A MEDALHINHA DE OURO

As lembranças mais remotas que tenho da minha vida, devem datar aí do tempo em que eu tinha uns dois e meio a três anos de idade. Sei disto, por causa da casa em que morávamos, um sobrado que ficava bem no centro da cidade. Pois foi neste sobrado que perdi a minha medalhinha de ouro.

Lembro, como se fosse hoje, que eu estava sobre uma cadeira e debruçado numa janela — como os pais eram mais despreocupados naquele tempo! — olhando o movimento lá embaixo, enquanto segurava, numa das mãos, uma medalhinha de ouro, que alguém me dera de presente. Até que a pequena jóia escapou-me das mãos e foi bater lá na calçada.

Não sei se algum transeunte percebeu a queda do objeto, mas ia passando um pivete — suspeito que não teria mais do que seis ou sete anos de idade — e eu pedi, gritando lá para baixo, que ele pegasse aquilo pra mim. O molequinho olhou para cima, entendeu o que havia ocorrido e, de fato, apanhou a minha medalha do chão. Só que, em lugar de devolvê-la, saiu correndo o mais que pode e a levou embora consigo.

Um tipo de incidente provavelmente comum na vida de qualquer criança. Mas ainda me lembro da minha decepção, menos pelo valor do objeto — que, para mim, era só mais um brinquedo — e mais, porque eu não conseguia compreender o que levara o menino a fazer aquilo. Porque eu me senti enganado e isto é algo que qualquer criança consegue entender.

Este é um episódio que ficou guardado no baú das minhas recordações, mas que sempre salta das minhas lembranças, toda vez que me sinto lesado ou ludibriado por alguém ou em alguma situação.

Nestes dias que estamos vivendo, por exemplo, tenho idêntica sensação, a cada vez que o Poder Executivo, em conluio com o Legislativo e sob a complacência do Judiciário, toma decisões — algumas delas, de uma perversidade sem fim — que, não raras vezes, ferem o direito adquirido, a coisa julgada e o ato jurídico perfeito.

As Medidas Provisórias, que só deveriam ser utilizadas em situações excepcionais, passaram a ser rotina e se proliferam mais do que células cancerosas. E o presidente da República exerce o seu direito de legislar, acima e por cima do Congresso, tanto quanto nos tempos da ditadura militar, que muitos dos atuais governantes e parlamentares criticaram até a exaustão. Uma prática que, supúnhamos todos, haveria de ser extirpada do nosso processo legislativo, a partir da redemocratização do país. Mas ela ainda está aí, como um Freddy Krueger que ninguém consegue eliminar e sempre retorna no próximo episódio, apenas com o nome trocado.

Pior que tudo, é perceber a passividade com que a sociedade brasileira se porta diante destas e de outras coisas. Falcatruas e negociatas vêm a público, envolvendo, não poucas vezes, nomes que são tão ligados ao governo ou tão destacados nos Poderes da República, que comprometem a figura do próprio presidente e a honorabilidade das instituições.

Nos Estados Unidos da América, por muito menos do que tem acontecido no Brasil, um presidente já perdeu o seu mandato. Em nosso país, ao contrário, o homem vai à mídia e reclama, “que nem cachorro atropelado”, como se fosse ele a maior vítima daquele escândalo todo. Descobriram o problema com os cartões corporativos ou com a orgia das passagens aéreas e, imediatamente o governo saiu atirando: “Que absurdo! É preciso apurar com rigor e punir quem fez isto!”. Mas quando um delegado prende um figurão ou um mete as algemas num pilantra de colarinho branco, lá vem um juiz de alto coturno liberar o sacripanta e criticar quem o prendeu.

Se uma ministra faz plástica, viaja a serviço da sua igreja ou compra o que não deve com os cartões corporativos, primeiro vem a solidariedade do presidente amigo e parlamentares aliados. Depois, só depois, é que, quando a dose é muito forte, para o fígado governamental destilar — avaliado o prejuízo político futuro — o malandro é convidado a pedir a sua exoneração. Deixa o cargo com os agradecimentos públicos do padrinho e sem assumir, de nenhum modo, a responsabilidade pelos atos e irregularidades que praticou.

A sociedade brasileira assiste a toda a pantomima em silêncio, de braços cruzados, como se fosse algo muito distante, que não lhe dissesse o menor respeito. E logo se esquece de tudo, antes mesmo que irrompa o próximo escândalo.

Parece que estamos, todos, tomados pelo mais absoluto desânimo, sem a mínima vontade de lutar pela nossa cidadania e pelos nossos direitos, individuais ou coletivos. Nós sabemos disto. E o mais grave é que o governo e os políticos também sabem.

Por isto é que quando vejo algumas figuras destacadas da República, participantes cínicos dos episódios mais execrandos, aparecendo na mídia sem nenhuma cerimônia e explicando, com argumentos rotos, aquilo que é inexplicável, eu só consigo enxergá-los como se fossem uns pivetes crescidos, furtando outra vez a minha medalhinha de ouro.