“Os que vem em seguida”

(parceria entre Bernard Gontier e Maria Olímpia Alves de Melo)
 
 
Morremos duas vezes quando os homens nos esquecem”, cantavam as camponesas gregas, nos tempos de Homero.
A intenção deste artigo é realçar ações individuais, cujo fruto aprimorou as condições da vida humana nesta terra. Seja de uma única vida, ou de várias vidas. Essas ações, todavia, não foram obra de conchavos para o alcance de benefícios próprios, imediatos ou futuros, não integraram alianças políticas, religiosas ou corporativas a fim de que terceiros, sem contar os primeiros,  lucrassem com o sofrimento alheio.  Foram gestos solitários. Ou melhor, a centelha do gesto foi solitária. Nalguns casos, ganhou adeptos. Em todos os casos, o que motivou essas ações está vinculado a coragem, e não raro, a necessidade de sobreviver. Noutros, apenas boa vontade e por que não acrescentar, bom senso.

 
Dona Rosalina está viva e goza de boa saúde. Mora num sobrado na Vila Mariana. Tem uma filha e uma neta, além de renda própria que em hipótese alguma pode ser encarada como espetacular. Vive bem. Não lhe falta nada. De uns anos para cá, ela passou a emprestar dinheiro para os menos afortunados que a cercam: empregadas domésticas e seguranças de rua. Da parte dela, não se trata de usura, e quanto aos beneficiados, nem de longe formam contingente capaz de lotar um posto do SUS. Algumas pessoas. Talvez 30, se tanto. Para uma foram 8 mil reais, a fim de adquirir residência própria  na zona sul periférica de São Paulo. Dona Rosalina cobra 50 reais por mês. Diz que nunca deixou de receber. Esse montante equivale a 160 prestações. Dona Rosalina tem 73 anos. Receberia o valor nominal da dívida, pois não cobra juros, em 13 anos. Não está preocupada. Nada lhe falta. O guarda, seu Antonio, comprou um Monza em ótimo estado por 6 mil reais. A diarista da vizinha, Arlete, quitou as prestações de um terreno em Itaquera. Vidas comuns, sobrevivendo com trabalho duro e obtendo rendas hilárias, ganharam através de um gesto de boa vontade, a segurança de um teto. Quem não tem, sabe quanto vale. Até agora não se conta  um caso em que o dinheiro de Rosalina tenha tido serventia para fins pouco salutares. Ou se comenta sobre um calote. Nada é alardeado. Muito menos obedece  uma ordem mecânica. Simplesmente vem acontecendo, de tempos em tempos, um vai indicando outro, de tempos em tempos. Inexistem alaridos, holofotes e filas de pedintes na porta de sua casa. De modo sorrateiro, simplesmente vem acontecendo. Com isso, fardos vem sendo aliviados. 
 
 Naquela noite a chuva fez uma única pausa e permitiu que o evento ocorresse. Na Praça principal da cidade mulheres seriam homenageadas. Ela chegou discretamente e se assentou em uma cadeira  isolada e ali ficou. Sozinha. Todas as outras estavam acompanhadas por familiares orgulhosos. Ela não. Quem seria aquela mulher solitária? O Mestre de Cerimônias abriu o evento e foi chamando cada homenageada. Ordem alfabética. Quando chegou a sua vez ela se levantou e dirigiu-se mansamente em direção ao palco. Foi quando eles se levantaram todos e a aplaudiram. Eles, os vinte e quatro filhos de Dona Mirandolina de Jesus, ocultos no meio da platéia. Subiram todos ao palco. Os netos também. E os olhos de todos marejaram enquanto ouviam a história daquela mulher, desconhecida para a maioria deles
 
