A Filosofia, a Poesia e a Arte de Atribuir Sentidos

Filosofia e Poesia, a despeito de um entendimento dogmático sobre suas especificidades, talvez tenham produzido mais aproximações do que distanciamentos ao longo da história. No fundo, poeta e filósofo se ocupam da mesma tarefa: a de atribuir sentido à sociedade, ao mundo, ao universo, à vida, ao existente.

Introdução

A Filosofia é produto do letramento. As bibliotecas já existiam quando o modo filosófico de significar o mundo ganhou reconhecimento. Os livros desse período antigo, que eram tabuletas de argila, contavam quatro mil anos de existência.

Para quem lida com Filosofia, não é difícil compreender que essa era antiga foi marcada por um tipo de exercício intelectual balizado pela escrita poética. Nem por isso, contudo, desprovida de uma racionalidade, apesar de realizada fora dos padrões do logos inaugurado pelos primeiros filósofos.

E o que os primeiros filósofos trouxeram de novidade que tendeu a romper com a maneira até então prevalente de se compreender o real? Ora, os primeiros filósofos fizeram o movimento de não olhar mais para o sobrenatural, mas, sim, para a concretude da vida incrustada no mundo natural.

Assim, em meio à multiplicidade do existente, perscrutaram eles o elemento responsável pela unicidade que atravessa e dá sustentação ao amalgama da realidade. Em outras palavras, eles queriam investigar qual era o princípio fomentador da gênese de tudo, mas, como se vê, inscrito nas coisas mesmas, e não advindo de um plano preternatural.

Esse trabalho de investigar a origem das coisas deveria ser realizado segundo os cânones racionais, e não segundo a intuição, crença ou fé, as quais davam poder criador a entes divinos. Assim, o lastro em seres que estariam fora deste mundo não mais deveria traçar as diretrizes para a formação da cosmovisão humana, e isso foi o que se pode chamar, desde então, Filosofia.

O contexto em que atuaram os primeiros filósofos

Em termos de cultura grega, três grandes obras poéticas vazavam a mundividência mítica que informava a dimensão simbólica da vida de então, a saber: a Ilíada e a Odisséia, atribuídas a Homero, e O trabalho e os dias, de Hesíodo, que também escreveu a obra chamada Togonia. As duas primeiras cunhando personagem míticos, figurados como heróis, os seres plasmados na miscigenação entre divinos e humanos, com esse herói aí representado como inferior aos deuses e como superior aos humanos. O terceira obra, ao contrário, fez-se mais atenta ao homem concreto e atuante no mundo simplesmente terreno.

Era, já, uma tendência, à qual os primeiros filósofos Tales, Anaximandro e Anaxímenes, de Mileto, fizeram frente. Ao responderam, sucessivamente, que a água, o ilimitado e o ar é que constituem o princípio gerador do existente, eles tiraram o foco das explicações mítico-sobrenaturais e fizeram recair a gênese do existente nele mesmo. Dava-se, assim, a origem da razão como fonte de conhecimento do mundo natural e humano, cuja lógica, rigor e sistematicidade, daí em diante, passam a dar as cartas na produção de sentido.

A especificidade da Filosofia

Dessa maneira, pode-se dizer que a especificidade da Filosofia é o trabalho da razão, a experiência de pensamento e a vivência da significação e da atribuição de sentido às coisas, aos seres, aos fenômenos e às relações entre eles, lastreadas na intelecção racional.

A exacerbação dessa tendência pode ser conferida na briga entre poetas, Sócrates e Platão. Os poetas acusaram Sócrates de ser ímpio em face dos deuses gregos e de corromper a juventude, acusação, aliás, que o levou a ser condenado à morte por meio da ingestão de cicuta.

Platão condena a arte porque ela, especialmente a Poesia e a Pintura, nada mais seriam do que cópia de cópias, nada de original apresentando porque essa tal originalidade só seria encontrada naquilo que ele chama “Mundo Inteligível”, o das formas eternas, perfeitas, fixas e imutáveis, e bem distintas de tudo o que caía sob a pena e o pincel dos artistas-poetas.

