Outra sociedade é possível?*

Conhecer o mundo que sempre esteve aí e o mundo que o humano sobrepôs a ele talvez seja o desafio crucial de todo homem e de toda mulher. É que entre o intelecto e o mundo se interpõem nossos ferrolhos cognitivos, os quais filtram a aparente realidade segundo dispositivos mentais preconceituosos, frutos de percepções distorcidas sobre o existente. De repente, o homem e a mulher falamos de um mundo que pensamos concreto, real e objetivo quando, em verdade e vida afora e diante de todos e de tudo, o que fazemos é confessar nossas próprias miragens.

Na análise social, essa operação de “inexatidão escolhida” é de significativa gravidade porque, queiramos ou não, nossos preconceitos e nossas miragens forçam princípios e valores. Os princípios e os valores conduzem a julgamentos. Julgamentos implicam decisões. Decisões determinam ações. As ações remodelam o mundo, ou o mantêm na mesmidade e no fatalismo. Eis, então, as conseqüências essenciais de nossa ação quando nos posicionamos ferrolhados diante do mundo, captando-o pelo viés, vesga e falsificadamente.

Aí entramos no plano das ilusões, essas impostoras que julgam saber, quando, cru e nu, ignoram e ignoram que ignoram. Talvez tenha sido essa compreensão a que levou Nietzsche a afirmar que “Aquilo que os homens têm mais dificuldade em compreender, desde os tempos mais remotos até o presente, é a sua ignorância acerca deles mesmos!” E isso até parece uma sina: desconhecendo-nos a nós próprios, o homem e a mulher não nos enganamos apenas sobre o que somos, mas, em decorrência disso, sobre o mundo que nos chega sob a etiqueta do “fora de lugar” – aliás, esse mundo que nós mesmos produzimos.

Isso, o autoengano, desencadeador da rede ilusória da comunicação, em aparente consenso realístico, parece encontrar lastro em outro pensador, Wittgenstein, segundo o qual “Nada é tão difícil quanto não se enganar a si próprio”. Autoenganados, tornamo-nos, nós próprios, a fonte de todos os outros enganos possíveis, no plano íntimo da vida privada ou sob a luz do espaço público onde se dá a teatralidade da vida em comum, comunitária ou social.

A todos esses processos, de não apreensão da realidade tal como a fazemos, estou chamando, metaforicamente, de ferrolho. A trave no olho cognitivo que obscurece o entendimento e nos impede de ver. No lugar da realidade que nos esbofeteia diuturnamente, preferimos a visão periférica, superficial, muitas vezes, oblíqua.

Estou fazendo essas considerações motivado pela maneira como assisti ao debate sobre o “Caso Maísa”, a menina da TV. Alguns quiseram discuti-lo como se a pessoa envolvida nele subsistisse de si própria e em si mesma, fora de uma economia, de um regime político, de uma cultura e de uma ideologia. Quiseram entender Maísa, não como a representante de um conjunto de seres humanos explorados, não vistos como cidadãos, excluídos, tornados nulidades, coisas, objetos manipuláveis, descartáveis, o costumeiro em nossa sociedade injusta e desumana.

No entanto, o palco social está aí e ele não resulta do nada. O teatro social, que é pra valer, e não um jogo de faz-de-conta, resulta de estruturas econômicas, sociais, culturais e ideológicas que criamos, consolidamos e queremos que se mantenham. Essas bases criam e cospem Maísas após Maísas, essas bases é que formam a realidade ausente na discussão, a realidade barrada por nossos ferrolhos, a realidade substituída por nossas miragens, por nossas ilusões.

A propósito, quando é que teremos peito para discutir, a fundo, o modelo societário que estamos mantendo e o estilo existencial que estamos legitimando? Quantas vidas mais terão de ser prejudicadas e ceifadas para que possamos agir sob a noção de que uma outra sociedade é possível?

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* Publicado pelo Diário da Manhã, dia 03.06.2009, p. 23.