Espiritualidade da Paixão de Cristo

Espiritualidade é uma ação do espírito, portanto, de algo que sai do ser do homem. Karl Rahner, teólogo católico, dizia que o homem é um ser espiritual. Em seu entendimento isso significa, refletir sobre as coisas que se apresentam a mim a partir de dentro.

Na tradição bíblica temos a palavra ruah que significa vento, hálito, movimento, força; “Então IAHWEH Deus modelou o homem com a argila do solo, insuflou em suas narinas um hálito de vida e o homem se tornou um ser vivente”. (Gn 2,7). Isso é o principio do entendimento para qualquer espiritualidade que se queira cristã, ou seja, é a partir do dado bíblico que se constrói uma mentalidade adequada a respeito da espiritualidade. Assim, entendida toda e qualquer ação terá um principio em Deus que fornece a capacidade ao homem de, também ele, vivificar as suas obras.

Isso nos introduz em um clima mediante o qual é possível falar de experiência de Deus.

Quanto à experiência de Deus parto da idéia do pe Lima Vaz que faz uma distinção entre a experiência de Deus e a experiência religiosa. Pois bem, para ele:

“a experiência religiosa não é, especificamente, uma experiência de Deus; a experiência de Deus não é, estruturalmente, uma religiosa. A experiência religiosa é uma experiência do Sagrado (aqui entendido como qualquer dado sacralizado, por exemplo: um anel recebido de alguém muito importante o qual se conferirá um valor inestimável) e a experiência de Deus é uma experiência de Sentido que não é a soma de sentidos parciais nem um sentido entre outros, mas um Sentido radicado e absoluto que permeia todas as situações da vida”

Assim compreendida, podemos pelo menos perscrutar a experiência mesma de Jesus, pois os evangelhos nos dizem que Ele crescia em “sabedoria, estatura e graça diante de Deus e dos homens”. Se fosse só diante dos homens Ele teria revelado os projetos do Pai à conta gotas dando a entender todo o conjunto daquilo mesmo que o Pai desejava que fosse. Portanto, o fato de pedir a libertação em face da morte iminente no Getsêmani se configuraria como uma rebeldia, desobediência, haja vista estar ele a par de toda a situação. Então, isso evidencia o fato de que teve como qualquer outro homems “elevar aos céus preces e súplicas”, para que, assim, pudesse dês-velar o projeto do Pai e cumpri-lo.

Ao nos referirmos à morte de Jesus estamos fazendo menção não ao acabamento natural de uma vida, mas sim, ao acabamento de uma vida que, de modo violento, foi ceifada da face da terra por causa das conjunturas históricas. Ora, se Jesus ia descobrindo aos poucos a vontade de Deus Ele o ia fazendo de modo a confrontar as autoridades religiosas daquele tempo que usavam a Lei e a tradição para legitimarem as suas opressões. Fato esse que provocou a ira dessas autoridades ao ponto delas no exercicio e usufruto de suas posições moverem um processo contra Jesus, o Nazareno.

De tal modo que podemos falar de dois processos movidos contra Jesus um de cunho religioso e outro de cunho político. O religioso foi impetrado pelas autoridades judaicas e o político, pelas mesmas, diante do representante romano, Pôncio Pilatos. O motivo pelo qual foi condenado pela cúpula religiosa foi o crime de blasfêmia e o político por insurreição, sedição política.

Para libertar da idéia que muitos fazem de Pilatos como um “homem bonzinho” por ter lavado as mãos, basta ler a informação de um cronista romano, Filo: “Pilatos feito procurador no ano de 26 foi de uma grande venalidade, violência, rapina, maus tratos, ofensas, execuções incessantes e sem julgamento, crueldade sem razão”. Ora, essa idéia não se compagina com aquelas consignadas nos evangelhos! E muito menos naquela do imaginário popular.

A morte de Jesus foi um assassinato judicial. Não foi erro, mas sim, fruto de interesse diabólico por parte das autoridades judaicas e de má vontade e índole perversa como era a de Pilatos segundo o cronista romano.

Portanto, se imiscuir nos recônditos de uma espiritualidade da paixão de um homem que entregou sua vida em favor de muitos é mister ter em mente que a via-sacra é um exercício de piedade que remonta ao século XIII, portanto, a um contexto medieval em que grande parte das pessoas não eram alfabetizadas, então, tal prática se revestia, naquele contexto, de singular importância, pois se prestava a catequização dessas pessoas. Contudo, esse exercício pode minorar os ensinamentos mais profundos a respeito da paixão do homem Jesus devido a sua tendência retórica em colocar os fatos da paixão uma retórica exagerada usando para isso, além da linguagem, um melodrama exacerbado.

A paixão do homem Jesus, portanto, para ser entendida em sentido mais real e menos retórico deve primar pela premissa de que a condenação, flagelação e crucificação de Jesus é a conseqüência de uma de uma anuncio questionador. É a conseqüência de quem assumiu a vida porque fez a experiência do Sentido Absoluto, porque sendo que a vida nunca é um dado seque-se que é sempre uma tarefa, algo que deve ser feito e conduzido até o fim. É desse modo, o reflexo de alguém que não fugiu, não abandonou, mas "assumiu a cruz como expressão de fidelidade para com Deus e para com os homens. Foi crucificado para Deus (absoluta fidelidade a Deus) e crucificado pelos homens e para os homens (em amor e fidelidade aos homens)"(L. Boff)

Para E. Lévinas, “espiritualidade não é o Dito, mas o Dizer que sai de si Mesmo em direção ao Outro”.

Logo no inicio de nossa conversa dizíamos que a espiritualidade era aquele “hálito de Deus” o qual faz com que o homem aja. Esse “hálito de Deus” é o Dizer instaurado no fundo do coração do homem e a ação em direção ao outro é o Dito.

No relato bíblico o qual forneceu as bases para construirmos o significado de nossa espiritualidade diz que Deus modelou da argila do solo o homem e depois disso insuflou seu hálito nas narinas. Tal relato supõe um Rosto que contempla a face daquele que ainda não possui um.

A partir disso temos que toda espiritualidade genuinamente cristã é permeada pela experiência do rosto de alguém.

Na Paixão do Cristo o rosto desfigurado pela violência, pelo opróbrio, pela humilhação é o rosto do homem Jesus.

Leonardo Boff diz que a dolorosa paixão do homem Jesus crido como Cristo se prolonga na dolorosa vida dos empobrecidos, dos prostituídos, dos excluídos, dos expropriados, dos expatriados, dos espoliados, dos esfomeados, dos marginalizados, enfim, daqueles que são os últimos. Últimos, obviamente que entendidos por uma categoria de compreensão de quem se julga primeiro ou mediano, negligenciando, dessa forma, que foram as conjunturas históricas que o colocaram neste patamar.

É através dos rostos dos sem rostos que se entreve o Rosto de Deus. É ouvindo a voz dos sem voz que se ouve a voz de Deus.

Portanto, a espiritualidade supõe a presença de Deus entre o nós. Ele é o fundamento do Dizer, o ato de estar Dizendo e o ter dito no entre nós. Não é uma frase retórica aquela em que Jesus diz estar entre aqueles que se reúnem em seu nome.

Portanto a frase que resume bem essa espiritualidade da cruz, ou seja, do aniquilamento, da drenagem da vida de alguém por outro alguém nas mãos de outro alguém, é “nu seguir o NU”.

Dranem
Enviado por Dranem em 28/03/2009
Reeditado em 05/04/2009
Código do texto: T1511362