A JANGADA DE PEDRA: UMA ANÁLISE ESTRUTURAL, INTERPRETATIVA E FEMINISTA DA OBRA SARAMAGUIANA

A JANGADA DE PEDRA: UMA ANÁLISE ESTRUTURAL, INTERPRETATIVA E FEMINISTA DA OBRA SARAMAGUIANA

Luís Cláudio Ferreira SILVA (G-UEM)

Marco Antonio Hruschka TELES (G-UEM)

Rogério Francisco da SILVA (G-UEM)

Se algumas obras saramaguianas são frequentemente estudadas a fundo e postas em discussão por inúmeros críticos, esquece-se, em muitos momentos, de outras obras não tão conhecidas quanto às de grande procura (Ensaio Sobre a Cegueira, O Evangelho Segundo Jesus Cristo, A Caverna, O Ano da Morte de Ricardo Reis, História do Cerco de Lisboa, etc.). Claro está que aquelas obras não têm menor valor que estas tão lidas e discutidas. Este refletir sobre os grandes sucessos saramaguianos é o que norteou a escolha de A Jangada de Pedra para este trabalho. A priori, far-se-á aqui uma breve exposição de sua fábula, bem como uma breve análise de alguns pontos estruturais da narrativa, ressaltando principalmente a questão do narrador. Feito isso, verte-se o olhar primeiramente a uma das protagonistas da história, Joana Carda, que mostra um comportamento feminino um pouco diferente dos estereótipos encontrados na literatura universal. Tentar-se-á, ao fim, fazer uma breve análise interpretativa da obra, buscando entender que fato ou pensamento levou o autor a escrever uma história na qual a Península Ibérica se desprende da Europa e passa a vagar oceano afora, mudando muitas vezes sua rota, e fazendo com que as personagens, a população em geral, e também outros países mudem suas vidas e opiniões no que se diz respeito à própria península, à vida e ao destino.

Palavras-chave: Saramago; Jangada de pedra; personagem feminina

A história de A Jangada de Pedra relata a epopéia dos povos ibéricos que se separam geograficamente do continente europeu. Uma vez desprendida a partir dos Pirineus, Saramago relata, com sua visão filosófica e irônica, a viagem da Península Ibérica pelo oceano afora, ocasionando uma mudança drástica nos costumes dos habitantes de Portugal e Espanha.

Sem explicação lógica, este fantástico episódio acontece a partir de outros fenômenos estranhos com os protagonistas da saga ibérica. Joana Carda, ao andar pelo interior de Portugal, risca o chão com uma vara de negrilho e o chão se abre. Por mais que ela desfaça o risco, ele volta a se formar. Concomitantemente, vê-se Joaquim Sassa a andar por uma praia do norte de Portugal, e a jogar pedras ao mar. Uma delas, das bem pesadas, diga-se de passagem, ao ser lançada, quica na água constantes vezes, até se perder de vista. Pedro Orce, farmacêutico na Espanha, sente a terra tremer enquanto ninguém a sente, e José Anaiço, professor português, sem explicação lógica, passa a ser seguido por um bando de estorninhos, os quais o acompanham para todo lugar.

Logo após estes estranhos fenômenos, os Montes Pirineus, cadeia de montanhas que separa a Espanha da França, rompe-se ao meio, uma fenda ainda pequena, mas que engole o leito do Rio Irati. São chamados geólogos, sismólogos de toda a parte, que não conseguem dar explicação plausível ao fato. Uma comissão formada entre os governos dos dois países envolvidos decide cimentar toda a fenda. O problema é resolvido temporariamente, já que os Pirineus voltam a se romper, agora profundamente, até que se possa ver o mar. A partir daí, a Península Ibérica passa a andar desgovernada pelo oceano. Sobre o fenômeno do rompimento, eis o que se encontra na obra:

Limitemo-nos a dizer que a plataforma continental foi minuciosamente examinada, sem resultado. [...] O Archimède, obra-prima da investigação submarina, manipulado pelos franceses seus proprietários, baixou aos máximos fundos periféricos, da zona eufótica para a zona pelágica, e desta para zona batipelágica, usou faróis, pinças, apalpadores electrónicos, sondas de vário tipo, varreu o horizonte subaquático com o sonar panorâmico, em vão (SARAMAGO, 2006: 119).

