Carnaval: a escolha que nos (des)iguala

Eram seis da manhã. Da rua veio o quase grito: “O Carnaval chegou / Todo arraiano é um folião...” – abertura da “marchinha-hino” do carnaval de Arraias, Sudeste do Tocantins. Então eu disse: “Não sou arraiano, mas vou conhecer o Entrudo”.

Perto de nove horas, encontrei as crianças abrindo a folia, que vinha por uma rua rumo ao centro da cidade. Tão logo me viram, amigos do lugar me jogaram baldes d’água – a senha para eu me sentir partícipe do Entrudo, palavra de origem latina para introdução, mas que, segundo o Dicionário Aurélio, em nosso português nomeia o folguedo carnavalesco durante o qual as pessoas lançam água uns nos outros. Nada de violência. O “batizado” é na paz.

Uma fanfarra toca, à toda. As pessoas se juntam ao redor dos músicos. Param nas casas, molham os moradores e todos que encontram pela frente. Quem dorme é acordado e trazido ao passeio para receber intensas cotas d’água, à farta. Todos brincam, confraternizam. Fazem a festa. É puro prazer, um valor que universaliza o Carnaval arraiano.

Quando o Entrudo ganha a praça principal, o trio elétrico à baiana potencializa o contentamento geral e a folia segue a animar o povo em jogos lúdicos que envolvem a todos, de mamando a caducando, até a quarta-feira de cinzas.

Vi nesse prazer feliz um motivo para a identificação daquele ponto onde, filosoficamente falando, a igualdade se estabelece entre os humanos e é vivenciada na satisfação vivida na alteridade e no encontro de “eus” que se reconhecem naquela dignidade igualitária que faz o homem e a mulher.

Já pensei que o nascer e o morrer tornavam os humanos iguais, mas agora percebo que não. Nascer e morrer são partes do destino, imponderáveis, na medida em que ocorrem à revelia de quem nasce e morre. Ninguém pode escolher nascer e morrer. Cada um nasce e morre a seu modo, cravado no solipsismo duro, cru.

Com o prazer trazido pelos dias de Carnaval se passa diferente. Ninguém é obrigado a tomar parte em sua produção. A pessoa avalia e decide se participa ou não toma parte na festa local, o supra-sumo do prazer que é fruto da escolha comum de vivenciá-lo.

Filosoficamente falando, esse prazer iguala os humanos. Trata-se da decisão que legitima a ação de criar prazer na alteridade e que se torna o chão para as raízes da igualdade, fazendo com que a escolha individual se identifique com a escolha grupal e coletiva.

Pena que, numa perspectiva sociológica, o mesmo ainda não possa ser dito, pois as condições de escolha ainda não me parecem democráticas, abertas e justas. Oxalá escolhas livres entre iguais estivessem construindo por essas bandas de cá a sociedade justa e o prazer que nos irmana no lado bom que a vida tem e dá.