MAIS ROBERTO CARLOS

Jorge Mautner veste o Rei

Este artigo poderia ser intitulado “Mais uma do Roberto”. No entanto isso poderia levar o leitor a pensar tratar-se de uma canção inédita de Roberto Carlos. Não. Estou aqui para fazer reverência ao passado do líder da Jovem Guarda com mais uma crônica enviada para este site.

Adolescência da música popular brasileira – ou música brasileira de massa. E onde estaria a infância de nosso cancioneiro? E nossa neanderthalidade? Aqui, em minhas mãos, o exemplar n.º 3 da edição brasileira da revista Rolling Stone, datada de 29 de fevereiro de 1972. Estas edições brasileiras – em formato jornal – eram, e são, de leitura agradabilíssima. O conteúdo do folhetim pop oscilava entre o jornalismo musical ingênuo e o poético, sem, contudo, deixar de lado aspectos técnicos musicais. Nesta edição aqui tem The Who, Beatles – que ainda eram notícia quente em 72 –, Carole King, Stan Getz, Elvis, Dylan com suspeita de envolvimento com os Panteras Negras... Um artigo sobre feminismo assinado por Rose Marie Muraro; uma bela entrevista com o poeta paulistano Roberto Piva; resenhas escritas por Zé Rodrix. Mas o que mais chama a atenção é um artigo na página central, sobre Roberto Carlos, escrito por Jorge Mautner. Em vez de ficar comentando o texto de Mautner, eu irei transcrever trechos daquilo que parecia estar tipificando a inauguração do jornalismo musical-pop-poético-filosófico no Brasil:

“Provinciano e puro, com a ingenuidade de caiçara e urbano, fatalista e arisco, doce e nostálgico, rebelde e submisso, puritano e sexy, ídolo e cidadão humano, eis o grande Rei, situado exatamente na fronteira do permitido e do não-permitido.”

“Roberto Carlos carrega uma angústia de solidão e amores envoltos em brumas de fumaça de automóveis, canos de escapamento de motocicleta, e chaminés.”

“Roberto Carlos foi o primeiro artista da ‘media pop’ a sentir a panamericanidade de nosso ser. Ele uniu a batida do rock dos USA com toques de samba naquela melancolia de bossa-nova sofisticada com lamentos de modinhas antigas e outras saudades da alma nacional (...) Roberto Carlos deveria ser estudado por um Instituto de Sociologia sobre o tema: Primeiro sintoma da cultura americana do sul e do norte a se efetuar como música e poesia em nosso continente em termos de ‘media’ popular.”

“Se eu fosse escolher um adjetivo para Roberto Carlos eu diria: doçura. Chico Buarque de Hollanda a pretende, mas é demasiadamente intelectualizado. Caetano e Gil têm o mel de uma Bahia mitológica, mas Roberto Carlos tem a verdadeira doçura, aquela que emana deste novo e estranho povo que brota nos arredores das fábricas. A população urbana, a grande classe média, as românticas empregadas domésticas e os seus maridos, irmãos e pais operários, os trabalhadores.”

“Eu ouço RC com o mesmo prazer como quando ouço Jimi Hendrix, Caetano Veloso, Gil, Gal, Bethânia, Mick Jagger. Todos estes, e RC, têm um mundo muito próprio, um poderoso universo mitológico no qual eu entro com arrepio de emoção toda vez que ligo aquele botãozinho do toca-discos. O que mais me delicia em RC é sua soberana visão pop, seu incrível ‘kitch’, xarope, às vezes lugar-comum tão acentuado que passa a ter dimensões de poesia rilkeana.”

“Ângulos dos mais complexos dentro da ingenuidade de ex-caiçara, imigrante em São Paulo, agora operário das guitarras elétricas e dos versos nostálgicos a la Casemiro de Abreu.”

“É bom, reconfortante e dá uma sensação de quase felicidade ouvir Caetano Veloso na voz de RC, os dois unidos em chave de ouro, que sintetiza as tendências da alma e melodia da nação, uma nação americana e cheia de paixão patética, emotiva, a estremecer com os blues e uivos de distantes maracatus que existem dentro de Caetano e Roberto, e que sintetizam toda nossa embriagante plenitude de vida com tinturas de pessimismo sempre envolto nu papel celofane de ternura e doçura.”

“Ah. Esses poetas... Sim, a poesia é o coração de um mundo sem coração. Obrigado, Roberto Carlos.”

O artigo de Mautner, do qual extraio estas citações, parece ter vindo amansar a ferocidade da crônica que escrevi anteriormente sobre Roberto. Valeu, Rolling Stone!