Crise econômica mundial: Moeda, mediação e intervenção do Estado

A crise mundial deve, no mínimo, recolocar o símbolo moeda no seu devido lugar, aliás, de onde nunca deveria ter saído: a Moeda é meio e não fim. A moeda não pode ser a mercadoria mais valiosa do mundo! O momento atual exige a criação de um novo modo de atividade econômica, onde a moeda atue como mediadora no conjunto das demais atividades sociais, e não seja mais o principal elemento da vida social. A análise é de Ademir Buitoni

Ademir Buitoni

1. O Caráter Monetário da Crise Global - 2. A Moeda Como Símbolo - 3. Funções da Moeda - 4. O Estado: Entre a Intervenção e a Mediação - 5. Crise Econômica e Crise Ecológica - 6. Conclusões.

1. O CARÁTER MONETÁRIO DA CRISE GLOBAL

O ano de 2008 registrou uma das mais graves e profundas crises econômicas dos últimos cem anos, com conseqüências ainda imprevisíveis para a vida dos cidadãos deste complexo mundo do século XXI. Trata-se de uma crise que só superficial e aparentemente tem origem nas questões do inadimplemento das hipotecas americanas (sub prime), mas que, na verdade, vem se desenhando há muito mais tempo no atual sistema econômico capitalista.

O Prêmio Nobel de Economia Joseph Stiglitz avaliou que essa crise representou a queda do conceito do fundamentalismo do mercado livre, assim como a queda do Muro de Berlim foi o símbolo do fim do comunismo. Disse ele: ”O programa da globalização esteve estreitamente ligado aos fundamentalistas do mercado: a ideologia dos mercados livres e a liberalização financeira. Nesta crise observamos que as instituições mais baseadas no mercado vieram abaixo e correram a pedir ajuda do Estado. Todo mundo dirá agora que este é o final do fundamentalismo de mercado. Neste sentido a crise de Wall Street é para o fundamentalismo de mercado o que a queda do muro de Berlim foi para o comunismo: ela diz ao mundo que este modo de organização econômica é insustentável” (cf.Joseph Stiglitz, entrevista para El Pais, Nathan Gardels, 25.9.08).

A dimensão da crise parece ser mais ampla atingindo, inclusive, outros campos da atividade humana, ligados á ecologia, produção de energia e alimentos, como já foi também observado:

“Nunca havia acontecido antes. Pela primeira vez na história da economia moderna, três crises de grande amplitude – financeira, energética e alimentar – estão em conjunção, confluindo e combinando-se. Cada uma delas interage sobre as demais, agravando, de modo exponencial, a deterioração da economia real. Por mais que as autoridades se esforcem em minimizar a gravidade do momento, o certo é que nos encontramos diante de um sismo econômico de magnitude inédita, cujos efeitos sociais, que mal começaram a se fazer sentir, explodirão nos próximos meses com toda a brutalidade.” (cf. Ignácio Ramonet, Le Monde Diplomatique, julho/2008). Em decorrência mesmo de vivermos numa sociedade globalizada a crise assume proporções globais.

Nosso foco, porém, neste artigo, é analisar mais o caráter financeiro da crise, ou seja, as questões ligadas, sobretudo ao fenômeno da moeda, ao fluxo monetário mundial, assuntos pertinentes basicamente ao uso simbólico da moeda. Vamos discutir o que é e como funciona, no centro da crise, essa formidável e idolatrada invenção humana: a moeda.

Nas outras crises econômicas as discussões principais foram ligadas ao excesso ou escassez de produção de mercadorias, ao controle de preços, a dominação de mercados, proibição de importações, estímulo de exportações ou problemas análogos. O problema agora é o dinheiro, a moeda, é como lidar com o complexo mercado financeiro nacional e internacional. O funcionamento e utilização da moeda, que o liberalismo tratou com tolerância, quase sem limites, nos últimos anos, entrou em crise, apresentando surpresas, anomalias e instabilidades difíceis de serem controladas. Isso levou, recentemente, o conhecido economista Alan Greespan, ex-presidente do Fed (O Banco Central dos Estados Unidos), a declarar que errou, parcialmente, ao acreditar que as instituições financeiras não seriam irresponsáveis nos empréstimos, como foram (cf. Folha de São Paulo, 26/10/2008, “Greespan admite ter errado parcialmente”).

