As vozes da narração

As vozes da narração, a escrita, e a coletividade, criada pelos corpos do autor e do leitor

Uma concepção de ser humano

Qualquer trabalho teórico ou literário traz em si a concepção de ser humano do autor. Para mim, somos corpo e princípio vital. A palavra animado vem de alma: somos corpo vivo, animado. Alma encarnada.

Somos um pré-pessoal, em nossa herança genética. E um pós-pessoal, no mundo que está pronto, com suas concepções filosofias, padrões, comportamentos, etc, ao nascermos. Somos ainda pessoalidade, ao deixarmos nossa marca e mudarmos, ainda que em frações mínimas, tanto o pré-pessoal, quanto o pós-pessoal. Pessoalizar quer dizer presentificar, criar nossa presença para nós mesmos e no mundo.

Somos criados e nos criamos em relações.

Nascemos em uma família, e cada família tem ancestralidade, presente e devir. Somos criados pelas histórias familiares. Desmanchamos as histórias que nos contam, para criarmos nossa própria história.

Somos feitos de etnias e tradições culturais. Criamos nosso mundo nos rodeando de histórias, de pessoas, de objetos, de idéias que corpamos, a medida que fazem sentido para nós, e a medida que as modificamos. Somos, cada um de nós a geração do momento vivo, que tem atrás de si a ancestralidade, e na frente o devir, ou seja, as gerações dos antepassados e as gerações dos descendentes. Uns e outros podem ser da carne e do sangue, como podem ser mestres e alunos.

Na verdade, não há um “atrás” e um “na frente”. Há a circularidade, os diferentes tempos acontecendo juntos, em simultaneidade.

O ser humano como processo, se cria durante todo o tempo.

Aprendizagem

Acredito que primeiro vivemos, depois aprendemos, ou seja, acredito na experiência. Para mim, vida e teoria andam juntas. Conceitos são realidades que criamos, e se não forem conceitos ferramentas, criados à medida que vivemos situações, conceitos seriam violências. Ou seja, inserir a força alguém ou algo em um conceito é violentar. E acredito que todos temos a ensinar e a aprender: somos mestres-aprendizes.

E acredito que a poética é uma maneira bastante eficaz de apreender a gente mesmo, ao outro e ao mundo. O que isso quer dizer: a poética implica em sairmos do automático, em sair do mero reconhecer, para olhar com os olhos das células.

A narração

Trazer a narração implica pensar nas histórias familiares, nas tradições orais que passam de geração em geração através da voz ou vozes humanas. As tradições orais são anteriores à escrita, mas mesmo na época que não havia uma escrita, tal como considerada pelos lingüistas, havia desenhos, pictogramas, que narraram o cotidiano dos povos arcaicos. Nos pictogramas esses povos nos deixaram sua voz.

A voz é material.

A voz é invisível, porém, extremamente visível e palpável. Como nos desenhos das cavernas de Altamira, de Lascaux, e outras, esses desenhos são narrativos, contam do cotidiano, dos animais sagrados, que ao mesmo tempo serviam como alimentos.

Diz-se que a voz é invisível porque, em parte, ela é da ordem do audível, não vemos as ondas sonoras, apesar de sentirmos suas vibrações. A voz emana do corpo.

E a voz humana é visível porque não é feita apenas de sonoridades, ela é tato, corporeidade, leite materno, o calor dos corpos, as vestimentas, a dança, a transpiração e o suor, os cheiros, o canto, e os movimentos corporais que marcam tanto o momento presente, como as diferentes épocas. A voz humana revela que não há um homem universal: há diferentes seres humanos. Cada cultura é um jeito distinto de estar no mundo, e um jeito distinto de viver. Tanto nas diferentes geografias, como nas diferentes épocas. Assim há vozes humanas.

O homem que aparece nas entranhas dos desenhos gravados nas paredes e abóbadas das cavernas, não é o mesmo homem de hoje.

As diferentes vozes humanas estão no tempo, como a música. Assim, há um tempo que simultaneamente é “quando e onde”, um tempo-espaço.

