O drama familiar na obra Frei Luís de Sousa

O drama Frei Luís de Sousa (Almeida Garrett, 1843), baseado na vida de Manuel de Sousa Coutinho, é um texto de três atos com características do gênero tragédia que se deixa analisar em vários aspectos que compõem a história: entre outros traços, a negação de Madalena de Vilhena em relação ao seu passado, o nacionalismo e o dramático desenrolar de um problema familiar.

Apesar da obra se chamar Frei Luís de Sousa, o que chama mais atenção é a história de Madalena. Nobre e culta, essa jovem senhora é assombrada por seu passado. Seus primeiro casamento, com D. João de Portugal, acabou depois do mesmo supostamente ter sido morto na batalha de Alcácer Quibir. Supostamente devido ao fato de seu corpo nunca ter sido encontrado. Ela, então, acaba por desistir da idéia de um dia reencontrá-lo e resolve se casar novamente, agora com Manuel de Sousa Coutinho, um nobre de Portugal. Madalena tem consigo um sentimento de culpa pelo fato de, no dia de seu casamento com D. João, se apaixonar por Manuel assim que o viu:

“Conto. Este amor, que hoje está santificado e bendito no céu, porque Manuel de Sousa é meu marido, começou com um crime, porque eu amei-o assim que o vi… e quando o vi, hoje, hoje… foi em tal dia como hoje, D. João de Portugal ainda era vivo! O pecado estava-me no coração; a boca não o disse… os olhos não sei o que fizeram, mas dentro da alma eu já não tinha outra imagem senão a do amante… já não guardava a meu marido, a meu bom… a meu generoso marido… senão a grosseira fidelidade que sua mulher bem nascida quase que mais deve a si do que ao esposo. Permitiu Deus… quem sabe se para me tentar?… que naquela funesta batalha de Alcácer, entre tantos, ficasse também D. João. “ (GARRETT, p. ?)

Este fato, junto à eterna dúvida da morte de seu marido, faz com que Madalena tente constantemente negar e esquecer seu passado. Tal é a intensidade do sentimento de crime que, por mais esforço que faça, não consegue se desvencilhar de sua história. Telmo Pais, que foi escudeiro fiel de D. João de Portugal e que transferiu esse papel à filha de Madalena com Manuel de Sousa Coutinho, Maria, tem um importante papel nessa prisão ao passado: acreditando que seu antigo senhor D. João ainda esteja vivo, ele frequentemente lembra à Madalena seu primeiro casamento. Pode-se afirmar aí que Telmo tem a função de voz da consciência, sempre lembrando à senhora que seu primeiro matrimônio não teve um fim concreto e que esta deveria ter mais respeito à imagem de D. João. Pais possui tal força de resistência que reforça o aprisionamento de Madalena aos fatos já passados em sua vida.

O desenrolar dramático do problema dessa família se inicia no ato primeiro, cena VII. É-nos mostrado um Manuel aflito com a notícia de que, com a evolução da peste em Lisboa, fidalgos portugueses, a mando de governantes espanhóis, iriam mudar-se para o palácio de Almada, onde Coutinho vivia com sua família. Assim, ele resolve tomar uma medida extrema: atear fogo em sua moradia. Este não aceita ser afrontado pelos vilões e, destruindo o palácio, provaria que não é de se entregar facilmente aos inimigos, se mostrando, assim, um nobre português:

“Manuel, passeia agitado de um lado para o outro da cena, com as mãos cruzadas detrás das costas; e parando de repente:

– Há-de saber-se no mundo que ainda há um português em Portugal.” (GARRETT, p. ?)

Neste trecho percebemos que Garrett se preocupou em criar uma personagem heróica portuguesa, um nobre que se sacrifica para não trair seus valores morais.