Os governos dos Estados Unidos da América do Norte, da União Européia, Japão, da maioria dos países, inclusive o Brasil, passaram a intervir para ajudar os bancos, empresas de seguro e outras, visando proteger os interesses e a poupança dos cidadãos, enfim de todos, ameaçados de perder o dinheiro. O Estado vem atuando fortemente como Interventor visando manter o funcionamento do sistema econômico vigente e resolver a crise, pois a ideologia do Mercado livre se mostrou sem condições para tanto.

Nesse contexto, parece ser necessário voltar a refletir sobre a moeda, sua origem, seu significado, sua finalidade, pois acabamos achando tão natural usar o dinheiro que esquecemos que ela é um produto da civilização humana, um instrumento mediador para facilitar a atividade social da humanidade. A moeda não é a finalidade principal do sistema econômico. A moeda é um meio e não o fim da atividade econômica, como discutiremos a seguir.

2. A MOEDA COMO SÍMBOLO

A origem da moeda, apesar de não haver precisão absoluta, é atribuída aos Lídios, no século VII, entre 687 e 650 A.C, pois eles unificaram o sistema de cunhagem. (Rivoire,1985, 9). Mas antes disso, no terceiro milênio AC já existia o ouro como unidade de conta no Egito e a prata na Mesopotâmia. Os chineses a partir do séc. IX AC, usavam o bronze como meio de pagamento, em diversas formas de inscrições gravadas.

Ou seja, a moeda não existia num estágio anterior da civilização, ela aparece junto com as formas mais evoluídas de organização social, substituindo o escambo ou troca material de mercadorias por mercadorias equivalentes, por um padrão mais abstrato de troca. A partir da Grécia e da Pérsia, sobretudo, a moeda vai se espalhar pelo Mediterrâneo, vai para Roma, para todo o Ocidente medieval e renascentista, sendo então objeto de estudos de Teólogos, de Filósofos, como Platão, e outros pensadores.

Desde sua criação a moeda passou a representar um instrumento poderoso de realização dos desejos do ser humano, pela suas principais funções de: instrumento de troca, padrão de valor, meio de pagamento e reserva de valor. Possuir moeda, nesse contexto, passou a significar possuir poder, ter acesso aos bens materiais, poder comprar mercadorias, utilidades e outros bens.

A partir da invenção da moeda os fenômenos monetários passaram a intrigar e inquietar a atividade da sociedade. Talvez a moeda seja a realidade que penetra mais intimamente na vida privada de cada um, pois é, principalmente, pela mediação monetária que as pessoas satisfazem suas necessidades e desejos.

Este mundo global é cada vez mais penetrado pelo fato econômico e pelo predomínio do capital financeiro sobre o capital produtivo. De outro lado, o capitalismo para operar necessita da estrutura da regulamentação jurídica. Então cabe indagar: Qual a contribuição do Direito diante do fenômeno monetário?

Várias abordagens podem servir para discutir a natureza da moeda: seria a moeda fruto da necessidade econômica? Da linguagem jurídica? Da cobiça? Da violência? Da soberania do Estado?

A moeda se presta a diferentes tipos de análise, é difícil entender a moeda, como já bem observado: "A teoria monetária é como um jardim japonês... uma simplicidade aparente esconde uma sofisticada realidade” (Friedman, 1992, 23).

Dentro dessa complexidade, o tratamento mais adequado, a nosso ver, é encarar a moeda como símbolo porque nos parece mais próximo do aspecto jurídico: símbolo é convenção e o Direito Positivo depende, basicamente, das convenções. Mas o conceito de símbolo vem da linguagem humana, daí a necessidade de recorrer a conceitos da Semiótica.

A linguagem utiliza signos. Na definição de Pierce o signo “é um cognoscível, que por um lado é determinado por algo que não ele mesmo, denominado de seu objeto, enquanto, por outro lado, determina alguma mente concreta ou potencial” (Pierce, 1960,160) Ou, de um modo mais simples: "Signo é uma coisa que representa outra coisa: seu objeto. Ele só pode funcionar como signo se carregar esse poder de representar, substituir uma outra coisa diferente dele. Ora, o signo não é o objeto. Ele apenas está no lugar do objeto” (Santaella, 1988, 78). Portanto, o signo representa o objeto, mas com ele não se confunde. Símbolos, portanto, são tipos gerais aceitos por convenção como representantes do objeto. "Sendo uma lei, em relação ao seu objeto o signo é um símbolo. Isto porque ele não representa seu objeto em virtude do caráter de sua qualidade (hipoícone), nem por manter em relação ao seu objeto uma conexão de fato (índice), mas extrai seu poder de representação porque é portador de uma lei que, por convenção ou pacto coletivo, determina que aquele signo represente seu objeto” (Santaella, 1988, 91,92).

Nesse sentido a moeda é um símbolo porque assim foi convencionado, substitui o objeto que representa. A moeda é signo de grande poder de representação: substitui uma série indefinida de objetos, mediando quase todas as trocas num determinado contexto econômico. A moeda, além disso, é símbolo porque resulta de uma convenção social, impondo-se a todos como representante geral do valor de bens e serviços desejados pelas pessoas. A moeda é de tamanha utilidade que sua posse e acumulação acabou definindo um modelo de sistema econômico, o capitalismo, em que o dinheiro é o elemento principal do sistema.

Ter e usar o dinheiro acabou sendo tão natural que o ser humano talvez tenha perdido a consciência do artifício que representa a moeda. Mas a moeda continua sendo criação humana do mesmo modo que a fala. ”A moeda é tão pouco natural quanto o é a fala" (Aglieta, 1990, 25). Como falamos, espontaneamente, usamos moedas, espontaneamente.

A moeda tornou-se, assim, um dos símbolos mais conhecidos e desejados do mundo, fazendo as pessoas confundirem a representação simbólica com a realidade. Mas ela não é uma realidade por si mesma, é um símbolo a que se atribuiu valor. O monetarista Milton Friedman é categórico: “Os pedaços de papel verde têm valor porque todo mundo acha que eles têm valor”. Todo mundo pensa que eles têm valor porque, segundo a experiência de todos, tiveram valor.

Essa ficção não é nada frágil. Pelo contrário, o valor de ter uma moeda comum é tão grande, que as pessoas defenderão a ficção mesmo sob uma provocação extrema. Mas também a ficção não é indestrutível: a frase americana “não vale um continental “ é um lembrete de como a ficção foi destruída pela quantidade excessiva de moeda continental que o Congresso Continental emitiu para financiar a Revolução Americana” (Friedman, 1992, 23)”.

Como todo símbolo, a moeda para ser forte deve ser respeitada, ter credibilidade. Porém, a atual crise econômica mundial é um desses momentos críticos em que o símbolo-moeda perde o prestígio. Quando isso acontece a história mostra que as economias não voltam ao escambo, ou seja, á economia das trocas das mercadorias por outras mercadorias, mas, pelo contrário, mantêm a moeda trocando-a por outro símbolo, eliminando moedas ruins, criando novas regras jurídicas para o mercado e procedimentos afins, como estamos assistindo no mundo todo.

A moeda, de uma forma ou de outra sobrevive. É impossível neste momento, imaginar uma economia não-monetária. Inexiste outro símbolo que faça o papel da moeda: a moeda tem sido insubstituível desde seu surgimento. Como símbolo acabou sendo o símbolo máximo, de maior importância, do sistema econômico capitalista global, suplantando os demais símbolos nacionais, religiosos, políticos, ideológicos e afins.

Por outro lado, não cabe ao campo de conhecimento da Economia, mas ao Ordenamento Jurídico dar valor á moeda e definir suas funções como veremos a seguir.

3. FUNÇÕES DA MOEDA

A moeda oscila entre a Economia e o Direito do ponto de vista funcional. Nascida na prática para mediar as trocas de mercadorias, com o tempo foi se tornando cada vez mais dependente da ordem jurídica e, modernamente, do Estado que possui o monopólio da emissão da moeda.

Isso não significa que a Moeda deixou de ser um símbolo de valor, mas que o Direito deu uma nova estrutura ás funções da moeda. As funções básicas da moeda são: padrão de valor, instrumento de troca, meio de pagamento e reserva de valor. Do ponto de vista da Economia prevalece a função de instrumento de troca e de reserva de valor. A partir do pós-guerra, de 1945 em diante, a função principal tem sido de reserva de valor, acompanhando justamente a evolução do capitalismo produtivo para o financeiro.

A “financeirização” da economia, que chegou ao auge agora, representa também o aspecto predominante da atual crise.

Para o Direito a função predominante da Moeda é a de meio de pagamento e padrão de valor. Mas, na verdade, todas essas funções interagem, umas com as outras, numa complexidade que só para efeitos de análise se distinguem. Tais funções são regulamentadas pelo ordenamento jurídico de cada Estado, variando conforme o contexto econômico.

Historicamente a função mais importante da moeda sempre foi como instrumento de troca, e talvez seja necessário voltar a enfatizar essa função básica da moeda.

Com efeito, no clássico Tratado de Economia Política, Jean Baptiste Say, em 1803, assim descreveu a função da moeda: "Se existir na sociedade uma mercadoria procurada, não em razão dos serviços que, em si mesma, dela possamos tirar, em razão da facilidade encontrada em trocá-la por todos os produtos necessários ao consumo, uma mercadoria tal que possamos adequar exatamente à quantidade que entregamos dela ao valor do que se deseja ter será somente essa mercadoria que nosso cuteleiro procurará obter em troca de suas facas, porque a experiência lhe ensinou que, com ela, obterá facilmente, mediante outra troca, pão ou qualquer outro artigo de que possa precisar. Essa mercadoria é a moeda”. (Say, 1983, 210).

O economista moderno, Milton Friedman define a função da moeda de forma parecida: "... a moeda é aquilo que é aceito por todos em troca de bens e serviços - aceito não como um objeto para ser consumido, mas como um objeto que representa um conteúdo temporário de poder aquisitivo a ser usado para comprar outros bens e serviços" (Friedman, 1992,28).

Essa função básica da moeda, de ser meio de troca, é universal. Porém, como já dito, ela foi se tornando cada vez mais reserva de valor, ou seja, sendo objeto de negociação como mercadoria moeda, acumulando valores que geraram um novo tipo de mercado, o financeiro. A moeda, enfim, se tornou a mercadoria mais valiosa do sistema. Isso está na base da crise atual, em que o Mercado Financeiro passou a atuar sem que o Estado pudesse saber ou regular o que os agentes econômicos estavam fazendo com a moeda.

Há uma tendência em voltar a ler os clássicos, como Marx, que já havia apontado o inadequado uso da moeda como reserva de valor. Usar a moeda como mercadoria é inverter a ordem natural das coisas, pois o valor essencial estaria na natureza e no trabalho social: "Desde que o dinheiro, noção existente e manifesta de valor, confunde e troca todas as coisas, ele é a confusão geral e a troca de todas as coisas, sendo, pois o mundo invertido, a confusão e a troca de todas as propriedades naturais e humanas". (Marx, 1963,107)

Na verdade a crítica marxista retoma sob outro enfoque, o que os teólogos e filósofos falavam da moeda antes do capitalismo se tornar o regime dominante, a começar por Aristóteles, no livro V da Ética:

”A moeda foi instituída por convenção, e por essa razão ela é chamada de nómisma, ou seja, pela lei, porque justamente tem valor por lei e não por natureza, e porque está em nosso poder modificá-la e torná-la sem valor” (Galiani, 2008, 72).

Talvez a solução da crise exija reavaliar o sistema monetário como um todo.

Aí entra o problema da disciplina jurídica da moeda, da organização internacional do sistema monetário e, em última análise, o problema da estabilidade econômica. Porém, não é exclusividade do Direito, nem da Economia, solucionar o problema.

A eficiência da racionalidade econômica e jurídica parecem colocadas em dúvida diante da crise. O dogma de um Direito Positivo onipotente, racional, capaz de dar segurança à vida social e econômica, neste momento está sendo questionado. A racionalidade de que falava Max Weber no século XIX: “O domínio universal da relação associativa de mercado exige, por um lado, um funcionamento do direito calculável segundo regras racionais” (Weber, 1991, 227), tem se mostrado difícil de alcançar na Economia e no Direito. Os fatores psicológicos, sociais, culturais e afins, o conceito de sociedade complexa, uma mescla de ordem e desordem são cada vez mais valorizados, sobretudo após a longa experiência da Conferência de Breton Woods (1944), que criou o FMI, sem que, após mais de 60 anos, tenha sido alcançada a almejada estabilidade econômica mundial.

Parte do desafio atual é, justamente esse: como sair desse dualismo binário entre Mercado e Estado? Entre normas de Direito e de Economia?

Não há ortodoxia ou heterodoxia que resista a uma crise global como esta! A resposta ainda não existe, é preciso encontrar um paradigma novo de vida econômica e social.

Uma das propostas de novo paradigma que vêm sendo desenvolvidas em várias áreas de conhecimento, inclusive no Direito, tem sido a Mediação.

O Estado, por exemplo, ao invés de atuar como Interventor no Mercado poderia atuar mais como Mediador, e isso seria uma alternativa criativa para desenvolver um novo modelo econômico. Vejamos, brevemente, essa alternativa.

4. O ESTADO: ENTRE A INTERVENÇÃO E A MEDIAÇÃO

O Estado tem atuado na ordem econômica mundial, em geral, como interventor ou regulamentador do Mercado. No nosso caso específico do Brasil a atuação do Estado na ordem econômica está definida na Constituição, como um agente normativo e fiscalizador, como detentor de monopólio, como indutor do desenvolvimento econômico (Constituição Federal, art.170 a 181). Poderia, no entanto, atuar mais como um Mediador dos interesses da coletividade. Talvez seja necessário nesta crise redefinir o papel do Estado para que ele atue como Mediador nos conflitos e na atividade econômica. De outro lado a sociedade civil poderia se organizar mais para decidir os rumos da vida , sem depender do bom ou mau funcionamento do Estado. Seria importante que a própria atividade de Mediação fosse incentivada pelo Estado ou adotada pelo Estado conceitualmente, como meio de solução de conflitos nacionais e internacionais. Nesse sentido, o que seria Mediação e seu papel?

Conceitualmente, a Mediação é uma forma de autocomposição dos conflitos, com o auxílio de um terceiro imparcial, que nada decide, mas apenas auxilia as partes na busca de uma solução. O Mediador fica no meio, não está nem de um lado e nem de outro, não adere a nenhuma das partes. É um terceiro mesmo, uma terceira parte, quebrando o sistema binário da solução tradicional do conflito. A Mediação busca livremente soluções, que podem mesmo não estar delimitadas pelo conflito, que podem ser criadas pelas partes, a partir de suas diferenças. A Mediação procura ir além das aparências explícitas, investigando os pressupostos implícitos do conflito. Muitas vezes, pode ser o aspecto legal o mais relevante fator a ser analisado, mas nem sempre isso acontece.

O sistema de Mediação é aberto a qualquer aspecto que possa estar causando o conflito. A Mediação é uma espécie de terapia do vínculo conflitivo. O sistema jurídico positivo na sua função judicial procura mais estabelecer a uniformidade, eliminar os desvios, penalizar os culpados, obter a normalidade comportamental. A Mediação trabalha, também, com o potencial transformador dos desvios, procurando integrá-los na formulação de uma nova solução.

A Mediação destaca o poder emancipatório, que existe em todo sistema jurídico, como fator mais importante do que o poder normativo. Uma sociedade para ser justa precisa, sem dúvida, de um mínimo de leis, porém precisa, sobretudo da boa fé, dos valores éticos e morais. Os romanos já haviam percebido, como observou Paulus, “non omne, quod licet, honestum est”, ou seja, nem tudo que é lícito é também honesto.

O Positivismo Jurídico acabou com essa preocupação secular, separando o direito, da moral e da ética. A Mediação recupera tudo isso, é um dos campos privilegiados para o cultivo da Ética, pois sem Ética o sistema econômico não funciona, a política não funciona, a sociedade não sobrevive com harmonia.

A prática da ética, nesta crise econômica mundial, é indispensável:

“A Humanidade deixou de constituir uma noção abstrata: é realidade vital, pois está, doravante, pela primeira vez ameaçada de morte, a Humanidade deixou de constituir uma noção somente ideal, tornou-se uma comunidade de vida; a Humanidade é, daqui em diante, sobretudo uma noção ética: é o que deve ser realizado por todos em cada um” (Marin, 2000, 114).

É difícil aceitar que, após tanto tempo de normativismo, os Estados continuem alimentando a pretensão de resolver os problemas sociais, ambientais, econômicos e afins, só pela Intervenção, através da regulamentação jurídica.

A crise econômica não exige só uma solução para a atividade financeira: ela atinge a sociedade como um todo, as relações privadas, públicas, culturais, sociais, psicológicas, políticas e afins.

A solução não virá pela elaboração de novas leis monetárias como já advertiu Jansen: ”Atribuir valor real ao ato jurídico (ou ao serviço ou mercadoria a que aluda aquele ato jurídico) seria criar uma realidade, e uma norma é um dever ser e não um ser. Se a norma atribuísse valor real ao ato jurídico - e não apenas nominal, através da elevação dos preços e salários (que são o valor dos atos jurídicos que dizem respeito a bens e serviços) poderíamos transformar um país paupérrimo no país mais rico do mundo, e não apenas inflacionar a economia". (Jansen, 1988, 17).

A crise não pode ser resolvida só com pacotes de legislação econômica, em país nenhum. O Direito e o Estado devem atuar como instrumentos mediáticos que podem ajudar a regulamentar aspectos da crise, mas não podem resolver totalmente a crise. A solução foge da área jurídica e se projeta na soma da colaboração de todos os agentes econômicos, sociais e políticos. O uso da moeda criou uma realidade muito complexa a ponto de ser difícil dar uma direção ao sistema monetário, controlar seu funcionamento, em meio à crise sistêmica que estamos vivendo.

O Estado, então, oscila entre intervir e mediar para solucionar a crise. No momento de crise as duas coisas precisam ser feitas concomitantemente: intervir e mediar. Mas a longo prazo o Estado só poderá exercer bem seu papel de organizador da coletividade, numa perspectiva de paz e desenvolvimento para todos, se atuar mais, conceitualmente, como Mediador, pois as soluções devem ser assumidas por todos. Acabou o tempo da dissociação entre governantes e governados, a crise é planetária. O que está em jogo é a possibilidade de viver num mundo ecologicamente equilibrado e isso depende da colaboração de todos.

5. CRISE ECONÔMICA E CRISE ECOLÓGICA

Na busca de uma solução para a crise econômica não podemos esquecer que o modelo econômico precisa ser modificado, sob pena de inviabilizar a vida no nosso planeta.

Vale lembrar a recente advertência de Jeffrey Sachs:

“No século XXI, nossa sociedade global florescerá ou perecerá, dependendo da nossa capacidade de encontrar um acordo mundial relacionado a um conjunto de objetivos compartilhados e os meios práticos para alcançá-los”. As pressões da escassez dos recursos energéticos, das crescentes crises ambientais, de uma população global cada vez maior, de migrações em massa – legais e ilegais – da transferência de poder econômico e de profundas desigualdades de renda são demasiadamente grandes para serem deixadas à mercê de forças do mercado e de uma livre competição geopolítica entre nações.

O resultado dessas crescentes tensões poderia, ser, perfeitamente, um choque de civilizações, o qual poderia vir a constituir nosso último e definitivo choque devastador. Para superarmos, pacificamente, essas dificuldades, teremos de aprender, em escala global, as mesmas lições básicas que as sociedades bem-sucedidas aprenderam, gradual e relutantemente, no interior de suas próprias fronteiras nacionais” (Sachs, 2008, 14).

Nesse contexto a atividade de todos pode ser orientada por um comportamento de Mediação, pelo quais os interesses vão sendo autocompostos para que se preserve permanentemente o ritmo social e econômico em bases sustentáveis, sem agredir a ecologia, sem colocar a natureza apenas a serviço do lucro.

Qualquer solução tem que levar em consideração o esgotamento do atual modelo energético, baseado no petróleo, o esgotamento do modelo alimentar, baseado na agricultura extensiva e na produção de gado e o esgotamento do modelo industrial que produz o efeito estufa e assim por diante.

É necessário consultar a população para saber em que tipo de sociedade pretendemos viver daqui para frente. Não basta mais os governantes agirem, nem a ONU, a OEA, a União Européia e outros organismos internacionais traçarem diretrizes de ação. A participação dos bilhões de seres humanos é indispensável. As soluções hão de ser coletivas, participativas e não mais impostas pela intervenção do Estado.

A crise mundial coloca a necessidade de resolver as contradições entre a predominância do Direito Privado, centrado na propriedade individual, e o Direito Público, centrado nos interesses gerais da população. O Direito, na verdade, é um todo indissociável. Da mesma forma, a economia não pode funcionar, eficazmente, só com base nas particularidades do individualismo possessivo e consumista em que mergulhamos. O sistema econômico individualista também tem limites. Esses limites devem ser consagrados, pedagogicamente, pelo ordenamento jurídico como uma sinalização do dever ser, do comportamento desejado como melhor para todos. Os Direitos Humanos foram consagrados pela ONU em 1948, pela primeira vez na história, e são parte do Direito Positivo. É oportuno enfatizar que o Direito se fundamenta na dignidade da pessoa humana, na moralidade, na ética e na honestidade, como aprendemos desde o Direito Romano (Honeste vivere, neminem laedere, suum cuique tribuere, ou seja, viver honestamente, não lesar ninguém, e dar a cada um o que é seu).

Não basta a racionalidade econômica e a eficiência, nem o planejamento estatal, ou privado, da economia. A crise atual tem muito de previsível, mas tem muito de acaso, pois o ser humano é também obra da evolução, cheio de imperfeições e imprevisibilidades. A natureza não funciona segundo leis deterministas. Segundo Jung, metade dos acontecimentos na vida humana são previsíveis e metade são imprevisíveis:

"Apesar de nosso sentimento e não obstante os fatos ocorrerem segundo as leis gerais, não se pode negar que estamos sempre e em toda parte expostos aos acasos mais imprevisíveis. Será que existe algo mais imprevisível e mais caprichoso do que o acaso? O que poderia ser mais inevitável e mais fatal? Em última análise, podemos dizer que a conexão causal dos fatos, de acordo com a lei geral, é uma teoria que se confirma na prática em cinqüenta por cento dos casos. Os outros cinqüenta por cento ficam por conta da arbitrariedade do demônio chamado acaso”. (Jung, 1993, 58)

No entanto, insistimos em buscar a onipotente segurança da certeza. Não integramos o acaso, o analógico, no todo social. Perdemos a visão grega da história (Heródoto e Tucídides) que valorizava o acaso e adotamos a visão iluminista que valoriza mais o esforço humano. Agredimos a natureza, exploramos as florestas e os animais, os rios e os mares, na vã expectativa de obter uma permanência e estabilidade sócio-econômica, quando a ecologia planetária é instável e em constante mutação.

O efeito estufa, reconhecido pelos cientistas, mostra como a ecologia tem de ser respeitada, como o ser humano precisa parar de destruir a natureza e retomar uma conduta de harmonia com o meio ambiente. Nesse sentido Ecologia, inclusive, deve ser entendida na sua tríplice dimensão: ambiental, social e mental, ou seja: ”Mais do que nunca a natureza não pode ser separada da cultura e precisamos aprender a pensar transversalmente as interações entre ecossistemas, mecanosfera e universo de referências sociais e individuais” (Guatari, 2001, 25).

Cada qual a seu modo, Direito e Economia devem ser conhecimentos a serviço da convivência social, e, sobretudo dessa nova concepção de ecologia. A moeda não pode ser a mercadoria mais valiosa do mundo! O momento atual exige a criação de um novo modo de atividade econômica, onde a moeda atue como mediadora no conjunto das demais atividades sociais, e não seja mais o principal elemento da vida social.

6. CONCLUSÕES

A moeda é um símbolo mediador, de grande significação para a vida social. A eficiência da moeda reside na sua interação qualitativa com a realidade econômica e não, isoladamente, na sua expressão jurídica. A crise econômica mundial deve levar em conta a complexidade dos fatores, pois o controle e solução dos problemas econômicos não se dá unicamente pela imposição de normas jurídicas.

O momento atual exige uma postura de Mediação das pessoas, dos Estados, da sociedade civil, das instituições econômicas, das Ongs, do sistema financeiro, enfim de todos. Esse poder de autocomposição e de decisão os próprios interessados devem manifestar para construir uma sociedade mais solidária. Somos todos iguais, vivemos num só planeta. Não basta resolver essa crise econômica mundial para restabelecer tudo como era antes, tudo de volta ao “status quo ante”. É necessário retomar a Ética e a verdade, eliminar o cinismo, visando construir uma nova sociedade baseada não na moeda, mas sim na dignidade da pessoa humana, valor primordial da sociedade.

Alías, isso está escrito na nossa Constituição: o fundamento do Estado é a dignidade da pessoa humana (art.1, III) e um dos objetivos fundamentais da República é “construir uma sociedade livre, justa e solidária” (art.3, I).

Não teria chegado o momento de cumprir esses objetivos consagrados pela Constituição? Não teria chegado o momento de recolocar a moeda como Mediadora das relações econômicas e não como fim último, como razão de ser de toda a atividade deste mundo complexo e global?

É urgente responder essas questões básicas, antes que o desequilíbrio ecológico do Planeta provoque catástrofes incontroláveis e ameace a própria sobrevivência do ser humano.

A crise mundial deve, no mínimo, recolocar o símbolo moeda no seu devido lugar, aliás, de onde nunca deveria ter saído: a Moeda é meio e não fim.

ADEMIR BUITONI é Doutor em Direito Econômico pela FDUSP, Advogado e Mediador em São Paulo

NOTAS

Aglieta, Michel - A violência da Moeda. S. Paulo, Brasiliense, 1990, p. 25.

Buitoni, Ademir - O Direito na Balança da Estabilização Econômica, SP, LTR, 1997.

Friedman, Milton - Episódios da História Monetária, RJ, Record, 1992, p. 9.

Galiani, Ferdinando - Da Moeda, Curitiba, Musa, 2000.

Guattari, Félix - As Três Ecologias, SP, Papirus, 2001.

Jansen, Letácio - A norma monetária, RJ, Forense, 1988, p. 17.

Jung, C.G. - Civilização em transição, Petrópolis, Vozes, 1993, p. 58.

Marx, Karl - "Economia Política e Filosofia”, Rio, Mebo, 1963, p. 107.

Morin, Edgar - Os sete saberes necessários à educação do futuro, SP, Cortez, 2000.

Pierce, Charles C. - "Semiótica", São Paulo, Perspectiva, 1990, p. 160.

Rivoire, Jean - História da Moeda, Lisboa, Teorema, 1985.

Sachs, Jeffrey - A riqueza de todos, RJ, Nova Fronteira, 2008.

Santaella, Lúcia - O que é Semiótica, 6. ed., S.Paulo, Brasiliense, 1988, p. 78.

Say, Jean Baptiste - Tratado de Economia Política, S. Paulo, Abril Cultural, 1983, p. 210.

Weber, Max - Economia e Sociedade, UNB, 1991, p. 227.

http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=15605&editoria_id=7

Carlos Henrique Marques
Enviado por Carlos Henrique Marques em 05/02/2009
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