Você casaria com uma tampa?

Em uma reunião filosófica ocorrida na Grécia Antiga, na qual estavam presentes os gregos Sócrates, Platão, Alcebíades, Aristodemo, Aristófanes, Eriximaco, Fedro e Pausânias, ocorreu de o amor ser seriamente debatido. Sócrates, o mestre de todos, parece ter sido o aglutinador das teses discutidas.

O que é o amor? Por que o buscamos? Como vivê-lo? Essas eram as indagações centrais da conversa, a qual foi relatada em um livro de Platão, denominado O banquete. O discurso que chamou a atenção, presumivelmente em resposta a essas indagações, foi de Aristófanes, um comediante, o que já nos adianta pistas sobre o desfecho daquele evento.

Segundo Aristófanes, primitivamente falando, o gênero humano era constituído por três tipos sexuais, dualizados em si próprios: o masculino masculino, o feminino feminino e o masculino feminino. À época, o paradigma dual constituía a base da interpretação de tudo: o humano era corpo e alma e o mundo era o empírico e o inteligível, por exemplo, o que garante a Aristófanes não estar fugindo da mundividência de seu tempo.

Contudo, esses indivíduos sexualmente dualizados, felizes e completos, vieram a cair na sanha castigadora dos deuses gregos. O chefe daquelas divindades, Zeus, notou que o crime deles foi o de terem roubado o fogo, até então negado aos humanos. Como pena por essa transgressão, Zeus partiu os indivíduos humanos em dois e lhes deu órgãos sexuais para que tivessem filhos e não viessem a se extinguir por completo. Ato contínuo, os humanos foram postos sob o destino de sempre procurarem as próprias metades, saudosos daquela felicidade e daquela completude que experimentaram na gênese da história que estão a fazer.

Desde então, homens e mulheres estariam entregues à busca do que lhes falta: as metades de si mesmos. Em bom português, estão à procura das tampas das panelas que são e da alma gêmea à que possuem. Mas, cá entre nós, isso faz sentido ou é um ingolível disparate?

Estudiosos dos mitos gregos nos garantem que esse tipo de saber tinha uma função até interessante à época: colocar ordem onde havia caos, cunhar sentido onde o absurdo pudesse se incrustar e fornecer uma explicação plausível às coisas aparentemente incompreensíveis, o que supria o desejo humano de encontrar uma razão de ser para as coisas num momento da história em que a filosofia e a ciência sequer tinham sido criadas.

Seguindo o raciocínio da contribuição oferecida pelos estudiosos do assunto, então podemos compreender como os absurdos dos relatos fabulosos do mito apaziguavam o humano na Terra. Eles seguiam a seguinte regra: se o sentido do que existe não lhe chega facilmente, invente um, ainda que seja mentira. A isso, parece, prestava-se o relato mítico, como esse aí sobre o amor, esse sentimento humano que delineia a vida, mas que perdura como arte e desafio.

Quando a crença que fundamentava o mito deu lugar à razão que sustenta a filosofia e a ciência, o humano, ainda que dinâmico e em transformação contínua no próprio ser, passou a ser figurado como indivíduo, como aquele que não se divide em corpo e alma, em matéria e espírito, muito menos em uma multidão de metades, de mutilados e sempre em falta na sua constituição ontológica, naquilo que são.

Lá, segundo o pensamento dual grego e a tese socrático-platônica, os humanos amamos o que nos falta, desejamos sempre o que não temos. Logo, amar é sentir falta, ausência, não-ser. Daí o entendimento de que todo amor humano se resume à busca do que não possuímos, seja isso uma metade, uma tampa ou uma alma que fugiu de nosso ser. Mas, se não amamos o que possuímos, o que seremos capazes de amar? Somos capazes apenas de amar uma nossa parte que não se coloca ao nosso alcance? Esse amor platônico faz sentido?

Sob o crivo da razão, isso parece absurdo. Não somos indivíduos lesados, aleijados, metades de nós mesmos. Somos, sim, inteiros, indivisos e íntegros nessa condição de seres totais, harmônicos e unitários.

Não é absurda a idéia de que temos de casar com uma metade ou com uma alma? De minha parte, prefiro mulheres inteiras, corpo-e-alma, ao mesmo tempo e sob a mesma perspectiva existencial. Seres que tem um ser completo e que tem a potencialidade de se encontrar com um ser masculino também inteiro e com ele estabelecer uma história de desenvolvimento e troca ontológica à altura da dignidade que um ser inteiro pressupõe e merece. E você, amigo, amiga, aceitaria casar com uma tampa?