COMPLACÊNCIA DA MEMÓRIA

Essa história de que “o tempo opera milagres”, é um ditado antigo, que todos já conhecemos. Mas o tempo também opera outra coisa em nós — com as exceções de praxe — da qual nem todos se apercebem: é um certo grau de condescendência nas nossas lembranças. Uma espécie de perdão ou anistia que damos para os defeitos ou imperfeições das pessoas com quem convivemos numa certa época de nossas vidas.

É claro que este processo não se dá com todo mundo. Há gente que é muito, mas muito rancorosa mesmo e que cultiva a raiva ou o ressentimento para todo o sempre. Conheci pessoas que morreram odiando outras por um motivo, não raras vezes, banal. Parece estranho, mas tem gente que é assim mesmo. Particularmente, posso entender a indiferença de um ser humano por outro; mas não encontro justificativa para o rancor neste nível, exceto em casos especialíssimos; aqueles que explicam a mágoa para sempre.

Mas o amor e o desamor não são o tema deste texto. O que eu quero nele abordar são as grandezas da memória. Este mecanismo engraçado que existe em nós, pelo qual vão empalidecendo, com o passar do tempo, as impressões mais negativas que tivemos sobre certas criaturas, na época em que convivemos com elas.

Digamos que esta tendência — muito frequente nas pessoas — é uma característica até bastante positiva no ser humano, embora me pareça estranha, numas tantas circunstâncias. Certa vez, por exemplo, assisti a uma entrevista com um ex-militante da luta armada, feita pelo Roberto D’Ávila. O cara foi torturado estupidamente no período em que esteve preso. Mas, apesar disto, falava sobre os seus algozes com uma aparente compreensão pelos atos de que fora vítima. Algo que eu jamais poderia admitir, se houvesse vivido uma experiência trágica como aquela. Bem, tem aquela conhecida “Síndrome de Estocolmo”, mas não me pareceu que fosse o caso.

Lembro, também, que depois disso, tive a oportunidade de assistir a algumas entrevistas com compositor e escritor Nelson Mota, a propósito de seu livro “Noites Tropicais”, que eu não li, mas parece que andou fazendo bastante sucesso, por ocasião do seu lançamento, entre os que viveram os anos sessenta e setenta.

Foi uma delícia ouvi-lo — um especialista que é, na arte de conversar — contando casos e revelando alguns detalhes sobre gente que marcou sua presença, sobretudo no meio artístico, naqueles incríveis anos rebeldes. Só que o Nelsinho, nessas entrevistas, dizia algumas coisas, acerca de certas figuras, que parecem não condizer com a imagem que o público tem delas.

Com todo o respeito por quem os admira, a título de exemplo, acho o Caetano Veloso um compositor excepcional, mas considero a sua presença de palco insuportável. O tipo do cara esnobe, que parece sentir-se superior às pessoas do público. Pior do que ele, só mesmo o João Gilberto, em que pese o respeito que lhe é devido pelo seu pioneirismo. Mas como gosta de mostrar o seu desprezo por quem compra ingresso para ver os seus shows! O João Gilberto é, a meu juízo, um “chato de galocha” e o Caetano se julga “a última bolacha do pacote”. Dois pretensos gênios da Bahia!

Assim são esses e assim são outros. Mas ouvindo o Nelson Mota falar sobre tais figuras, tem-se a impressão de que são, todos, pessoas maravilhosas. Tudo boa gente e todos gente boa! Se forem, deve ser somente entre os mais íntimos.

Ora, convenhamos que é preciso separar a qualidade da obra da qualidade do criador. Se aquela é maravilhosa, não significa que o seu autor, como pessoa, também o seja. Ninguém discute a grandiosidade da obra de Beethoven, mas o compositor, pelo que dizem os seus biógrafos, era um tipo intratável. Salvador Dali era um pintor genial; mas como pessoa, pelo que se sabe, absolutamente intragável. E daí?!

Daí é que todos têm o direito de exercitar essa complacência da memória. Uma coisa que só faz bem, que garante a “paz entre os homens de boa vontade” e não tem indicações em contrário. Porém, não é por isto que vamos começar a acreditar que as pessoas são aquilo que não são. Porque a memória deste povo brasileiro já é muito curta demais para o que deveria ser...