        Mirandolina de Jesus tem quase oitenta anos. Muito pobre, foi criada na roça. Órfã, vivia com uns tios que mal davam conta de se sustentarem quem diria a sobrinha, obrigada a se virar desde cedo. E nessa viração ela acabou se  casando e tendo um filho. Motivo de sua alegria por algum tempo  - aos dezoito anos enlouqueceu e hoje vive em um hospital psiquiátrico. Mas isso não foi suficiente para abatê-la. Se não podia cuidar do próprio filho, cuidaria dos filhos dos outros. Não deixaria ninguém que batesse a sua porta viver como ela própria tinha vivido. E eles foram chegando, um a um. E ficando. E ela os educando. Sozinha. Nunca recusou uma criança. Trabalhava a noite em um restaurante, bordava, costurava e criava porcos no quintal. Muitos passaram por sua vida e partiram em busca de novos caminhos. Tantos que ela já nem consegue se lembrar, mas certamente a centena foi ultrapassada. Mas os que ficaram estão juntos dela até hoje, sempre por perto. Ser filho da Dona Mirandolina é uma carta de apresentação. Significa que foi bem criado, é um cidadão, gente de bem. São bem vindos em todos os lugares. É comum quando se elogia em deles em suas variadas atividades profissionais: É  filho de Dona Mirandolina. Nenhuma explicação adicional é necessária.
          
Aos 7 anos de idade Hellen Keller já se encontrava cega, surda e muda. Em meados do século XIX, uma criatura nessas condições estava fadada, na melhor das hipóteses, a um asilo. Uma das coisas mais impressionantes sobre sua saga foi o depoimento de sua professora particular. Como ensinar uma menina com tal perfil, nessa época? Aconteceu pelo tato. Pancadinhas com o polegar e o indicador da professora nas mãos de Hellen, funcionaram como uma espécie de código Morse alfabetizador. Nesse instante nasceu a faísca que alavancou um ser humano, desacreditado, a construir uma história que culminou em livros, palestras, viagens pelo mundo, um mundo que não sabia da possibilidade de se colocar tais deficientes em instituições adequadas. Um mundo que abandonava os cegos, por não ter a percepção de que eles poderiam fazer parte, desde que amparados devidamente. Foi necessário coragem.
 
Ele é o caçula entre dez irmãos. Um dos quatro que sofrem do mesmo mal: retinose pigmentar - uma doença degenerativa que leva gradualmente a cegueira. Foi uma infância e uma adolescência sofrida impedido que era de fazer quase tudo o que os outros faziam. Apesar disso pode se dizer que tirou de letra o  que resultou em um adulto bem resolvido. Soube fazer o negativo se transformar em positivo, as sombras em luz. Quase cego não deixou a deficiência dirigir a sua vida. Tirou partido dela. Tudo começou quando resolveu participar de um grupo formado por pessoas com deficiências – visuais, motoras, auditivas e mentais. O grupo foi uma tentativa de uma Instituição Nacional de integrar os deficientes na comunidade. Uma tentativa, apenas, como sempre. Quando tudo se esvaziou ele não se conformou. Reuniu-se a outros participantes do grupo e liderando-os formou a Associação Conquista para pessoas com deficiências. Criou uma nova e grande família onde o amor é daquela espécie verdadeira, o amor que respeita a individualidade do outro. Dá gosto vê-los: cegos, surdos, cadeirantes, deficientes mentais de todos os tipos, pessoas com doenças degenerativas. Eles se reúnem quase que diariamente para as mais diversas atividades. Não ficam mais presos em casa, escondidos do mundo. Vivem em sociedade. Fazem coisas que até Deus, do alto de sua sabedoria, duvida. Têm um grupo de dança, praticam esportes,lutam por seus direitos, comemoram todas as datas importantes. A data mais importante: O dia da Família. Não o Dia dos Pais ou o Dia das Mães, mas o dia da Família. Porque a Família não precisa ser necessariamente do mesmo sangue mas sim do verdadeiro amor.É assim que vive Dudu Melo, agente cultural, apaixonado por teatro, cinema e música, agregador de sonhos.
  