Com isso, no meu entender, Platão queria salvaguardar o trabalho da razão a serviço daquilo que ele entendia por episteme, o conhecimento verdadeiro, em contraposição e rechaço ao que ele chamou de dóxa, a opinião que redunda em saber que não sabe de si, nem de causas e conseqüências.

À Filosofia caberia a ascese racional por meio da qual a alma se libertaria do corpo e poderia, enfim, após longo exercício de preparação para a morte, fazer com que o filósofo ganhasse a verdadeira liberdade. Nisso residia a noção de especificidade da Filosofia.

Filosofia e poesia: tangenciamentos históricos

Mas as coisas não se passaram estritamente assim. O próprio Platão não se livrou inteiramente da poesia, e seus diálogos estão prenhes de elementos míticos. O que veio depois dele é uma sucessão de aproximações entre Filosofia e Poesia, e até de Poesia e Ciência.

O que seriam o uso da imaginação criadora de Einstein e suas afirmações sobre o universo, o qual, para ele, era finito e ilimitado? Não terá isso representado uma concessão de dignidade à poesia?

Nietzsche, sua retomada do “eterno retorno”, sua estilística discursiva e sua Filosofia toda não são uma demonstração de atrelamento entre o filosofar e o poetizar?

Unamuno e o que ele denomina de “homem de carne e osso”, “concreto”, chamando filósofos e poetas de irmãos gêmeos, não mostra a pouca diferença que há entre Filosofia e Poesia?

Bachelard, ao afirmar que “depois das sonoridades vazias é a poesia que produz seu instante”, não estaria a associar pela raiz Poesia e Filosofia?

E Ortega y Gasset, quando se vê colhido pela “razão vital”, não estaria mesmo a falar de uma “razão poética”, da qual nenhum homem, em maior ou em menor grau, poderia escapar?

Esses exemplos históricos, entre tantos outros possíveis, parecem indicar que Filosofia e Poesia tem mais em comum do que imaginamos.

Conclusão

Há muito mais razão poética e sentimento poético no pensamento filosófico do que pode julgar a nossa vã Filosofia. Darmos assentimento a isso é o mesmo que tirarmos de nossas mãos as correntes dogmáticas de um raciocentrismo que teima em nos querer secos e estéreis, frios, calculistas e sem sensibilidade em nosso filosofar

Se nos fosse dado alcançar isso de neutralidade e pureza racionais, então a Filosofia não poderia ser compreendida como um produto humano, poliepistêmico, o que seria incabível, um absurdo total.

Ao contrário, penso que estamos autorizados a pensar que Poesia e Filosofia constituem a arte de atribuir sentido a tudo – demasiadas humanas, imprescindíveis, essenciais.

POESOFIA

Wilson Correia

Filosofia. Poesia.

É razão informando o sentimento

É sentimento consubstanciando a razão

Ambos a serviço de uma busca contínua

Na qual a lógica não se faz sem coração

Se requerem conhecimentos

Implicam a infinda imaginação

Dos primeiros o ápeiron e a pergunta

O conceito, a idéia e a matéria de

Sócrates, Aristóteles e Platão

De Agostinho a teoria iluminante

Tanto quanto é luz o cogito cartesiano

Aí a Poesia filosofando e

a Filosofia a poetizar seu pano

Uma e outra buscando saber, mas

não o alcançariam, senão imaginando

Outros podiam ser lembrados

mas me basta ficar por aqui

Uso a Poesia no trabalho

de pensar e me valho do respiro

filosófico para bem poetizar

O conhecer é apenas um barco

A imaginação é que é o navegar

Gêmeas, elas me fazem

o porquê e o sentido da vida

cada uma com a sua sabedoria

É pensamento. É emoção

É razão e é imaginação

É Poesia. É Filosofia

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* Publicado, como pequenas adequações, na Revista Leitura & Crítica, em julho de 2009, p. 10.