Entre o estupro e a excomunhão*

Leio na grande imprensa que os envolvidos no caso do aborto feito pela criança lá de Pernambuco foram excomungados pela Igreja Católica. Ela tem nove anos e há três vinha sendo seguidamente estuprada pelo padrasto.

Entre o estupro e a excomunhão havia uma criança inocente. Ao redor dela, pessoas da família, da medicina e da sociedade. Mediante a sucessão de atrocidades cometidas a essa menina e aos humanos sensatos que a circundam, eu me perguntei: “O que leva certas pessoas a conceberem-se a si mesmas como detentoras do poder sobre a vida e a morte dos semelhantes?” (Há muitas formas de morrer; além da morte física, há a morte subjetiva, a morte da identidade - que parece ser o caso em questão).

Com a excomunhão, as pessoas perdem o direito de vivenciar o sentimento de “comum união” com os seus pares, com quem vivem a condição humana e as crenças que as identificam.

Para ser mais exato, é a Igreja que fecha as portas para aquelas pessoas que, aos olhos impiedosos da hierarquia católica, cometeram o crime e o pecado de levarem a cabo a tentativa de consertar, no que era possível, a violência perpetrada contra uma inocente. Um caso inominável, absurdo demais para que a razão possa compreender.

Esse desapontamento recrudesce ainda mais quando lembramos o quanto este tipo de prática se distancia de Jesus. Ele que sentava ao lado da prostituta, candidata ao apedrejamento; que socorria o doente excluído da sociedade e penalizado duplamente com a doença; que se colocou do lado daqueles que nem eram considerados humanos em sua época; e que pediu que deixassem ir a ele as criancinhas.

No que se tornou a organização católica? Essa instituição que ao longo da história tem se manifestado como uma inimiga da vida, quando a “vida em abundância” (exatamente o que vem faltando àquela menina e aos seus) é o valor em relação ao qual todos os outros devem existir? O que faz essa gente religiosa que, abstendo oficialmente de procriar, quer impor essa obrigação a ferro e fogo aos outros? Essa gente que não constitui família oficial e se arroga o direito de legislar sobre a família alheia? Que deixa de conviver maritalmente para ter mais tempo exatamente para entulhar de normas e regras aqueles que tem a coragem de constituir família?

O que quer essa gente? Amor? Fraternidade? Compaixão? Tenho lá minhas dúvidas. Não duvido, porém, de que se o Cristo aqui voltasse e começasse a viver tal qual ele viveu enquanto esteve na Terra, não faltariam entre nós aqueles bispos dispostos a excomungá-lo também.

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* Artigo publicado no jornal goiano Diário da Manhã, dia 14/03/2009, p. 23.