Claro está que não há explicação racional para o rompimento, e a falta de informações deixa ainda mais a população à deriva. Voltando às personagens, Joaquim Sassa, ao saber pela televisão do estranho fenômeno que se passa na vida de José Anaiço, parte em sua busca para tentar encontrar explicações para a estranheza que havia acontecido consigo. Sem explicações a dar, José Anaiço resolve viajar com Sassa para, juntos, tentarem desvendar se os acontecimentos ocorridos com eles têm ligação com o rompimento dos Pirineus. Então, decidem ir atrás de Pedro Orce, outro protagonista que passa por fenômenos estranhos, no seu caso a terra treme. Juntos, decidem ir a Portugal, onde são procurados pelos jornalistas e pelo governo. Orce, já desorientado, procura nos estranhos acontecimentos menores compreender o porquê do rompimento da península.

Em Lisboa eles encontram Joana Carda, que ao saber pela televisão de seus casos, vem contar o seu próprio, e os leva para ver o risco no chão que não se apaga. Há aí o início de um envolvimento amoroso entre Joana Carda e José Anaiço. Nesse mesmo local, encontram também um cão, que parece querer que os quatro o sigam. Sem perspectivas para a solução de suas dúvidas, os quatro decidem seguir o cão, que os leva a Galícia. Lá encontram Maria Guavaira e se hospedam temporariamente em sua casa, outra personagem que passa por um estranho fenômeno: desfaz uma meia e a sua linha se multiplica pelo equivalente à confecção de mil meias. Há o encontro amoroso entre Maria Guavaira e Joaquim Sassa, no momento em que este, segurando o fio azul de linha que o cão trazia, é levado ao encontro da outra ponta, segurada por aquela, diante da porta.

Concomitantemente o caos se instala na península, já que não se há uma explicação lógica para o fato, e nem se tem a certeza do futuro. Levantam-se questões: e se ela parar? Se bater em Açores? Se se navegar eternamente? E se aparece uma fossa abissal?

Que Acontecerá, quando se interpuser no caminho da península uma fossa abissal, deixando de existir, portanto, uma superfície contínua de deslizamento [...] Perdendo a península o pé, ou os pés, será o inevitável mergulho, o afundamento, o sufoco, a asfixia, quem diria, após tantos séculos de vida mesquinha, que estávamos fadados para o destino da Atlântida (IBIDEM: 118).

A proximidade da península em relação à ilha dos Açores aumenta, sendo necessária uma evacuação de todo o litoral português e galego. Com os protagonistas não é diferente, decidem partir, mesmo em uma galera improvisada, já que o carro de Joaquim Sassa entra em pane. Viajam Espanha adentro, mesmo após o desvio da península, que muda seu sentido, deixando de atingir a ilha de Açores. Há de se lembrar deste fato, sim, a Península Ibérica, quando estava próxima de atingir o arquipélago das ilhas açorianas muda de direção inexplicavelmente:

Então, aconteceu. A uns setenta e cinco quilômetros de distância do extremo oriental da ilha de Santa Maria, sem que nada o fizesse anunciar, sem que se sentisse o mais ligeiro abalo, a península começou a navegar em direcção ao norte. Durante alguns minutos, enquanto em todos os institutos geográficos da Europa e da América do Norte os observadores analisavam, incrédulos, os dados recebidos dos satélites e hesitavam em torná-los públicos, milhões de aterrorizadas pessoas em Portugal e Espanha já estavam salvas da morte e não sabiam (IBIDEM: 211)

Os cinco amigos mais o cão vão em direção aos antigos Pirineus e, lá, vêem o mar. O ambiente não é um dos mais propícios já que Joaquim Sassa e José Anaiço descobrem que suas parceiras, Joana Carda e Maria Guavaira, tiveram relações com Pedro Orce. Logo, descobrem estarem as duas grávidas, bem como todas as mulheres da península, fazendo assim que a terra recebesse, em breve, de doze a quinze milhões de novos seres.