Após o incêndio no palácio de Almada, Manuel opta por se instalar com sua família na moradia que foi de D. João de Portugal e que ainda pertencia à Madalena. Esta, claro, entra em pânico ao saber que terá que enfrentar ainda mais de perto seu passado. E é no início do ato segundo que nos é apresentada a descrição de um salão digna de análise:

“É no palácio que fora de D. João de Portugal, em Almada: salão antigo de gosto melancólico e pesado, com grandes retratos de família, muitos de corpo inteiro, bispos, donas, cavaleiros, monges; estão em lugar mais conspícuo, no fundo, o del-rei D. Sebastião, o de Camões e o de D. João de Portugal. Portas do lado direito para o exterior, do esquerdo para o interior (...).” (GARRETT, p. ?)

Pode-se afirmar que Garrett não dispôs estes retratos por acaso. A figura de D. Sebastião, monarca de Portugal imortalizado pela lenda de que não teria morrido, mas sim desaparecido; e Luís Vaz de Camões, frequentemente considerado o maior poeta de língua portuguesa são figuras lusitanas ilustres que surgem no texto para afirmar uma identidade nacional, este com o objetivo do não esquecimento da história de Portugal e suas conquistas. Já a imagem de D. João de Portugal, em uma das hipóteses, além de afirmar também a nobreza portuguesa, surge para desestabilizar ainda mais a alma de Madalena de Vilhena, que vê seu retrato como um sinal do que está por vir: o desmoronamento de sua família por consequência de seu “pecaminoso” passado e a volta da figura do ex-marido.

A tragédia familiar já anunciada nas entrelinhas do texto e das personagens se mostra explícita nas partes finais do ato segundo graças à entrada de uma nova figura: o Romeiro. Este se apresenta como um mensageiro que tem o desejo de revelar à senhora Madalena a notícia bombástica de que se primeiro marido ainda estava vivo, preso em um cativeiro da última batalha da qual participou. Assim, o caos se espalha: Madalena adoece gravemente, assim como sua filha, e Manuel de Sousa Coutinho lamenta-se profundamente pelo fato de que a honra da filha, Maria, estaria manchada para sempre no meio de todas aquelas pessoas que nunca entenderiam seu dilema familiar:

“Oh minha filha, minha filha! (Silêncio longo) Desgraçada filha, que ficas órfã!... órfã de pai e mãe... (pausa)... e de família e de nome, que tudo perdeste hoje... (Levanta-se com violenta aflição) A desgraçada nunca os teve! Oh Jorge, que esta lembrança é que me mata, que me desespera! (Apertando a mão do irmão, que se levantou após dele e o está consolando do gesto.) É o castigo terrível do meu erro... se foi erro... crime sei que não foi. E sabe-o Deus, Jorge, e castigou-me assim, meu irmão! “ (GARRETT, p. ?)

A única solução encontrada foi a de Manuel e Madalena se enclausurarem na vida religiosa. O primeiro vira Frei Luis de Sousa e a última, Sóror Madalena. Assim seriam, de certa forma, “purificados” e teriam a oportunidade de começar uma vida nova com a também mudança de nomes e adição de títulos. O único rastro da união “pecaminosa” do então ex-casal seria Maria, fruto dessa união. Tal questão é resolvida quando no ato terceiro Maria falece em consequência de sua doença. Pode-se ler aí que a jovem morre para purgar os pecados alheios, o que faz com que o acontecimento tenha função moralizante.

Para concluir, uma última questão é válida: como se explica o fato desta obra não levar o nome de Manuel de Sousa Coutinho, já que traz à tona a trágica trajetória da família desse português? A análise feita no penúltimo parágrafo pode nos ajudar a responder essa perguntar. O fato desse título – de Frei – representar a purificação de seu erro faz com que o nome Frei Luis de Sousa soe nobre e imaculado. Assim então Almeida Garrett mostra a finalidade do drama em questão: a fixação de uma memória histórica de Portugal, com direito a heróis e muitas conquistas.

Gabriela Gusman
Enviado por Gabriela Gusman em 11/04/2009
Código do texto: T1533782
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