As tradições orais e o imaginário de um povo

A voz humana e as tradições orais são as matrizes do imaginário de um povo. Pensando no nosso povo, somos feitos das mais diferentes tradições: a européia, a norte americana, a greco-romana, a judaico-cristã, e fundamentalmente, a africana. Somos o amálgama de muitas vozes, o que nos torna bastante específicos em relação ao mundo, feitos das mais diversas singularidades. O Brasil guarda inúmeros brasis, de norte a sul, de leste a oeste. No entanto, falamos o português, que no exterior chamam de “língua brasileira”, por causa da cadência, musicalidade e leveza que diferencia a maneira como falamos, do português falado em Portugal .

A temporalidade das tradições orais implica em uma memória muito estranha

As tradições orais trazem uma memória sempre em recuo, que se atualiza a cada geração, e que ao mesmo tempo é uma memória prospectiva, sempre em devir. Um tempo de simultaneidade, no qual passado presente e futuro acontecem aqui e agora.

As histórias das tradições orais são histórias com as quais convivemos desde que nascemos. Não têm datas, nem fatos, nem monumentos

As tradições orais contam uma histórias sem fatos, sem data e sem monumentos, está viva nas cantigas de ninar, nas de roda, nos contos de fadas e no contos fantásticos, nos personagens míticos, como as iaras, o saci, o curupira, as entidades do candomblé, os santos da igreja católica. E estão vivas nos doces e comidas, cujas receitas podem atravessar gerações, serem seculares ou milenares.

A materialidade da voz e da literatura

Proponho guardar que a voz humana, visível e invisível é feita de todos os sentidos que temos, até do sexto sentido: amolecemos ou nos arrepiamos, de bem estar ou terror ao som de uma voz. A voz se faz ouvir no encontro de corpos, ela tem materialidade, calor humano: aquece e ilumina como o calor do fogo. É a materialidade da voz que leva a materialidade para a literatura.

Signos gráficos e audíveis

Ouvi de Mateo DÁbrósio, uma vez, que num texto literário temos duas classes de signos, um gráfico, visual, e outro audível, como dois fluxos, que correm juntos sem se misturar. Na época fiquei fascinada. O que acho hoje é que criamos fronteiras didáticas, mas esses dois fluxos, como as águas do rio Negro e do Solimões, desde o começo, e mais adiante não apenas se misturam, como se juntam ao oceano. A voz está nos signos gráficos, que tornam-se visíveis também em imagens: vemos/ouvimos cenas e imagens quando lemos um livro ou um texto.

Prestem atenção quando lerem um texto, e escutarão a voz do narrador, e as vozes das personagens, e verão o ambiente que eles trazem e vivem.

O coletivo

A voz traz com ela o coletivo. Tanto na literatura, quanto na vida. Não dá para separar, literatura e vida estão juntas. Aqui falo com vocês, não vim falar com as paredes. Somos corpos vivos e animados, almas encarnadas, enraizadas nos nossos corpos.

Quando escrevo, e agora falo de mim para não cair em discussões abstratas, sou corpo. É com meu corpo animado por restos diurnos, restos noturnos dos sonhos, ou por lembranças, por questões que me marcam no cotidiano que escrevo. Escrever é modificar e reciclar o que me atravessa e afecta.

Quando leio, pois sou leitora apaixonada e curiosa, vivo um processo que é da mesma ordem da escrita, embora diferente. É importante marcarmos as diferenças em tudo que fazemos. Incluir as diferenças.

O autor e o processo da escrita

Quando escrevo não tenho a priori nada premeditado, é um processo que acontece e tem vida própria, o processo vai se desdobrando. (Em Corpo-de-sonho, arte e psicanálise faço uma distinção entre autor-instrumento e autor-agente). O autor, porém, em suas diferentes dimensões é parte do processo. Assim como o leitor.

O material para nossa experimentação de hoje, o corpo do leitor como co-autor

Vocês leram os três contos que enviei?

Convido-os a tomá-los como objetos de experimentação das questões levantadas. Elas são complexas e muito simples, pois, sendo da ordem da experiência, são palpáveis e alcançáveis, podemos senti-las com nossos corpos, não apenas o intelecto.

Cada um desses contos é um diferente território. O que vocês encontraram neles? Vozes narrativas, silêncios, sensações, diálogos entre personagens, diálogo interior? O leitor é co-autor.