AINDA HEI DE SER SALVO...

Sempre achei que o melhor de se ter a tevê por assinatura era o ecletismo da sua programação, que, ao contrário da tevê aberta, oferece opções para todos os gostos. Para quem gosta de filmes, para quem gosta de esportes, para quem gosta de documentários e para quem prefere os programas religiosos. Eu disse “para quem prefere os programas religiosos”? Não é verdade! Porque atualmente, em certos dias e horários, num grande número de canais, para onde quer que você se vire, vai se deparar com alguém — padres, bispos, pastores, missionários e pregadores — tentando converter você e salvar a sua alma.

Nas manhãs de sábados ou domingos e nas madrugadas dos demais dias da semana, então, é que a coisa fica realmente complicada: você deixa a televisão funcionando, dorme com a Sharon Stone montada no Michael Douglas — sim, porque tarde da noite, também, só passa “sessão nostalgia” e filme velho — e acorda com um pregador, aos berros, mandando que você se arrependa e sendo chamado de fariseu! Sinto ímpetos de gritar para a tevê:

— Espere aí, irmão, que eu nem assisti a “transa” deles toda, porque dormi primeiro!

Os mais religiosos têm à sua disposição, deste modo, uma série de emissoras de televisão, para todos os gostos, preferências e diversidades de fé. Porque, “em verdade vos digo”, que a quantidade de programas religiosos, cultos, sermões, missas e pregações na telinha, está beirando (se é que já não ultrapassou) os limites do suportável. E tão abusivo quanto isto, só mesmo o “telemarketing”!

Nada contra as religiões de forma geral, ou contra qualquer uma delas em particular. Que fique bem entendido! Falo apenas como telespectador que, em certos dias e determinados horários, vejo as minhas opções de programação sensivelmente diminuídas, porque nove entre dez canais da TV estão tentando conduzir-me aos caminhos da salvação. E estou seguro, a partir do pouco que me disponho a assistir, que as possibilidades para salvar-me são vastas e variadas.

Tem, como já disse, para todas as preferências. Há, até mesmo, alguns canais que lutam por salvar a minha pobre e desorientada alma durante as 24 horas do dia. E havia um deles que, acreditando serem essas 24 horas insuficientes para tão hercúlea tarefa, acabou criando uma tal de 25ª Hora, um programa que nem sei se ainda existe. Mas os astrônomos que se cuidem, porque tem religião mudando a contagem do tempo!

Para ser justo, no entanto, devo dizer que alguns desses programas e sermões, testemunhos e doutrinações têm permitido que eu aprenda coisas úteis e importantes, para esta vida e — quem sabe? — para o que der e vier depois dela. Por exemplo, está lá nas Escrituras (é o que garantem e explicam minuciosamente os “ministros” de diferentes igrejas) que pagar o dízimo é mais que uma obrigação e uma necessidade. É ordem direta de Deus. Ou seja, nem morrendo, você vai se livrar da “mordida do Leão”.

Outra coisa extremamente simples é transferir dinheiro para a sua igreja ou congregação predileta. Segundo eles explicam e tornam a explicar, basta chegar no banco tal, dirigir-se diretamente ao caixa (nesse banco, pelo visto, não tem fila) e depois remeter o recibo à contabilidade da igreja. Ainda bem que Deus está vendo tudo. Porque, pelas instruções dadas, você não fica com nenhuma prova de que cumpriu a sua obrigação como “dizimista”.

Numa manhã dessas (e nem era domingo), havia umas cinco ou seis emissoras transmitindo programas religiosos, de diferentes convicções. Numa, eram notícias da Arquidiocese; noutra, era um debate/entrevista com a participação do Bispo Macedo; numa terceira, o padre anunciava a venda de um crucifixo milagroso por pouco mais de cem reais e assim por diante. O que me chamou realmente a atenção foi que, em dois desses canais (de orientação católica e evangélica, respectivamente) os oradores, um padre (com a maior “cara de pau”) e um pastor (que tem cara de alemão, mas nem por isto se trata de um "pastor alemão"), exploravam o mesmo tema: a perseguição religiosa. E tome Paulo de Tarso!

Achei interessante — divertido mesmo — que ambos colocavam os adeptos de sua igreja na condição de perseguidos e os membros da outra, na situação de perseguidores. Faziam locuções de conteúdo e apelo tão semelhantes (ainda que contrários), num duelo para cativar os fiéis, que só a sabedoria divina conseguiria desempatar a demanda. Coisa de “dar um nó”, até na cabeça do próprio Rei Salomão.

Gostaria muitíssimo que a mídia e, sobretudo, a TV por assinatura (que é paga), estivessem menos a serviço da ânsia de salvar a alma alheia, de que alguns parecem estar tomados. Até porque, com tantos e tão variados caminhos para se chegar a Deus — que se estendem até a minha casa, sem que, para isto, eu tenha solicitado ou dado a minha permissão — estou bem tranquilo: ainda hei de ser salvo... Mesmo que eu não queira!