A crise nossa de cada dia

É curiosa a manifestação midiática em torno da famigerada crise, fato normal e própria do modelo de produção baseado no mercado e na burra capacidade da intensa produtividade. Não obstante a verdade dos fatos e a inconsequente ação dos “doutos” na economia e no mercado de ações uma indagação me incomoda: a crise não é um momento pelo qual, sempre, e em certa medida, passamos? No caso dos países considerados mais desenvolvidos até entendo que eles possam reclamar, pois há muito já possuem gerações as quais não precisam se preocupar com o dia de amanhã. Bom para eles que navegaram antes numa política de colonização e exploração dos mais fracos.

No caso do Brasil, não acredito nessa onda extremamente mal explicada de crise momentânea. A meu ver, sempre estivemos nela e ainda não encontrei gerações no andar de baixo que não precisasse se preocupar com o amanhã. Detalhe: acompanhei de perto os rumos que levaram o antigo trabalhador metalúrgico Luís Inácio Lula da Silva ao poder. O mesmo no que diz respeito aos antigos projetos de reforma agrária, distribuição de renda, reforma nas relações de trabalho e impostos progressivos para aqueles que ganham mais. Todavia, não quero perder tempo com o governo Lula. Cumpre aqui alguns comentários sobre nossa eterna condição objetiva de crise.

Penso que desde a colonização passamos por momentos difíceis. Gilberto Freyre é um dos autores que não nos permitem esquecer o nosso processo de "sifilização" que entrou pelas índias à dentro numa espetacular forma de colonização. Dali pra frente é só crise. Momentos de desconforto para o povo indígena, acusado de não gostar de trabalhar, e demonizado pelo fato da diminuição das riquezas em pleno período colonial. Não é preciso nem mencionar o que esse povo passou com a idéia de civilização, domesticação e docilização dos corpos. Outra crise se abriu com a emergência da escravidão. O Brasil foi um dos lugares que mais recebeu negros no mundo. Foram tantos que nós perdemos até as contas e entraram por todos os lados. Seja pelo Maranhão, pelo Espírito Santo, Salvador ou Rio Grande do Sul. A luta do povo negro é uma crise aberta até hoje e sequer conseguimos categorizá-los por cor, raça ou etnia. Não é por acaso que eles não se encontram em número suficiente nos locais que emanam poder. O fato é que negros, índios e brancos nativos, sofreram com as crises do ouro, do açúcar, do café e, em paralelo, com as invasões estrangeiras.

É curioso como as pessoas esqueceram as crises no período imperial. As elites naquele período fizeram o que puderam para a manutenção do latifúndio, da escravidão e não deixaram de se misturar para participar, dentre tantas, da Guerra dos Emboabas (1708), dos Mascates (1710), da Revolta de Vila Rica (1720), da Inconfidência Mineira (1789) e da Inconfidência Baiana (1798). Ficamos entre um liberalismo fora do lugar e um governo imperial incapaz de manter o território em paz e sossegado no campo político e econômico. E não paramos por aí, a vinda da família real portuguesa para o Brasil (1808) se deu em um momento de crise tanto lá quanto cá. Napoleão forçou D. João VI a se meter por aqui e, obviamente, a encarar algumas rebeliões como a pernambucana e a revolução do porto. Essa última desencadeou sua volta para Portugal e a instauração de um governo monárquico que, nas mãos das elites, se desenvolveu na esteira da economia manufatureira e cobradora de impostos. Não vou me alongar no período regencial, deixando claro somente as crises que explodiram no Pará (“A Cabanagem” - 1835-1840), no Maranhão (“A Balaiada” - 1838-1841), na Bahia (“A Sabinada” - 1837-1838) e no Rio Grande do Sul (“A guerra dos Farrapos” - 1835-1845). Os interesses e conflitos eram variados, mas abertos às perversas práticas da economia de mercado como o tráfico negreiro, tarifas alfandegárias, protecionismo econômico e crise de governabilidade. É preciso mencionar que o tráfico de escravos garantiu a mão de obra e, como se sabe, somente foi extinto aos poucos e ao sabor dos interesses internacionais e não devido à nossa cultura “cordial” e democrática.

