Menina Maísa, criança-espetáculo*

Por dois domingos consecutivos a Menina Maísa chora no Programa Sílvio Santos, diante de uma platéia sequiosa de divertimento, diante de todo o Brasil. Especialistas estão dando entrevistas para opinarem sobre o caso. O Ministério Público paulista estuda intervir. A massa, por se acomodar ao que o formador de opinião deseja, adere a um silêncio de cumplicidade, pois o que ela quer é o espetáculo, mesmo sem ter noção do que ou de quem está sendo violentado.

Sílvio Santos já foi caracterizado como autoritário em estudos científicos sobre sua performance dominical. E é como ditador que ele controla um auditório e as pessoas que passam por seus programas. A Menina Maísa, carente de limites e de orientação para ser criança, para deixar de ser o adulto em miniatura que encarna, teatral e pessoalmente, tem no choro a expressão de seu abandono, de seu encantoamento, de sua sozinhez, de seu desamparo.

Vivendo uma espécie de vale-tudo, em que a disciplina e o limite saudável inexistem, a garotinha, vivaz, esperta e comunicativa, apronta com o apresentador, seja tirando-lhe a peruca ou lhe fazendo ouvir impropérios inadequados para a boca de uma criança. Ele, Sílvio Santos, tem devolvido falas e comandos à altura à criança, para deleite de uma assistência que, comandada por amestradores de auditório, volta-se contra a criança para ter motivo para rir ou bater palma.

De minha parte, penso que o Ministério Público demorou a perceber a gravidade caso. Penso, ainda, que a sociedade inopinante não tem noção do que se passa ali.

Se for verdade que o humano é o ser que tem um valor em si, que não pode e não deve ser instrumentalizado para que outrem obtenha a satisfação de seus interesses com esse instrumentalismo, então estamos diante de uma aberração. O espetáculo, a audiência e o lucro que dão não justificam o teor violento implicado no “Caso Maísa”, em que um adulto se infantiliza para adultizar um infante, valendo-se, para isso, de regras e de um jogo que melhor cairia a adultos em disputas agressivas e oblíquas porque não levam a lugar nenhum

Isso, entretanto, não parece ter sido inaugurado por Maísa. Há tempos a televisão brasileira se vale desses expedientes, sobretudo para engordar o caixa de insanos donos de meios de comunicação. E a sociedade tem sido conivente com esse abuso contra seus filhos, na legitimação de um axioma que nos diz mais ou menos o seguinte: sendo produtivo, dando lucro e nos divertindo simultaneamente, então é permitido. A criança virou um meio de reprodução de capital.

Nada de estranho. Nas ruas brasileiras, rebentos humanos são diariamente violentados e sacrificados pelos mesmos motivos. E a sociedade, desde sempre, permanece impassível. Entre os membros dessa sociedade, estão os diretamente responsáveis pelos pequenos: os pais. Não foi sem razão que, num dos apuros diante de Sílvio Santos e do auditório, a menina Maísa correu para a mãe, a qual recusou oferecer-lhe a acolhida e o apoio psicológico e moral pelos quais a garota clamava.

O que terá passado pelo coração e pela mente daquela mãe de Maísa? Talvez tenha sido a regra do “Quanto mais lucro, melhor, e você que aceite as regras do circo. Afinal, você é a criança-espetáculo. Precisamos de você para entorpecer nossa consciência, para mostrar os desumanos que somos, para evidenciar o quanto venais nos tornamos e o quanto o ‘Deus Dinheiro’ é totalitário, tirano, sem senso e sem coração”. Uma lástima: toda criança tem direito de simplesmente viver, sem se tornar joguete de nossa diversão, sem ser a criança-espetáculo que estamos testemunhando nesse caso, lamentável caso, de Maísa.

_____

* Publicado pelo Diário da Manhã, dia 26.05.2009, p. 02.