Em se tratando do confuso percurso da Península Ibérica, há vários momentos em que ela muda de direção, hora apontando para os Estados Unidos, ora para o Canadá, ora para a América do Sul, ora para a África; e, nesse jogar de movimentos, ela pára de se deslocar, girando sobre si mesma, jogando Portugal a leste, e a Espanha com as costas viradas a oeste. Deste ponto em diante não se sabe mais sobre sua saga até o fim da obra.

Dias depois, ao não sentir mais o tremor da terra, Pedro Orce morre. O grupo, acrescido de Roque Lozano, andarilho conterrâneo de Orce, decide levar o seu corpo para que fosse enterrado em sua cidade. A fábula assim termina, com o enterro de Pedro Orce.

Tendo esta breve noção da fábula de A Jangada de Pedra, foca-se, agora, alguns pontos estruturais da narrativa, primeiramente sobre tempo e espaço.

Entende-se, claro é, e como já se viu, que toda a fábula se passa dentro da Península Ibérica, na sua jornada após o rompimento com os Pirineus. Mas, também, ela se passa, em alguns momentos, na Europa, retratando as manifestações de apoio à causa ibérica e os confrontos políticos que lá se estabelecem. Em determinado trecho, o narrador relata tais manifestações, com a inscrição “Nós também somos ibéricos” escrita em mais de quinze línguas diferentes. A Europa se transforma em pró-iberismo:

Da noite para o dia a Europa apareceu coberta dessas inscrições. Aquilo que ao princípio talvez não tivesse passado de um mero e impotente desabafo de sonhador, foi alastrando até tornar-se grito, protesto, manifestação de rua. (IBIDEM: 141).

Em se tratando de tempo, a narrativa é estabelecida cronologicamente, isto é, uma seqüência natural dos dias, semanas, meses. Contudo, algumas vezes pode-se perceber o narrador indo e voltando no tempo. Não é tão comum deparar-se com analepses, entretanto, o texto é carregado de prolepses. Considerando a primeira, pôde ser levantado um fato interessante no texto. O narrador primeiro relata a cena dos três homens debaixo de uma oliveira (Joaquim Sassa, José Anaiço e Pedro Orce) a ouvir as notícias do rádio sobre o rompimento dos Pirineus. Depois ele volta no tempo e narra a razão e como se deu o encontro desses três homens:

Parecem pormenores escusados [...] quando muito mais importa é falar desses três homens que debaixo da oliveira estão sentados, um que é Pedro Orce, outro Joaquim Sassa, o terceiro José Anaiço, acaso prodigiosas ou deliberadas manipulações os terão reunido neste lugar [....] sabemos há três minutos vive na aldeia que está escondida por trás desses arbustos [...] Falta agora saber como se encontraram os três e porque estão aqui clandestinos, debaixo de uma oliveira (IBIDEM: 41 - 42).

Esse fato é narrado na página quarenta, e a razão do encontro será explicada nas próximas trinta páginas, fazendo-se um recuo no tempo para que essa narração-explicação se dê. Somente na página setenta e um é que o narrador volta à cena da oliveira, onde os três estão sentados e ouvindo rádio. Chama-se, então, essa volta no temo de analepse. Contudo, como dito, e que já pôde ser percebido em outras citações neste mesmo trabalho, o narrador faz constantes antecipações de fatos, ou seja, prolepses, como se pode ver no seguinte trecho:

Amanhã, quando Joaquim Sassa acordar, pensará que aqueles dois tiveram a paciência de esperar, sabe Deus com que custo, se Deus sabe destas sublimações da carne (IBIDEM: 151).

Joaquim Sassa ainda não acordou, mas quando acordar pensará que os amigos José Anaiço e Joana Carda esperaram para se entregar um ao outro. Este fato, ou seja, o pensamento, não voltará a ser relatado quando vir a acontecer, contudo ele já antecipa um fato do dia seguinte, ou seja, salta ao futuro para contar um fato. Tem-se aí, uma prolepse ostensiva.

