Da seriedade do tráfico de drogas

Lúcio Alves de Barros*

Enquanto nos preocupamos com o caso do histriônico Protógenes versus Dantas, da atuação do “obeso” Ronaldinho, com a cirurgia plástica e possível candidatura da Senhora Dilma Roussef, o avanço do “candidato” Serra nas pesquisas e o esquecimento do Governador Aécio por parte da grande mídia, bem embaixo de nossas barbas ocorre o esperado quando, na luta por território, morre um determinado traficante.

Em Betim (MG), cidade onde se encontra a famigerada Fiat, no início do presente mês foi assassinado com 18 tiros Francisco das Graças Barreto, conhecido e respeitado com o carinhoso apelido de “Chiquinho”. Há tempos o já “idoso” meliante comanda o tráfico de drogas numa grande região da cidade, notadamente entorno do Bairro PTB. O traficante, que respondia à justiça por tráfico, porte ilegal de armas e assalto, foi morto no interior de uma escola estadual e, diante do acontecimento, seria ingênuo esperar outra que não fosse uma terrível onda de terror.

Como um rastilho de pólvora, a notícia da morte do traficante teve grande repercussão. De acordo com as autoridades e alguns periódicos atentos ao assunto, em poucas horas, escolas, farmácias, igrejas, postos de saúde, e muitas lojas da região fecharam as portas. Betim, cidade que faz parte da região metropolitana de Belo Horizonte, passou a sofrer o que já está mais do que evidente em nossa política de segurança pública: na inexistência latente e na incapacidade operacional do Estado, nada como um toque de recolher. Exatamente isso: as portas fechadas e o manifesto medo e apreensão em torno dos acontecimentos mostraram a força do mercado de drogas e a notoriedade de um traficante conhecido por “cuidar e ajudar as pessoas”. Sejamos honestos, nenhuma novidade até aqui e inexiste autoridade policial que não saiba das conseqüências quando alguém do “porte” de “Chiquinho” morre às vésperas de completar os seus 31 anos de existência.

Deixemos o argumento mais claro: em geral, a engenharia administrativa do tráfico de drogas é bem simples. Como qualquer empresa de grande porte ela se move em torno de uma liderança mais ou menos carismática e conservadora. Carismática porque sabe angariar e manter a amizade, os formadores de opinião na região, os usuários e, por fim, o controle dos que operam em sua rede. Conservadora, porque é uma gerência na qual não existe o desejo de mudança e, para isso, nada como deixar a polícia bem longe, mexer somente com quem deve, acertar com os que não andam na linha e deixar o mercado ditar as próprias regras e seguir o seu curso normal, haja vista que este mercado não sofre tanto com a vigente crise financeira. É realmente muito simples, a complexidade se esconde é na morte do traficante. Sua viagem desta vida para uma melhor (ou pior) abriu um vácuo no poder entre as denominadas gangues rivais. Como se sabe, na abertura da festa para comer o bolo sobra para todo mundo. Homens e mulheres, sapos da lagoa, participam da boa empreitada e “o arrastão é geral”. A melhor saída para a onda do medo é fechar a porta para a festa e definitivamente não participar dela, pois confiar no Estado, outrora ausente e historicamente conivente é difícil e não é razoável.

O caso torna-se interessante é justamente por isso. Enquanto temos o “Chiquinho” não é preciso maiores preocupações com o "Joãozinho”, com o "Marquinho", o “Pedrinho”, o "Zezinho", os quais, além de serem mais jovens, em geral são mais agressivos, inexperientes, novos no ramo e conhecem pouco os interstícios do Estado. O vácuo de poder no mercado das drogas é coisa muito séria. É ele que produz o aumento dos homicídios e, por ressonância, das taxas de criminalidade violenta, tão caras a governos que pretendem chegar à presidência.

Dificilmente alguém perguntará se as autoridades não sabiam disso. Diante das informações nos jornais e dos próprios moradores do local, “todo mundo sabe”. Vejam! Esta é a lógica do “bom traficante”, “todo mundo sabe”, mas “ninguém faz nada”. Esse é “o bom traficante", por quê? Porque ele é capaz, ao contrário dos mecanismos estatais e sociais, de responder à demanda por segurança (objetiva e subjetiva, como quer os policiais), por saúde, educação e lazer. Indubitavelmente, diante do reduzido capital intelectual ele responde da forma que ele acha ético e nem sempre essa lógica segue o que “é o certo”. Na realidade, a maioria das pessoas já sabe como as coisas nesse meio funcionam: “o melhor é não falar nada”.

