UM CRIME EM NOME DE DEUS

O curandeirismo e o charlatanismo são, como sabido, crimes previstos pela legislação penal brasileira. Porque, quem garante a cura de doenças, para as quais a Medicina ainda não tem tratamento conhecido ou afirma ser capaz de curar tais doenças ou, eventualmente, ser capaz de ressuscitar os mortos, está, em última análise, explorando a credulidade dos aflitos e dos desesperados.

A cura das doenças tidas por incuráveis, fora dos caminhos que a ciência explica, é algo que pode acontecer e que, aqui ou ali, até mesmo acontece. Os profissionais da ciência médica costumam considerar isto como “algo que carece de uma investigação mais aprofundada”. O que, em outras palavras, pode ser entendido como sendo um fato, que o saber da Medicina, no estágio em que se encontra, ainda não foi capaz de compreender e de explicar. Os homens de fé, por seu turno, atribuem a tais casos, à intervenção divina, explicando-os como um milagre.

Até aí, nada demais, porque a Medicina, afinal de contas, apesar do muito que sabe e do tanto que já evoluiu, ainda tem muito por descobrir. Mas se alguém prefere atribuir a cura de uma doença ou o aparente retorno à vida a um milagre, segundo suas convicções e dogmas, ninguém tem de se opor, porque atribuir o desconhecido ao sobrenatural é coisa que o ser humano faz, desde tempos imemoriais, quando começou a povoar este planeta.

Não convém, portanto, consumir mais espaço discorrendo sobre o tanto que a ciência ignora ou sobre o tanto que os homens preferem entender os fenômenos – da natureza, da Medicina, da Física, da Química ou da Biologia - como a vontade de Deus ou dos deuses, ao longo de toda a História. Inclusive porque acreditar nisso é lícito a cada um, segundo as suas crenças e os dogmas que professa. Deste modo, não se constitui em nenhuma conduta reprovável, pelo Direito ou pela Moral.

O que parece ser inaceitável, porém, é que, em nome de Deus, a cura dessas doenças tidas por incuráveis e a ressuscitação dos mortos, seja garantida com antecipação, tendo dia e horário previamente marcados. Respaldadas por “testemunhos” de pouca ou nenhuma credibilidade, igrejas, religiões e seitas em profusão infestam a mídia televisiva, nos dias que correm, enquanto também se utilizam de outros meios, para a divulgação dos seus poderes terapêuticos e de suas sessões de cura. Milagre com agenda e horário marcado, nem o próprio Jesus Cristo jamais realizou.

Isto, sim, é uma prática ilícita, capitulada pelos arts. 283 e 284 do Código Penal brasileiro. Que, sob a inércia do Ministério Público e aparente indiferença dos Conselhos Regionais de Medicina e de outras associações da classe médica, vem sendo realizada, diariamente, por diferentes seitas e religiões ou “nomenclaturas”, como alguns preferem intitular, visto que todos os dias algumas delas anunciam curas e milagres pela tevê.

Quanto a isto as perguntas que se impõem, das quais não nos podemos esquivar, são:

1ª) Por que a classe médica, que defende vigorosamente os espaços que considera privativos dos seus profissionais, parece indiferente ou faz uma espécie de “vista grossa” a esse crime, praticado em prejuízo, também, dos seus interesses? Estranho, quando se pensa que, por muito menos, os seus dirigentes já compraram brigas com outras categorias. A exemplo da que compraram com os farmacêuticos, para que não pudessem realizar, nas farmácias, um procedimento relativamente simples, qual seja o de medir a pressão de uma pessoa que esteja se sentindo mal. E de outras, que já compraram com a classe dos enfermeiros.

2ª) Por que o Ministério Público, tão persistente na persecução penal de casos de menor potencial ofensivo - ao ponto de, em alguns processos, parecer que mais interessa ao seu representante obter a condenação do que seja feita a justiça – não se movimenta, no sentido de por cobro à prática diária desse delito, por seitas e religiões diversas? Uma prática já tão sem cerimônia, que, em algumas dessas sessões de curas, todos os ministros (pastores, bispos e obreiros), aparecem vestidos de branco, uns até mesmo de jaleco, como se médicos fossem.

A resposta, para ambas as perguntas parece ser tão simples, quanto semelhante: a uma, parece que a ninguém interessa comprar uma briga deste quilate, porque algumas dessas “nomenclaturas” são hoje realmente poderosas, tanto nas suas ligações políticas, quanto na sua capacidade de mobilizar a opinião púbica através da mídia. A duas, quem sabe quantos – médicos, juízes, promotores, desembargadores e ministros – pertencem a igrejas, seitas e religiões que também se dedicam a tais práticas, não é verdade?

Seja por isto ou por qualquer outro motivo, os infelizes, os desesperançados e os desenganados pela Medicina vão sendo vitimados, dia após dia, por este crime, que é praticado em nome de Deus!