O narrador de José Saramago é ímpar, sempre é irônico, poético e filosófico. Quando se pensa estar diante de um narrador onisciente, depara-se com um narrador que não sabe ainda de fatos que irão se passar, ou de algumas características das personagens. Às vezes, passa-se o contrário: um narrador que faz prolepses, ou seja, antecipa fatos vindouros. Toma-se o seguido trecho:

Estão no quintal por trás da casa José Anaiço, sentado no poial da porta, Joaquim Sassa numa cadeira por ser a visita, e estando José Anaiço de costas para a cozinha, donde a luz vem, continuamos sem saber que feições são as suas, parece que esse homem se esconde, e não é tal, quantas vezes aconteceu mostrarmo-nos como quem somos, e não valeu a pena, não estava ninguém lá para ver (IBIDEM: 53).

O narrador assume o fato de não saber as características de José Anaiço, levando-se a crer estar diante de um narrador, sim, heterodiegético, porém não onisciente, justamente por não poder dar mais detalhes sobre descrições e outros pormenores. Todavia, ele tem conhecimento de fatos que estão acontecendo em outro ponto, longe da fábula e em outro momento, é o que se vê em outro trecho:

Daí há dias, já na sua terra, será herói, dará entrevistas à televisão, à rádio e à imprensa, Foi o primeiro a ver senhor Souza, relate-nos suas impressões do terrível momento (IBIDEM, 24).

Vê-se que o narrador tem conhecimento do que irá se passar nos dias futuros, a chegada a Portugal do homem que primeiro viu a fenda se abrir. Ou seja, o narrador tem conhecimento do fato vindouro, e antecipa-o, levando-se a crer estar diante de um narrador onisciente.

Outro ponto interessante e que deve ser ressaltado é aquele em que o narrador, e isso se dá muitas vezes no texto, coloca-se na fábula, como personagem, como ser que habita nela:

Por exemplo, os evangelistas quando se limitaram a escrever que Jesus amaldiçoou a figueira, parece que deveria a informação bastar-nos e não basta, não senhor, afinal, vinte séculos passados, ainda não sabemos se árvore desgraçada dava figos brancos ou pretos, lampos ou serôdios, de capa-rota ou pingo-de-mel, não que com a falta esteja padecendo a ciência cristã, mas a verdade histórica seguramente sofre (IBIDEM: 40 – grifo nosso).

E ao se colocar, por vezes, como personagem, o narrador acaba por limitar seu olhar a um acontecimento dentro da narrativa, deixando de poder narrar qualquer acontecimento simultâneo a este:

Dez minutos depois o cão aparecia-lhes pela frente do carro, com o pêlo ainda molhado. Pedro Orce tivera razão, e nós, se não tivéssemos duvidado um pouco, teríamos ficado na margem do rio a assistir à corajosa travessia, que com tanto gosto haveríamos de descrever, em vez duma banal passagem de fronteiras com guardas só diferentes nas fardetas (IBIDEM: 157 - 158).

Contudo, outras vezes, o mesmo narrador chama a atenção de seus leitores, lembrando-os de que aquilo que estão lendo não passa de uma ficção.

Por trás destas encostas, mas não visível daqui, há uma aldeia onde Pedro Orce tem vivido, e por um acaso, primeiro deles, se o é, têm ele e ela o mesmo nome, o que não retira nem acrescenta verossimilhança ao conto, um homem pode chamar-se Cabeza de Vaca ou Mau-Tempo e não ser açougueiro ou meteorologista. Já disse que são acasos, e manipulações, porém de boa-fé (IBIDEM: 40).

Neste trecho, o narrador faz um comentário sobre a relação entre os nomes de uma personagem e de uma cidade, e indo além, que mesmo à evidente semelhança não acrescenta nem tira verossimilhança à narrativa. Ora, isso é metalinguísmo e seria o mesmo que mostrar ao leitor de que isto o que lêem não passa de uma fábula, uma história inventada, como já dito, uma ficção. E o metalinguísmo se estende, ou seja, fala do ato de escrever e do porquê de certas construções:

Porém, conjunção coordenada adversativa que sempre anuncia oposição, restrição ou diferença, e que, aplicada ao caso, vem lembrar que mesmo as boas coisas para uns precisamente têm os seus poréns para outros... (IBIDEM: 91).