O período republicado foi fértil em crises tanto no campo econômico como no social e político. Sabemos da política do café com leite e os entraves para se chegar a uma constituição “liberal”. Tão liberal que o Marechal Deodoro da Fonseca governou provisoriamente (1889-1894). A esse poder político, tentou-se associar o movimento pró industrialização. A despeito das tentativas do conhecido Rui Barbosa, o país se afundou na economia manufatureira e apoiado pelas elites o Marechal fechou o congresso. A cargo do Marechal Floriano Peixoto ficou a abertura do congresso em 1894, ano no qual tivemos o primeiro presidente civil da história do Brasil, Prudente de Morais (1894-1898). Este assumiu somente após equacionar a Revolta dos Mascates e os problemas de fronteira com a Argentina. Importante lembrar a Revolta de Canudos (1893) que terminou em um massacre e com um governo se achando o salvador da pátria. Por falar nisso, é este o período das oligarquias e de momentos de crises e mais crises. Aqui e acolá elas apareceram: Campos Sales (1898-1902), Rodrigues Alves (1902-1906), Afonso Pena (1906-1909), Nilo Peçanha (1909-1910), Hermes da Fonseca (1910-1914), Venceslau Brás (1914-1918), Epitácio Pessoa (1919-1922), Artur Bernardes (1922-1926) e Washington Luís (1926-1930), muitos destes mantiveram o poder na base do estado de sítio e na formação de um estado penal não deixaram de aniquilar o Contestado, reprimir os tenentes, a revolta de 1924 e humilhar a Coluna Prestes. Em questão, o “liberalismo” assentado no mercado e nos vultosos lucros dos coronéis e dos primeiros industriais que armavam conchavos com os presidentes de ocasião.

A história do Brasil é frutífera em casos de crises. A economia manufatureira, antes baseada no açúcar e depois no café, era para poucos e não resistiu à crise econômica de 1929 e a crise política que desembocou no Estado Novo implantado por Getúlio Vargas em 1937. O período ditatorial getulista é conhecido: o caudilho com violência acabou com o movimento constitucionalista de 1932, pôs fim à Intentona Comunista, reprimiu o movimento sindical, perseguiu os partidos de oposição, os judeus, ajudou a oligarquia cafeeira e beijou o nazismo. Mais que isso, manipulou a constituição, os sindicatos (via a CLT), calou a oposição, perseguiu os partidos e a imprensa. Nas crises porque passou queimou o café, criou o salário mínimo e apostou numa industrialização capenga e sem tecnologia. Apesar de deixar o poder em 1946 com Dutra as crises não terminaram. Este seguiu o mestre e praticou a mesma política econômica e reprimiu de perto os sindicalistas e a oposição. O retorno de Getúlio (1951-1954), agora em governo democrático, também se caracterizou por crises. Apostou ele em uma espécie de protecionismo/nacionalista em um campo político (afundado em acusações de corrupção) no qual já era tarde para a emergente burguesia nacional fazer valer os seus interesses frente à burguesia “americanófila”. Em meio à crise política Getúlio preferiu a morte empurrando o golpe militar para 1964. O governo de Café Filho, de apenas um ano, foi de transição, de manifesta inquietação política e econômica. Coube a Juscelino Kubitschek (1956-1961) a tentativa de por ordem em um “país de crises” e começou sufocando duas rebeliões oriundas dos oficiais da aeronáutica. Apesar de abrir o mercado e criar uma onda de prosperidade em torno de suas realizações econômicas e políticas JK praticamente entregou a riqueza nacional. Abriu a economia e deixou passar sobre nós o poder das multinacionais que substituíram nossas importações e nos afastou da tecnologia e do conhecimento nacional. Já é conhecida a história depois de sua saída, pois parece coisa de Brasil o poder ser entregue a Jânio Quadros (1961), o qual preferiu a renúncia (alegando que "forças terríveis" o obrigavam a esse ato) liberando o governo para João Goulart (1961-1964) que, apesar de enfrentar as crises políticas, não resistiu ao golpe militar e à ditadura iniciada em 1964.