A lógica perversa e inversa do tráfico, apesar de sua complexidade, é ostensivamente conhecida entre nós. Talvez por isso ela é mais ou menos combatida. Na verdade, é mais estudada e entendida do que modificada. No Rio de Janeiro, pululam aqui e acolá os milicianos, policiais (muitos aposentados, expulsos e corruptos) atuantes no vácuo deixado pelos traficantes. Eles tomam o poder e se alojam nele com a vantagem de estarem atrelados aos interesses do Estado e de terem por anos acumulado um bom estoque de conhecimento da região. De qualquer modo, a seriedade do fato é incontestável, haja vista que sequer deveria existir o vácuo de poder deixado pela morte de um simples ou “perigoso” traficante. É mais do que falado e certo a ausência do Estado em tais casos, mas é inadmissível que o crime desorganizado tenha o mínimo de organização a ponto de - após algumas horas - em um ostensivo ato simbólico, escolas, igrejas, e o comércio fecharem as portas. Quando instituições responsáveis pelo controle da ordem se rendem ao poder manifesto de um traficante de 30 anos é porque algo ainda não está indo bem. É imperioso saber o caminho que permitiu o desembocar de tais acontecimentos e ele não está na garantia da abertura das portas do comércio. A ordem pública está longe dos desígnios da lei. Relações ocultas e violentas estão em andamento e não é por acaso que tanto a Polícia Civil como a Polícia Militar entupiram as ruas de gente. Até helicópteros foram utilizados. Todavia, não é o bastante.

É impossível nos dias atuais, onde o tráfico anda solto e qualquer criança no bairro sabe onde fica as bocas de fumo, sustentar o vácuo de poder deixado por um ser humano que não respeita a lei, mas que se ajeita muito bem na ordem. Certamente a polícia tem encontrado mais corpos, pois em tese, novos grupos estão tentando (se já não conseguiram) tomar o poder, ganhar o território e garantir o comércio que não pode entrar em crise. O mercado de drogas necessita de silêncio, harmonia de relações, “a calada da noite”, lideranças “ocupadas” em dia, experientes e fortes no trato com as autoridades policiais e políticas. A luta pelo poder e depois por sua continuidade é constante e talvez seja até redundante e perigoso dizer que ela continuará até que outro “bom traficante" tome o lugar daquele que se foi. Esta é a lógica. Esta é a realidade nua e crua e está distante do policiamento ostensivo, comunitário ou de resultados.

O tráfico deve ser combatido pelo policiamento inteligente, pela polícia judiciária que toca o problema em silêncio e, tal como em uma cirurgia, retira o cálculo no rim de um corpo social que chora de dor. Quem já teve dores nos rins repleto de cálculos sabe disso. A operação para retirá-los é terrível, como também é a saída deles pela uretra. Aos poucos, contudo, as contrações vão diminuindo restando um alívio sem igual. O tráfico de drogas e, por ressonância a questão dos “usuários” é inegavelmente um problema que não pode ter repouso em nossa sociedade. Todavia, parece que ele tem. De acordo com a Fundação João Pinheiro, órgão do Estado de Minas Gerais, a região na qual “Chiquinho” atuava era considerada um dos locais “menos violentos da cidade”. De duas uma: ou o “Chiquinho” era realmente competente e mantinha a ordem, ou o Estado desconhecia sua existência ou fazia de cobra-cega diante dos ditames do “comerciante”. Procurar culpados agora é mais do que o esperado e não acredito que eles estejam na “crise" financeira, na corrupção policial, no desemprego, na miopia das autoridades, na ocupação desordenada de locais de moradia ou de gangues de jovens rivais sedentos de poder.

O mais sensato é procurar o problema em nossa incompetência de levar a efeito políticas públicas consistentes. Procurar o problema em nosso desejo exasperado de não ver o que está estampado em nossos olhos. Em nossa ousadia de deixar para o outro resolver ou mesmo no esperar constante que as coisas resolvam por si mesmas. Esta é uma prática que parece invadir o campo da segurança pública. Se a moda pegar, vamos torcer para que o Chiquinho da próxima vez tome mais cuidado e não morra, tampouco o Joãozinho, o Pedrinho e a Mariazinha que se encontram de pé - e muito animados - na fila da merenda.

* é professor e sociólogo, licenciado e bacharel em Ciências Sociais pela UFJF, mestre em Sociologia, doutor em Ciências Humanas: Sociologia e Política pela UFMG. Autor do livro, Fordismo: origens e metamorfoses. Piracicaba: Ed. UNIMEP, 2004; organizador da obra Polícia em Movimento. Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006 e co-autor do livro de poesias, Das emoções frágeis e efêmeras. Belo Horizonte: Ed. ASA, 2006.