Para corroborar a citação acima:

Dois Cavalos atravessa a ponte devagar, à velocidade mínima autorizada, para dar ao espanhol tempo de admirar a beleza das paisagens de terra e mar, e também a grandiosa obra de engenharia que liga as duas margens do rio, esta construção, falamos da frase, é perifrástica, usa-mo-la só para não repetirmos a palavra ponte, de que resultaria solecismo, da espécie pleonástica ou redundante (IBIDEM: 93).

E o narrador, pode-se assim dizer, chega a brincar com os leitores ao fazer comentários e atribuí-los a outrem, no caso do trecho abaixo a uma voz desconhecida que, por vezes, toma a sua voz de narrador para fazer certos comentários:

Se assim fosse digam-me cá como seríamos capazes de aturar esta insatisfatória vida, o comentário é da voz desconhecida que fala de vez em quando (IBIDEM: 155).

Já que aqui se tratou do assunto linguagem, é importante relembrar o estilo de escrita saramaguiano. Aboliu boa parte dos sinais de pontuação (travessões, por exemplo) e adota o discurso indireto livre, fazendo com que as personagens falem após uma vírgula seguida de letra maiúscula, esta última para marcar o início da fala.

Visto que por vezes o narrador se coloca dentro do texto, não se pode encaixá-lo totalmente no que se define como narrador heterodiegético, ou seja, aquele que não participa da obra, o narrador em terceira pessoa. Contudo, também não podemos dizer que é autodiegético, pois ele não age nos acontecimentos da fábula. Há inclusive interpretações que afirmam haver várias vozes narrativas, o que dificulta o encaixe entre uma definição e outra.

Mesmo com essa dificuldade de encaixe dentro das definições estabelecidas para narrador, encontra-se no narrador saramaguiano um forte poder filosófico, que de repente, de um fato comum, leva os leitores para uma reflexão sobre a vida. Ao comentar sobre a saída de Pedro Orce da casa de Maria Guavaira para ir dar uma volta com o Cão, o narrador descreve o caminho por onde ele passa, os paredões das montanhas, onde muitos morreram em batalha. Deste breve comentário nasce uma das reflexões filosóficas mais fortes do livro:

A morte é a suma razão de todas as coisas e sua infalível conclusão, a nós o que nos ilude é esta linha de vivos em que estamos, que avança para isso a que chamamos futuro só porque algum nome lhe havíamos de dar, colhendo dele incessantemente os novos seres, deixando para trás incessantemente os seres velhos a que tivemos de dar o nome de mortos para que não saiam do passado. (IBIDEM: 166).

Entretanto, não há uma obsessão pelo pessimismo. O narrador saramaguiano também tem um traço lírico ímpar. Deixe-se aqui, para fechar o assunto sobre narrador, um dos mais belos trechos líricos de A Jangada de Pedra:

Quando regressaram, o acampamento parecia um lar, a fogueira confortava-se entre as pedras, o candeeiro pendurado da galera fazia para o espaço desafogado meia roda de luz, e o cheiro da fervedura era como a presença de Deus Nosso Senhor (IBIDEM: 230).

Em se tratando de personagens, nota-se que todas elas em A Jangada de Pedra são planas, e não apresentam modificações de caráter ou de atitudes muito drásticas dentro da obra. A única passagem que pode levar a uma interpretação errônea é aquela em que Joaquim Sassa e José Anaiço descobrem que Pedro Orce teve relação com suas mulheres. Este passa a ficar cada vez menos com o grupo, andando sempre na companhia do Cão. Aqueles passam a se dirigir rispidamente a Pedro Orce em razão do acontecido. Porém, nota-se que há ainda uma relação amigável entre eles, e acontece uma reaproximação pouco antes da morte de Pedro Orce, mostrando que mesmo com os problemas dentro do grupo não houve alterações de caráter:

Que é isso, amigos, eu ainda não estou inválido, não reparou que a palavra amigos subitamente encheu de lágrimas os olhos dos dois, estes homens que guardam dentro do peito a dor duma desconfiança, mas que recebem nos braços o corpo cansado, que se lhes entrega, apesar da orgulhosa declaração, há sempre uma hora em que o orgulho tem mais que palavras, não é mais que palavras (IBIDEM: 287).

