CRÔNICA SOB MEDIDA PARA AQUELES QUE AINDA TÊM CURIOSIDADE EM SABER PORQUÊ ME EXILEI DE SALVADOR

Zoraide, com cara de sinhá-mariquinha-cadê-o-frade, custou a acreditar que eu me exilasse de Salvador. E, com uma sinceridade só vista nos grandes amigos, deixou-me escapar:

– Coitado!...

A Bahia – o estrangeiro confunde a cidade de Salvador com o estado da Bahia – não será mais a mesma sem o Antônio Carlos, dizem os que têm gozo em ser soteropolitano. Como eu não gosto de discutir sobre credo, partido ou posição sexual, preferi dizer a Zoraide que me ia porque deram de batizar a água de Itaparica, que, com a idade, já não suportava ver salada no acarajé e sundaes servidos na sorveteria da Ribeira. Desculpas esfarrapadas?... Não sei. O fato é que Salvador cresceu desmedida e desordenadamente, agigantou-se; e, quem nasceu para colo de mãe, jamais será berçário – toda mãe-preta é leiteira.

Colhudeiro, eu?!... Não sei se Zoraide em mim acreditou. Só sei que me apontou, com o indicador direito, no mapa, com uma felicidade de amiga, como se houvesse descoberto a pepita filosofal, uma cidade:

– Urukundauê!...

– Urukundauê?!... – meio esquecido.

Urukundauê, um principado, a terra de Ifigênia, onde pintaram um diabo alado no rabo do seu rei, cidade invencionada por mim no poema “Ifigênia".

– Irás se exilar em Urukundauê!

– Onde é Urukundauê?...

– Aqui! – mapa.

Não contei nem a Zoraide: a Salvador foi comigo.

Urukundauê!... A casa, aluguei. As casas em Urukundauê são facílimas de serem achadas. Tudo como imaginado por Zoraide: sala cheia de ar, livros, canetas, papéis e lápis, e uma vasta vista a enxergar. Em um dos cantos da sala, sob uma lona: uma gata a miar. Avesso a gatos, era evidente. Mau sinal! No entanto, em Urukundauê não há sextas-feiras treze, assustes ao se passar por sob escadas, patuás, figas, trevos ou ferraduras. Lá, gatos pretos passeiam pelas ruas à vontade. Miava-me uma gata preta. Mau sinal?... Estranho, o miar, dessa gata preta. Chora de felicidade o seu olhar. Todos choram de felicidade em Urukundauê. Uma gata preta com patas e focinho rajados de branco a me pedir, com a delicadeza dos suaves, algum cuidado, certa que minha picuinha por gatos haveria de findar. Dói-lhe miar. Acudo. Um miado, mais um miado, e mais outro miado. Seguiram-lhe miados. Uma ninhada!

Só mesmo onde a vida se derrama, longe de Salvador eu ficaria. Fez-se Urukundauê!

Perdoe-me, amiga Zoraide, se conto nesta croniqueta um segredo já lhe revelado em carta: em minha casa, hoje, moram vinte e oito gatos!