Movido por um idealismo peculiar, desses em que o sujeito é considerado extravagante, na omissão de adjetivos menos louváveis e muito reais, Armando Puglisi, ou Armandinho para os amigos, começou paulatinamente a recolher a memória material do bairro em que nasceu, viveu e morreu. O bairro do Bexiga, em São Paulo. Em instante algum Armandinho pensou em dinheiro, honra, pompa e fanfarra para uma labuta exaustiva e minuciosa. Quase 3 décadas foram consumidas nessa empreita. Falava com moradores, recolhia despojos dos mortos, entrevistava parentes distantes de antigos residentes, juntava pedaços de papel que poderiam servir como documentos, bem como utensílios pessoais, fotografias, o que fosse. Dispôs e organizou tudo isso num modesto sobrado na rua dos Ingleses. À porta, a placa de metro e meio anunciava: Museu do Bexiga. O reconhecimento: no princípio dos anos 80,  o curador dos principais museus da Europa – Louvre e Prado, que ouvira falar dessa curiosidade, quis conhecer pessoalmente que museu era esse. Salvatore Carbone, sumidade de calibre internacional em arquivo histórico,  estava de passagem pelo Brasil, fazendo conferências.  Seu depoimento arejou os que pensam que a história é composta de trombetas: “Este museu é único no mundo. Por aqui você não vê a coroa do rei, a espada do duque, a mesa da princesa, mas sim a foto do sapateiro, a tesoura do alfaiate, a bola do time de futebol do povo, a foto do queijeiro e sua família, o dono da padaria. Eu nunca vi isso na minha vida”.
  
Ele quis mudar o mundo, mas sabia que o único jeito de mudar o mundo seria mudando cada homem. Sabia também que ninguém muda ninguém. Então criou uma ciência para ensinar cada ser de boa vontade a mudar a si mesmo e chamou essa ciência de Logosofia. Seu nome foi Carlos Bernardo Gonzáles Pecotche, pensador e humanista argentino. Partindo da certeza de que o maior propósito de cada vida na Terra é a evolução em busca da perfeição, ainda hoje seus seguidores buscam a superação individual: ser melhor a cada dia do que foi ontem, não se comparando com ninguém, mas consigo mesmo. E ser melhor não para se gabar porque se assim fosse não estaria sendo melhor: ser melhor para servir a humanidade com seu exemplo de vida. Seu método leva o homem a buscar dentro de si mesmo o conhecimento para atingir a verdade, um conhecimento obtido através da razão e livre de crenças. É chamado pelos que se dedicam ao estudo da Ciência, cujo objeto é o próprio homem, de Maestro – O Mestre, aquele que facilita a aprendizagem dos que já entenderam que a vida é muito mais do que simplesmente deixar as coisas acontecerem. É necessário ter pensamento próprio, não viver a vida pelo pensamento alheio. É preciso abrir mão das máscaras que usamos para viver em sociedade e até para se olhar no espelho e buscar desvendar a própria realidade e a partir dela, crescer rumo ao infinito. Escreveu muitos livros, encontrou seu caminho e permitiu que outras vidas se iluminassem com sua luz. Fragmentos em busca da integração ao todo.
     
 
“A gente não quer só comida. A gente quer comida diversão e arte”, engendraram os Poetas Titãs. Não há como contestar, somente açucarar: arte não vive sem memória. E não apenas arte. Os que vêm em seguida são multi focais sem o saber. Todos somos. Nesses casos específicos, os heróis solitários não reivindicaram nada para si. Tornaram uma partícula infinitesimal, num mundo abissal, digno de nota.
 
Em 1968, Bob Thiele,  produtor da ABC Records, escreveu  “"What A Wonderful World". Seu chefe odiou a canção e a impediu de ser tocada. Depois, não houve como. 
 
Louis Armstrong aceitou 250 dólares, incluindo a orquestra. Não se pode dizer que foi uma brincadeira, ou um experimentalismo. Por que compositores amadores compõem? Por que um homem reconhecido por sua característica jazística, fica  mundialmente popular ao gravar essa canção, sem esperar nada por isso, além de estar fazendo uma espécie de favor? Em 1968 o compacto foi recorde de vendas na Inglaterra. O tempo vagaroso da música dá a idéia de enfatizar o reconhecimento de tudo de bom que nos cerca. Cada verso cantado por Satchmo permite ao ouvinte visualizar as linhas propostas. A profundidade de sua voz, então com 66 anos, induz a sentir, ver e tocar a beleza que existe no mundo. Que não acaba hoje e não se reduz a tragédias de âmbito local e global. Mas permanece girando, com seu esplendor, ganhando alguns aprimoramentos estruturais, alguns feitos heróicos, ou estóicos, e sem dúvida nenhuma algumas canções, para os que vem em seguida.
 
 
Escrito por Maria Olímpia Alves de Melo e Bernard Gontier