Mesmo com fatos que poderiam levar ao fim uma bela amizade, esta ainda se sustenta, um amigo leva ao choro outros dois. Não há, portanto, nada que leve uma brusca mudança de caráter ou temperamento dentro da obra, podendo assim, classificar, como acima dito, as personagens como planas.

A título de curiosidade, explana-se os outros personagens que pertencem à obra, mas que não foram citados ou desenvolvidos acima: 1 - O cão Constante, que através do fio da meia, leva os protagonistas à casa de Guavaira; 2 - Roque Lozano, andarilho conterrâneo de Pedro Orce, é encontrado por este quase no fim da obra. Lozano, juntamente com seu burro, passa a fazer parte do grupo que “peregrina” pela península; 3 - Maria Dolores – Antropóloga, conta a Joaquim Sassa e José Anaiço que em Orce recentemente foi descoberto o europeu mais antigo de que se tem notícia.

Após esta breve análise estrutural, por meio de trechos retirados da obra, tenta-se fazer uma breve interpretação sobre esta obra saramaguiana.

Em uma possível leitura, encontra-se Saramago a destilar sua filosofia em relação à identidade nacional, que corre o risco de se perder nos tempos de União Européia. Portugal e Espanha, vizinhos no território, semi-irmãos na língua, são considerados hoje uma parte relativamente “pobre” da Europa, continente com o qual já há pouca identificação por parte dos países ibéricos e vice-versa.

A idéia de nação é ampliada à idéia de Península, muito mais enfatizada pelo autor nesta obra. Portugueses e espanhóis passam a sofrer das mesmas dores, a ter o mesmo destino, as mesmas esperanças. São praticamente o mesmo povo, juntos em sua jornada a lugares desconhecidos. A idéia de Península é tão forte que já não se percebe fronteiras, vê-se o dito no trecho abaixo:

O tempo é de férias, pode ir e voltar sem ter de pedir licença, agora nem o passaporte exigem na fronteira, mostra-se simplesmente o bilhete de identidade e é nossa a península (IBIDEM: 42).

E nessa tentativa de compreender a fábula, pode-se entender que Portugal e Espanha devem romper com a velha Europa, olhar para si, olhar para o futuro e assim poder amadurecer e, por que não, renascer:

Não podia a força humana nada a favor duma cordilheira que se abria como uma romã, sem dor aparente, e apenas, quem somos nós para o saber, porque amadurecera e chegara seu tempo (IBIDEM: 28).

Talvez esse rompimento metafórico possa representar um amadurecimento, o qual só pode vir com o verdadeiro rompimento ideológico. Contudo, pode-se entender que o narrador critica algumas pessoas que continuam com as mesmas atitudes mesmo às portas de uma nova era para a península:

Mas dentro das casas as luzes já estão acesas, ouvem-se vozes calmas, de gente cansada, um choro discreto no berço, em verdade os povos são inconscientes, lançam-nos numa jangada ao mar e continuam a tratar das vidas como se estivessem numa terra firme para todo o sempre, palrando como Moisés quando descia o Nilo na condessinha de verga, a brincar com as borboletas, com tanta sorte que não o viram os crocodilos. (IBIDEM, p. 52).

Se há esse rompimento é necessário que as pessoas mudem de comportamento, vertam seu olhar para as coisas que verdadeiramente importam. É necessária uma mudança geral de atitude, do contrário “os crocodilos podem engolir aqueles que não o fizerem”.

Após a análise estrutural-interpretativa, objetiva-se aqui fazer uma breve leitura de Joana Carda, uma das personagens principais da história. Claro está que essa análise não tem exatamente um cunho teórico forte, e nem visa se estender demasiado. Entretanto, por saltarem aos olhos e serem nítidos na obra alguns trechos que mostram uma personalidade feminina ímpar é que se desenvolve aqui essa lacônica discussão.

