Reforma da polícia? “Só daqui para mais de 100 anos”

Lúcio Alves de Barros*

Um leitor indagou-me sobre as operações policiais acontecidas nas “zonas quentes de criminalidade” tanto no Rio de Janeiro como em Belo Horizonte. Indignado ele estava com a ação do Exército nos morros do Rio e perguntava-me sobre o fato do policial militar ser responsabilizado pelos seus atos e os recrutas do Exército não, haja vista que não foram treinados para ações em espaços civis. Na verdade, já havia discutido essa querela, soldados do exército não são treinados para a guerra e, acredite, mesmo que o Brasil entre em uma eles continuarão destreinados para ela. De toda forma há um treinamento meio tosco no qual o indivíduo sai sabendo mexer mais ou menos com um fuzil 7.62 e sabendo da existência da hierarquia e disciplina. Ele também sai sabendo capinar, lavar carros, engraxar sapatos e fazer bons exercícios físicos.

Quanto ao policial militar, cumpre poucas palavras, porque o debate somente se repete e fica tenso ao atingir os espíritos mais furiosos. Não é mais possível uma polícia militar em um país democrático. Nossa polícia vive numa ilusão. Mesmo que países como a França ou a Itália mantenham esse tipo de coisa, é no mínimo enganoso entender o trabalho de polícia, a qual deve ser treinada para defender o cidadão dos desmandos do Estado, como atividades de guerra. É um absurdo esse imaginário, recentemente bem alimentado pela indústria cinematográfica e pela mídia, de uma guerra aberta nos morros onde se aglomeram homens e mulheres pobres. A penalização dos seres humanos no Brasil é histórica e uma polícia militar jamais vai dar conta do recado.

Neste sentido vamos direto ao ponto: cumpre a desmilitarização da polícia. A instituição policial, mais que secular, não pode mais ser treinada tampouco entendida como força reserva do Exército. Também não deve continuar subordinada a ele. O fato é que os efeitos desse "abacaxi" estão por todos os lados: na configuração de milícias, na força desproporcional dos agentes, na formação de grupos de justiceiros, descrença nas forças policiais e corrupção tanto na polícia militar como na polícia civil. Obviamente, para desmilitarizar a organização teremos que abrir uma forte e ampla reforma na Constituição (Capítulo III, Artigo 144), sem falar do grande jogo de convencimento no intuito de desmantelar o corporativismo das associações, dos próprios policiais e daqueles que, por alguma razão, defendem com unhas e dentes o culto ao “militarismo”.

Este é o problema. Uma sociedade democrática, no qual o Estado tem o monopólio da violência, não precisa de uma polícia militarizada, treinada para a guerra e “encantada” com as facas na boca. Se ela existe, e ela está aí para todo mundo ver, é porque pervertemos o modelo ideal de policiamento, alicerçado em ações preventivas e protetoras dos cidadãos. Na realidade, além das milícias que pululam em todos os Estados, não podemos deixar de dizer que a Polícia Militar, tal como apregoa a Constituição, transformou-se em mera milícia privada dos Governadores do Estado. Não é por acaso que as indicações dos comandos estão associadas a valores e princípios políticos e não a mecanismos meritocráticos. Essa perversão tem deixado muitos bons policiais pelo caminho, haja vista que vários não concordam com o jogo promocional. Para não sair muito do assunto creio que mais duas questões merecem pelo menos menção. A primeira é que se faz necessário a municipalização das polícias militares, o que garantiria maior controle e visibilidade de suas ações e, em segundo, o fim da famigerada justiça militar, resquício óbvio de uma cultura autoritária e hierárquica, garantidora de privilégios e desmandos. Novamente repito, tudo isso teria que passar por mudanças constitucionais e pela boa política do convencimento dos envolvidos no assunto. Como tudo nesse país é para daqui a 100 anos, fica por aí o meu registro.

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* - Doutor em Ciências Humanas: sociologia e política pela UFMG e organizador da livro "Polícia em Movimento". Belo Horizonte: Ed. ASPRA, 2006.