito, inclusive no ponto em que este afirma a necessidade da democracia.

Reparemos que, segundo o conceito que exponho, a cultura de um povo pode determinar o que para ele é liberdade e, portanto, de que forma exercerão sua democracia. E venho dizendo que a democracia é necessária, o que pode exortar a pergunta “e se uma cultura entender que a democracia não é necessária?”. A resposta se segue de que todo povo é composto de seres humanos, fundamentalmente, e de que todo ser humano guarda algo de comum entre si (por definição).

Quanto menos consciência se tem, menor a capacidade de ser livre, se falamos de liberdade do sujeito (em suas diversas concepções, inclusive nas de sua auto-anulação). Entre outras coisas, porque os seres humanos têm suas decisões fundadas na sua consciência. Se minha consciência é condicionada, não sou livre. Se ela é inelutavelmente condicionada, posso reduzir o condicionamento... Porém a relatividade filosófica diz que, ainda assim, determinar o que é o esclarecimento é muito unilateral. Todavia nesse caso afirmá-lo é um equívoco.

Se conheço algo verdadeiro ou passível de sê-lo, e no entanto escondo, privo outrem de uma idéia verdadeira, componente da consciência (qualquer que ela seja). Então, se é verdade que a afirmação “não existe verdade” é contraditória em si mesma (e, portanto, existe verdade), o máximo de trabalho que posso fazer em favor do desenvolvimento da consciência de alguém é fazê-lo entender as idéias existentes em mim e nos outros indivíduos. E entre essas idéias, um parâmetro para a verdade residente na capacidade humana de pensar.

Os seres em geral tendem a se afirmar. No caso do homem, provido da capacidade de conhecer, as vontades e respectivas ações o afirmam. Sempre alguém deseja se afirmar, mesmo quando tenta o suicídio, pois – ao contrário do que se pode pensar – de nada abdicou em relação à sua vontade (que é se matar). Desse entendimento prévio, notemos que o método democrático se faz necessário, na medida em que: 1.via de regra, um ser quer se afirmar e; 2. a democracia pela liberdade possível lhe dá oportunidade disto.

E mais, se os indivíduos que convivem desejam se afirmar, é óbvio que a mediação que lhes dará a Máxima liberdade será a que permitir que eles “auto-determinem” a sua liberdade, muito embora o preço a pagar para que uma liberdade Máxima seja também Possível os force a impor limites. (Daí também: um sistema democrático não pode ser imposto.) Na prática, ocorrem círculos de liberdade, cujos raios são determinados pelos próprios integrantes do grupo.

Se tenho opção por uma religião, a praticarei desde que não ofenda outra pessoa; o que será considerado “ofensa” é uma decisão que passa pelo crivo dos que convivem. Quero ser-me assim como outros e como qualquer um quer ser-se. Diante dos conflitos que isso pode causar, podemos encontrar, por um método racional, uma maneira de todos sermos mais nós mesmos (mais livres) até a fronteira do ser alheio.

Há uma confusão, no entanto, a este respeito. Confunde-se a vontade democrática sempre como a vontade da maioria de um grupo. Quando ela gira, na verdade, em torno da auto-afirmação de cada homem. E é a partir disso mesmo que se conclui que independente de traços culturais, por todos os povos serem compostos de pessoas e as pessoas tenderem a se afirmar: a cultura não é um obstáculo para a democracia.

Pelo menos é assim quando admitimos a democracia da forma correta, pelo conceito que exponho, o qual discorre sobre o substrato essencial da democracia, que é unívoco, e podemos denominar “infra-estrutura”. Enquanto que, estabelecida a infra-estrutura, a “superestrutura” democrática varia segundo as peculiaridades de cada grupo. Instituições e leis são exemplos da superestrutura que um povo pode evocar para sustentar os pontos de uma democracia; pontos como a autodeterminação do indivíduo – ex. de infra-estrutura.

Suponhamos que numa ilha haja um tipo de regime que outro país, em nome de um modelo particular de democracia, queira derrubar. É democrático fazê-lo?

Nesse caso, o regime em si, a coisa instituída, é a superestrutura. Tendo-o em vista, assim como a consciência deve subjazer cada indivíduo em sua ação democrática, as ações de mudança na superestrutura devem ter como parâmetro de verdade o alcance ou manutenção da democracia segundo a razão. Porque, em primeiro lugar, a razão é o método universal de discussão por excelência, e quem me lê o afirma em sua prática.

Em segundo lugar, é evidente, – se aceito o que já foi dito –, que esse julgamento a respeito da democracia ou não de um país deve ser feito a partir da infra-estrutura democrática, visto que ela é unívoca para todos os povos. Deve-se avaliar, portanto, se é vontade consciente dos indivíduos manter aquele regime. A possibilidade de não sê-lo, varia: desde por força até por ideologia (alienação). Quanto à força, o julgamento é mais fácil, mas quanto à consciência devem ser observado os pontos a que já me referi.

Um exemplo mais específico: não é uma democracia um regime que institui, por força, um bloqueio de informações exteriores. Isso é uma sabotagem de consciência, salvo se não foi esta mesma por parte da maioria dos indivíduos que determinou o bloqueio; por outro lado, tampouco é democrático um país que apenas qualifica trabalhadores, sem educá-los à consciência e ainda proibi que outro o faça (eduque, sugira): sabota a consciência e, portanto, a infra-estrutura democrática.

O julgamento que posso fazer a respeito de que alguma pessoa ou grupo, em um país, p.ex., é perseguido, oprimido por força, é mais simples, pois a verdade é o fato. Nesse caso a força deve ser mobilizada – e o “julgamento do fato” ficará a cargo de quem deve observar nele as contradições em relação à infra-estrutura. Ou seja, cidadãos que são coagidos pela força, embora passíveis de serem consciente, não agem e não tem voz alguma em seu sistema, logo há negação da auto-determinação, de sua liberdade.

Neste sentido, devo explicar melhor o que havia dito em relação ao centro de gravidade da democracia estar no indivíduo, e não na maioria. Hipoteticamente, um indivíduo reside num Estado democrático sente-se prejudicado por determinações da maioria e então deseja sair de lá. Reparemos que, se algum país o quer acolher, e aquele Estado proibir o indivíduo – sem razões democráticas – de ir. Como o que deve prevalecer é a máxima liberdade possível, é antidemocrático impedi-lo de sair.

A intervenção sugestiva sobre os demais indivíduos, – quer seja numa democracia, quer não –, é a política democrática em si. Não é possível interagir democraticamente senão pela sugestão. De forma que, agir de modo democrático, é eliminar as barreiras que há para o alcance de todos indivíduos pelas sugestões de quem deseja se manifestar. E isso transcende a cultura, pelo que já disse, exatamente no ponto em que todo ser humano deve ser livre por si para determinar o que é ser livre em seu grupo.