Joana Carda, ao contrário de outras personagens femininas de Saramago, lê-se Blimunda de Memorial do Convento e Mulher do Médico de Ensaio Sobre a Cegueira, pode não ter a mesma força externa presente nelas, todavia, há uma força interior que, mesmo nos sofrimentos (perda recente do marido e o fenômeno estranho da vara de negrilho que pode ou não ter ligações com o rompimento da península com a Europa) faz dela uma agente em um meio onde o masculino domina em todas as perspectivas: tanto em ideologia, quanto em número.

É só lembrar que durante boa parte da narrativa, tem-se Joana Carda como única figura feminina em meio a três homens, e mesmo assim ela se sobressai tomando atitudes, dizendo coisas que só uma mulher de forte caráter pode fazer. Ao se apaixonar por José Anaiço, Carda (que curiosamente significa “um tipo de máquina que desembaraça as fibras têxteis” e ao mesmo tempo “máquina que dilacera carnes”) não hesita, toma a atitude de beijá-lo, mesmo correndo o risco de ser considerada fútil perante aos outros:

Disse Joana adeus até amanhã, e no último instante, quando já tinha um pé no chão, virou-se para trás e beijou José Anaiço, na boca, pois então, não esse disfarce de face ou comissura, foram dois relâmpagos, um de rapidez, outro de choque, mas deste prolongaram-se o efeito, o que não seria o contato dos lábios, tão doce, se tivesse prolongado (IBIDEM: 134 - 135).

Simone de Beauvoir, ensaísta crítica do feminismo diz que a mulher é submissa porque aceita ser submissa. Ser ativo enquanto ser masculino é estar dentro dos padrões políticos, religiosos, sociais, biológicos. A mulher que sai de sua passividade para agir em seu meio normalmente é vista como alguém que infringe as leis naturais. Eis o que diz Beauvoir:

A mulher? É muito simples, dizem os amadores de fórmulas simples: é uma matriz, um ovário; é uma fêmea, e esta palavra basta para defini-la. Na boca do homem o epíteto “fêmea” soa como um insulto; no entanto, ele não se envergonha de sua animalidade, sente-se, ao contrário, orgulhoso se dele dizem: “É um macho” (BEAUVOIR, 1980: 25).

Se a atitude de Joana Carda fosse atribuída a um homem, este estaria seguindo a ordem natural das coisas. Entretanto, atribuída a uma mulher, essa atitude poderia ser vista com “maus olhos”. Mas Carda não teme tais preconceitos, sua vida já estava desintegrada com a perda do casamento, ela arrisca amar e não se arrepende. Toma outras iniciativas como aquela que quando se estava por decidir quem dormiria aqui ou ali na casa de Joaquim Sassa, tendo apenas uma cama de casal, Joana Carda decide e põe fim ao impasse:

Mas dois minutos ainda não tinha passado e aí estava Joana Carda a dizer em voz clara, Nós ficamos juntos, em verdade está o mundo perdido se as mulheres tomam iniciativas deste alcance, antigamente havia regras [..] mas nunca por nunca ser este despautério, esta falta de respeito diante de um homem de idade, e ainda dizem que as andaluzas têm o sangue quente, vejam esta portuguesa, a Pedro Orce que aqui vai nunca nenhuma disse assim cara a cara, Nós ficamos juntos (SARAMAGO, 2006: 148, 149).

Este irônico comentário do narrador só reafirma sua posição de mulher-sujeito, definição dada pela crítica feminista àquela personagem que age e toma decisões no universo patriarcal e falocêntrico. Joana Carda decide passar a noite com José Anaiço. Isto não a torna vulgar, e em muitos pontos da obra vê-se em Joana Carda uma mulher que, apesar do sofrimento, é decidida e se mostra, por vezes, caridosa e de bom coração. Não há despautério, ela se apaixona por Anaiço, e ele por ela. É o que se vê no seguinte trecho:

Gosto de ti, creio que te amo, disse José Anaiço honestamente, Também eu gosto de ti, e também creio que te amo, por isso te beijei ontem, não, não é bem assim, não te teria beijado se não sentisse que te amava, mas posso amar-te muito mais (IBIDEM: 136).

