OUTRA FORMA DE DISCRIMINAÇÃO

Ninguém é maior entusiasta dos movimentos de caráter libertário, que o mundo vivenciou nos anos 60, do que eu. Porque, como já se disse e repetiu, aquela década valeu por um século. Ou até mais.

No espaço de dez anos, toda uma geração se insurgiu contra o que parecia estar definido e admitido em termos de valores sociais, regras de conduta e ordem jurídica, para o restante do século. A democracia, entendida como era até então, passou a questionada; a autoridade passou a ser questionada; o poder político passou a ser questionado; e a própria cultura passou a ser questionada.

Foi uma onda de renovação e rebeldia que, à semelhança de um “tsunami” de proporções nunca vistas, arrastou e levou de roldão tudo o que se interopôs à sua trajetória. Uma explosão de lutas e bandeiras de todos os matizes, cujo estopim foi o movimento estudantil. Mas que acabou detonando o resto do paiol.

E no final daqueles “anos rebeldes”, embora o rescaldo do gigantesco incêndio só se haja concluído ao longo da década seguinte, o mundo renasceu das cinzas, como um “admirável mundo novo”.

Não pretendo, é óbvio, discorrer sobre todos os movimentos, de que aquela década foi pródiga. Mas aprecio, em especial, aqueles que objetivaram promover a defesa dos direitos civis e humanos das chamadas minorias, para que não houvesse, dali por diante, tantas discriminações quanto havia, até então.

Dentre eles há um que se destaca, conhecido como Movimento pelos Direitos Civis dos Negros, que eclodiu nos Estados Unidos, mas acabou se alastrando para o resto do mundo, pela demonstração de que o “status quo” pode ser alterado numa sociedade, quando é injusto para uma parcela das pessoas que a ela pertencem.

Vitorioso, aquele movimento acabou produzindo consequências noutros países, onde os representantes de suas respectivas populações negras também travaram suas lutas pela igualdade de direitos e contra a discriminação social.

Embora eu já tenha declarado o meu entusiasmo por tudo isto, quero fazer certas observações quanto a alguns equívocos, que, a meu ver, são cometidos neste assunto.

Em primeiro lugar, os negros não são, em nosso país, o que se pode chamar de uma minoria racial. Na verdade, o Brasil é um país que reúne a segunda maior população africana ou de descendência africana em todo o mundo, só sendo superado, neste aspecto, pela Nigéria.

Em segundo lugar, a “não discriminação”, neste caso, deve significar uma integração de todas as raças — inclusive as realmente minoritárias — que fazem parte da população. Como sonhou Martin Luther King. E não uma disputa, pela supremacia de uma raça sobre outra. Como pretendeu Malcolm X, líder de uma facção de militantes do movimento, conhecida como “Black Power”.

No Brasil, a partir dessa tomada de consciência, sobretudo após a Constituição de 1988, muitas coisas mudaram. E, na maioria dos casos, para melhor, eu admito. Mas passamos a conviver com certos exageros e até alguma exploração de cunho “eleitoreiro” nesta questão, que em nada têm ajudado ao processo de integração racial entre nós.

Uma outra forma de exagero é inverter o sentido das coisas. Porque, se é verdade que não se pode excluir ninguém de coisa alguma, em função da raça a que pertence, não me parece razoável que brancos ou asiáticos, por exemplo, possam ser excluídos de um evento ou prejudicados num processo seletivo, pelo fato de não serem negros.

Já faz algum tempo que li acerca de um simpósio ou congresso de “sacerdotes negros”, assim como já é tradicional o tal “dia da consciência negra” e outros eventos do gênero. Mas o que diriam os líderes do Movimento Negro, se alguém resolvesse propor um “dia da consciência branca” ou realizar um congresso dos “sacerdotes brancos”? Certamente fariam o maior estardalhaço, chamando todos de racistas e ameaçando processá-los por discriminação.

Particularmente, não me sinto ofendido por nenhum evento que congregue apenas participantes da raça negra. Mas é preciso compreender que estas coisas se constituem numa outra forma de discriminação. E não é deste modo que enfrentaremos os resquícios do racismo no Brasil, que, apesar da gloriosa década de 60 e contra as aspirações de muitos, ainda teima em sobreviver.