A despeito do que informou a “Folha de São Paulo”, nossa ditadura sequer chegou a ser perto de branda. Até os dias de hoje não encontramos todos os corpos e várias famílias ainda sofrem a perda e/ou lembranças da tortura de muitos. No campo econômico, retirando a liberdade política, sobrou espaço para o que chamaram de “milagre econômico”. Todavia, passamos por maus bocados depois dele, pois os governos militares foram incompetentes no controle da inflação, do déficit público e do desemprego. Por outro lado, à moda brasileira, pareciam bem articulados quando o assunto era repressão e pau de arara.

O general João Baptista de Oliveira Figueiredo foi o protagonista privilegiado do esgotamento do modelo econômico adotado pelos governos militares. Sofreu ele a crise de petróleo de 1979, a elevação dos juros no mercado internacional e o aumento da dívida externa a qual girava em torno de 61 bilhões de dólares. Com o PIB negativo assistiu-se o aumento da inflação e posterior inflação. É no seu governo que emergiu o movimento sindical, as greves, novas associações, sindicatos e centrais sindicais. Contudo, é neste cenário que foi realizado as eleições diretas para o Congresso e governos estaduais. A oposição obteve maioria na Câmara dos Deputados, no Senado e nos governos estaduais. Não obstante as mobilizações para as eleições diretas, em janeiro de 1985, Tancredo Neves e José Sarney foram eleitos indiretamente pelo Colégio Eleitoral.

A morte de Tancredo levou José Sarney ao poder (1985-1990) e ainda é possível lembrar o Plano Cruzado pelo qual se tentou uma reforma monetária, o congelamento de preços por prazo indeterminado, o congelamento dos salários e a negociação com os trabalhadores. Período difícil aquele que terminou com a inflação mensal próxima a 21%. De nada valeu o II Plano Cruzado que rasgou o véu da alienação produzida pelo outro. Um novo pacote tentou segurar as contas estatais, a saída pelo FMI e a liberalização dos preços. O pacto governamental não deu em nada e terminamos o governo do maranhense nas mãos de uma figura chamada Collor de Melo (1990-1992), o qual se meteu em escândalos, corrupção e ainda por cima colocou em xeque a transição democrática. Collor abriu caminho para as privatizações (Programa Nacional de Desestatização) e apostou na abertura do mercado nacional às importações. No seu governo assistimos ao confisco da poupança, ao crescimento do desemprego batendo à casa de um milhão de pessoas e a inflação anual superior a 1100%. Sua estadia não foi longe terminando em crise aberta já com Itamar Franco (1992-1995) assumindo o poder. O político mineiro suportou os solavancos políticos, criou a URV e deu alicerce ao Plano Real. Além disso, garantiu o sucessor, o vaidoso Fernando Henrique Cardoso (1995-2003) que controlou o câmbio, arrochou os salários e continuou a política de privatização. Apesar da crise energética que floresceu em seu governo, ele perdeu terreno com a desvalorização do real que reduziu drasticamente o crescimento e aumentou o desemprego. Nesta esteira chegou Lula (2003), presidente agraciado com a reeleição devido ao crescimento do PIB e ao governo assistencialista e “autista”. De qualquer forma, o metalúrgico ajustou o Plano Real, estabilizou por volta de 8% o desemprego e abraçou os formadores de opinião sobrevivendo incólume ao escândalo do mensalão. A crise econômica vigente parece brincadeira quando vemos em largas linhas o que é a história desse país. Sabemos da queda de popularidade de Lula, afinal o desemprego voltou a crescer. O setor mineral e automobilístico está passando por mal bocados e respira devido às tetas estatais. Desculpe-me o leitor, mas não é possível que se possa falar em um Brasil sem crises. Quando vejo o nosso presidente na TV penso que estou em outro país. Quando vejo os meus alunos e amigos rindo até rasgar o pescoço - apesar da falta de dinheiro e da dificuldade que a maioria passa - me dá enjôo no estômago. E quando percebo a enganação em torno da recessão, que rapidamente se fez presente, e dos constantes casos de corrupção que se tornaram banais sinto vergonha e receio. O rei está nu. Vivemos um mundo de ficção e é de causar resignação quando assisto um Jornal Nacional com “âncoras” tentando me convencer de que este país é sério. Pelo amor de Deus! Tal como o país, também estou em crise e exijo respeito. Pelo menos neste momento de pura esquizofrenia.