Cotas: questão estrutural ou conjuntural?*

A escravidão dos negros no Brasil foi um erro. A dizimação de índios foi outro erro. A manutenção de pobres cada vez mais pobres, não importando, aqui, o matiz da pele deles, sempre colocados abaixo da linha da dignidade humana, é outro erro. Ocorre que há negros e índios no conjunto desses que sofrem com esse terceiro erro. Brancos, índios e negros tem sido vitimados por erros diferentes, todos, porém, assemelhados à luz do valor da pessoa humana.

Esse aspecto, que aponta para o uno na multiplicidade de desatinos, historicamente cometidos no e pelo Brasil, parece-me “esquecido” em alguns debates sobre as cotas nas universidades. A atenção é focada no acesso e não na permanência nelas. Mas isso não é o mais relevante.

O que se destaca nisso tudo é a tentativa de se corrigir erros históricos pela via errônea da discriminação ético-racial. Esse componente do debate perturba, pois ele não apenas oficializa o dispositivo discriminatório, como fere o senso contemporâneo de isonomia.

A raiz do problema está na desigualdade que produzimos e reproduzimos e ela é de natureza econômica. Ocorre que o capitalismo não pode potencializar a justiça e a equidade, porque, do contrário, sua lógica de acumulação iria à implosão. Paralelamente ao sistema de acumulação, o sistema faz funcionar, e bem, o instituto da propriedade privada, em nome da qual lucros carcomem salários, demandas regulam ofertas e consumo disciplina mentes, corpos, almas e corações.

O dia em que o capitalismo fizer justiça e distribuir equitativamente a riqueza socialmente produzida, então ele deixará de ser capitalismo. Enquanto isso não acontece, o Estado, submisso ao sistema, particularmente ao "Deus Mercado", elabora e implementa políticas de assistencialismos para minorar problemas econômicos, políticos e culturais. Meros paliativos. Além disso, o assistencialismo de Estado a que assistimos cumpre a função de amortecer tensões sociais provocadas por conta da injustiça econômica, financeira e patrimonial.

Desse modo, enquanto não se dispõe a mexer nos pilares econômicos da sociedade, transformação que poderia se estender à política e à cultura, o Estado capitalista prefere distribuir migalhas. Com isso, assegura-se a perpetuação da hegemonia de uma elite que sempre está “muito bem, obrigada”, a custa, por exemplo, da concentração descomunal de riquezas nas mãos de alguns.

Segundo dados oficiais, um por cento da humanidade detém vinculado em seu nome mais de 50 por cento de toda a riqueza que a humanidade produz, com o capitalismo predominando nessa estatística. Também são oficiais as informações que nos asseguram ser verdadeiros os dados de que os 10 por cento mais ricos entre nós, brasileiros, detem a metade da riqueza nacional, ao passo que os 50 por cento mais pobres tem acesso a apenas 10 por cento dessa mesma riqueza – pobres negros e pobres brancos aí incluídos.

O problema, como se vê, não é conjuntural, como alguns pensam. O gargalo é estrutural. Alcança o sistema de sustentação da sociedade que se articula mediante a combinação de aspectos econômicos, políticos e culturais favoráveis à elite, a qual não planeja, não deseja e não quer tocar o dedo nessa base-fonte de toda a desigualdade que nos cerca. Ao contrário disso, essa elite prefere os paliativos, tais como cestas, cotas e cartões.

As mentes que se balizam pela ética da dignidade humana ainda se perguntam pelo dia no qual poderemos cursar o ensino superior sem tropeçar na injustiça, mas sob a égide da igualdade de condições ao acesso e à permanência na universidade para todos, não importando sua etnia, sua raça ou sua cor. Tomara que esse dia não tarde. E que o debate sobre as cotas possa nos alargar os olhos e a consciência. Todos os desvalidos brasileiros clamam por justiça, igualdade, liberdade e paz, inclusive para cursar o ensino superior.

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* Publicado no Diário da Manhã, dia 16.05.2009, p. 18.