O próprio narrador afirma seu brio, vê que Joana Carda é uma mulher que decide reagir, que não espera pelos outros. Vê-se o que ele pensa da personagem no trecho em que os quatro amigos estão ficando sem dinheiro e se preocupam em como consegui-lo:

Mas talvez não venha a ser preciso chegar a tais extremos de ilegalidade, aqui no Porto irá também José Anaiço à agência do banco onde guarda as economias, Pedro Orce trouxe todas as suas pesetas, de Joana Carda é que nada sabemos quanto ao particular dos recursos, pelo menos já vimos que não parece mulher para viver de caridades ou expensas de macho (IBIDEM: 152).

Joana Carda é daquelas pessoas que não esperam, já sendo redundante, agem. No trecho em que o cão aparece, é ela que entende que o cão quer que eles o sigam. E nas indefinições de ir ou não com ele, ela decreta: Estou pronta a ir para onde ele nos levar, se foi para isso que veio, quando chegarmos ao destino saberemos (Ibidem: 133).

Ela torna-se, pode-se assim interpretar, um ícone a ser seguido. Sua liberdade e determinação a levam ao encontro dos três amigos, e a fazem decidir seguir viagem com eles, atitude de extremo enfrentamento em se tratando de uma sociedade patriarcal e falocêntrica. Isso se torna claro quando, ao regressar a casa dos parentes para passar a noite, Joana Carda, no entrar da noite, conta que decidira ir viajar com os três homens:

[...] Quando todos já dormirem na Figueira da Foz, ainda duas mulheres estarão a conversar numa casa de Ereira, no segredo da noite, Quem me dera ir contigo, diz a prima de Joana, casada e mal-maridada (IBIDEM: 135).

A prima, que tem como impedimento para uma viagem deste tipo o mau casamento, e que provavelmente não se separa devido aos valores da sociedade patriarcal, lança em Joana, desquitada e valente, seus anseios, eis a razão do: “Quem me dera ir contigo”.

E para fechar esse breve relato sobre Joana Carda, coloca-se aqui a fala do narrador relatando o espanto dos homens em relação à inteligência e força desta personagem:

Vê-se na cara de José Anaiço e de Joaquim Sassa que vão desorientados, a mulher que desceu à cidade de pau a proclamar impossíveis actos de agrimensora saiu-lhes filósofa nos campos do Mondego (IBIDEM: 127).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É fácil se surpreender ao ler um livro de José Saramago. Com A Jangada de Pedra não é diferente. Ao propor que o leitor embarcasse em uma jangada concernente à Península Ibérica, o autor viaja não só oceano afora, mas para dentro de cada um que o lê, vasculhando os meandros de seus conceitos e pré-conceitos enraizados desde os primórdios. As reflexões filosóficas do escritor português, sempre banhadas ao sabor da ironia, dão um capricho a mais ao texto, que é riquíssimo, também, quando se trata de detalhes históricos e geográficos. O romance dialoga, inclusive, com a literatura fantástica e a crítica feminista, pontos muito fortes dentro da obra, principalmente o primeiro, já que fenômenos estranhos são os responsáveis pela jornada ultramar.

Conclui-se, então, que a obra A Jangada de Pedra pode servir como uma forma de rever os ideais referentes à nação, de meditar e abrir os olhos sobre o que somos, onde estamos, o que seguimos e a quê estamos presos. Outrossim, vê-se uma crítica, presente na maioria de seus livros, ao governo, que, na visão saramaguiana, está sempre despreparado para o caos, para o imprevisto ou para uma simples viagem.

Com relação à personagem feminina do escritor Nobel, muito bem representada em A Jangada de pedra por Joana Carda, vê-se que se trata de um ser que pensa, reflete, age; alguém dotado de uma personalidade muito forte, que possui julgamentos próprios, caráter honrado e visão para o futuro. Sendo assim, a mulher da obra de Saramago demonstra estar absolvida dos estereótipos fixados para si ao longo dos anos, além de se expurgar da visão machista e fálica que influencia o pensamento moderno.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980.

SARAMAGO, José. A Jangada de Pedra. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.