Voo 447: da necessidade do luto

É comovente a obstinação com que os corpos dos acidentados no voo 447 da Air France estão sendo procurados no fundo do mar. Que valores estão envolvidos nesse contexto? Uma experiência pessoal talvez nos ajude a pensar no assunto. Há um ano, minha filha, um primo dela e eu chegávamos a casa, quando as duas crianças me convidaram para ver o Júnior. Quem é Júnior? “Um passarinho, pai. Ele tá doente”, o que nos levou, os três, a fazermos toda tentativa possível para que ele ficasse bom. Passado um tempo, Mayla, a minha filha, me disse: “Pai, o Júnior Morreu. Vem ver”. Fui. Sobre a “sepultura” dele no quintal havia um quadrinho, pintado a tinta guache, que trazia, bem grande, o nome “Júnior”.

Penso que essa tenha sido uma experiência importante para minha filha, então com onze anos de idade. Até os nove, dez anos, a criança entende que a morte é algo reversível. É depois desse tempo que entenderá a morte como um acontecimento definitivo. Isso parece ter acontecido à minha filha porque, dias depois, ela relatou a parentes: “Fui ver o Júnior. Tirei a terra, mas como ele estava eu não posso contar”. A cara e o tom de voz com que ela disse isso nos faziam entender que aquilo tinha sido uma experiência de luto para ela.

Mas o que é o luto? Em tese, entendo o luto como luta contra nossas limitações e contra nossa finitude. É certo que, quando alguém morre, os “sinos dobram por todos nós” (John Donne), e não apenas pelo falecido. E o morto é aquele que experienciou o pertencimento a nós. Então, quando alguém morre, tomamos consciência de que não somos plenos, deuses, perfeitos, e que, nessa condição, somos finitos. É contra tudo isso que lutamos no estado de luto.

Assim, se é certo que o humano talvez seja o único animal que sabe que morre, ele também talvez seja o único que sabe que pode transcender a morte, incluindo a concepção de divindades eternas, ressuscitadas e a promessa de uma vida infinda pós-túmulo ou reencarnada. Por isso o luto serviria de ritual de passagem. Ao tempo em que o luto é luta contra a “perda”, ele também é celebração da esperança de que algo de bom ainda está por vir. Como não celebrar o luto? Como não ter os corpos diante de nossos olhos e prestar-lhes nossas homenagens finais? Como não fazer tudo isso, se amanhã seremos nós que precisaremos dessa esperança de um futuro indefectível?

Não é de hoje que esse anseio se faz presente em nossa cultura ocidental. Já na tragédia Édipo Rei, escrita por Sófocles (406-495 a.C), Creonte, soberano de Tebas, proibiu a realização dos ritos fúnebres do sobrinho Polinice, o qual havia morrido em campo de guerra, fato que desagradou o rei. Antígona, que compartilhava com o falecido o mesmo pai e a mesma mãe, não aceitou o castigo de insepultamento dado ao irmão. Não sepultar o irmão seria para Antígona a pior das desonras. Por isso ela desafia Creonte e sepulta Polinice, prestando-lhe os rituais de luto comuns à cultura grega de então, visando a respeitar uma lei natural, diante da qual a lei do soberano não podia prosperar. Por conta dessa desobediência, Antígona foi condenada pelo mesmo Creonte a ser enterrada viva.

Não queremos saber o quanto nos custa nossa obstinação para cultuarmos nossos mortos. Temos a necessidade de velar os falecidos como que para antecipar a não visibilidade que viveremos entre eles e nós. Nessa hora, nossas limitações e nossa finitude não falam, porque a esperança tem a palavra, como fez Mayla ao se referir ao Júnior: “como ele estava eu não posso falar”. Se assim é, que a esperança transcendente, que tem a palavra, não se perca no fundo do mar.