A ÓTICA FEMINISTA NAS PERSONAGENS SARAMAGUIANAS, BLIMUNDA E MULHER DO MÉDICO

Luís Cláudio Ferreira SILVA (G-UEM/PIBIC – Fundação Araucária)

Marisa Corrêa SILVA (UEM)

Sabe-se que José Saramago é um dos escritores mais importantes de língua portuguesa da atualidade, sendo, até o presente momento, o primeiro e único escritor de origem lusitana a ser laureado com o Prêmio Nobel. Inúmeras vertentes e críticas literárias estão se enveredando em direção à obra do autor, a fim de fazer um estudo mais aprofundado da mesma. E processo semelhante acontece com a Crítica Feminista, uma das mais estudadas atualmente. Logo, o estudo da representação feminina nas personagens Mulher do Médico, de Ensaio Sobre a Cegueira, e Blimunda, de Memorial do Convento, de José Saramago, é o foco pretendido neste trabalho; e far-se-lo-á à luz das teorias da Critica Feminista. Antes de fazê-lo, claro está, far-se-á necessária uma breve exposição da teoria, sua origem, suas subcorrentes e principais pensadoras. Em seguida, tentar-se-á fazer uma breve leitura das personagens femininas acima citadas e ver como as mesmas reagem dentro de um universo onde o masculino exerce todas as prerrogativas, e ver se elas conseguem agir e ocupar seus espaços de forma notável ou não. Se o universo literário instituído por Saramago compartilha a concepção falocêntrica com o mundo real, ver-se-á, se ainda assim essas mulheres notáveis denunciam, em palavras, atos e pensamentos, o absurdo dessa dominação, e se conseguem vitórias no sentido de tornarem as próprias existências emblemáticas de uma libertação.

Palavras chave: Critica Feminista, personagem feminina, José Saramago.

Nas obras saramaguianas Ensaio Sobre a Cegueira e Memorial do Convento tem-se duas personagens femininas peculiares: Mulher do Médico e Blimunda, respectivamente. Em ambas obras elas vivem em um universo onde o masculino exerce todas as prerrogativas mas, apoiadas em suas “estranhezas”, conseguem agir de maneira singular neste universo patriarcal e falocêntrico. Contudo, antes de partirmos para a análise das personagens citadas, faz-se necessário uma breve recapitulação das duas obras de José Saramago, bem como de tópicos da crítica feminista..

Ensaio Sobre a Cegueira, escrito em 1995 narra a história de uma cegueira branca, diferente da cegueira normal, a negra, que atinge praticamente toda a população de uma cidade não identificada. O primeiro a ser atingido estava dentro de seu automóvel, parado no semáforo, esperando a abertura do mesmo para prosseguir viagem. De repente, uma luz branca o atinge e ele cega. Sem saber o que acontecia consigo e sem saber reagir, ficou parado com o semáforo aberto enquanto os outros carros buzinavam. Algumas pessoas o ajudaram a sair do carro, e uma dessas pessoas, logo depois, o guiou até sua casa. Sua esposa, ao encontrá-lo cego encaminha-o com urgência a um oftalmologista que dá o veredicto: não há qualquer sinal de problemas, o médico “Não encontrou nada na córnea, nada na esclerótica, nada na íris, nada na retina, [...] nada no nervo óptico, nada em parte alguma” (Saramago, 2007: 17), ou seja, uma cegueira inexplicável.

Pouco depois, já em sua casa, ao estudar o caso da misteriosa cegueira, o médico oftalmologista fica cego, e é levado pelo governo, juntamente com sua esposa que não cegara (aliás, a única que não cega, mas finge assim estar para acompanhar o marido), a um abrigo, um antigo manicômio, onde todos os doentes do mal branco ficariam isolados até segunda ordem. O que parece ser uma boa saída torna-se algo insuportável. Os casos na cidade se multiplicam e o governo não sabe como proceder, e vai depositando todos os cegos em uma ala do manicômio, e na outra, todos os suspeitos de contágio. