Atestado de estupidez

Nada mais frágil do que o argumento da manutenção de tradições para se justificarem atos e pensamentos que humilham e aprisionam as pessoas. Toda e qualquer tradição um dia precisou ser criada (em determinado contexto cultural e histórico), o que a torna passível de ser derrubada e substituída.

É por conta de muitas tradições e dos argumentos suspeitos dos grupos beneficiados por elas que ainda sobrevivem atrocidades como a extirpação de clitóris em adolescentes africanas, a negociação de mulheres para o casamento na Índia e mesmo os trotes de calouros em instituições de ensino superior no Brasil. Este último exemplo chega a ser ainda mais descabido, já que se trata de uma suposta tradição criada por um público normalmente tido como politizado e com bom senso crítico.

Sem meias palavras, para mim o trote de calouros nos moldes daquele que vai parar em ocorrências policiais é um verdadeiro atestado de estupidez. Só alguém de mente estúpida e espírito pequeno é capaz de recepcionar um colega novato com humilhações, grosserias e violência. Não importa se o trote é descrito como leve ou bem humorado; se ele é uma imposição é, sim, um ato capaz de humilhar, ofender.

No início do ano passado, em Viçosa-MG, pude ver uma cena em pleno Centro da cidade que ilustra bem o que mencionei anteriormente. Veteranos da UFV – Universidade Federal de Viçosa (não consegui identificar de que curso) arrastavam pelas ruas um grupo de estudantes novatos envolto numa corda e pintado dos pés à cabeça. Com “palavras de comando” (do tipo “vamos, tropa de calouros!” ou “calouro, animal!”), os veteranos os levavam para uma “festa” numa provável república, onde certamente passaram por outras tantas humilhações e desmandos (como tomar cachaça contra a vontade, por exemplo).

Os episódios da semana passada, divulgados nacionalmente pela grande mídia, mostraram que esse tipo de trote continua vivo, mesmo com proibições expressas das faculdades e universidades em seus regimentos. No caso do calouro de Veterinária que chegou a apanhar a ponto de ser hospitalizado, o que esperar dos futuros profissionais que o agrediram? Eu jamais levaria um animal de estimação para qualquer um deles cuidar se soubesse deste seu perfil desumano e moleque. O que dizer, então, da futura pedagoga que jogou um tipo de ácido numa caloura grávida, provocando queimaduras em várias partes do seu corpo?

Há dez anos o jovem Edison Hsueh, que havia acabado de passar no vestibular de Medicina da USP, encontrou a morte num desses trotes. Ironicamente, seus algozes na época atuam hoje como médicos, responsáveis por salvar vidas... O pai da vítima morreu no ano passado sem ver os responsáveis pagarem na Justiça pelo que fizeram.

Atribuir esse tipo de comportamento à juventude chega a ser ridículo. Um jovem que cursa faculdade tem total discernimento de suas atitudes e convicções. Os seus valores éticos e morais é que podem ser inexistentes. Mas os rigores da Lei foram feitos justamente para pessoas assim.

Felizmente, em 1987, quando entrei na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal da Bahia, aos 17 anos, já encontrei um ambiente civilizado. Não se raspava a cabeça de um calouro ou se pintava seu corpo, muito menos se falava a palavra trote. No primeiro dia de aula participei de uma festa com o nome “recepção aos novos alunos”. Recebi abraços, beijos e palavras de boas vindas. Senti-me em casa na primeira semana. É exatamente assim que qualquer pessoa sensata trata um convidado em sua casa. Quem já está numa faculdade há algum tempo é como se fosse um pouco dono da casa; ao contrário, quem chega precisa de uma boa acolhida para se sentir à vontade e também para fazer o mesmo com os que virão depois.

Roberto Darte
Enviado por Roberto Darte em 20/02/2009
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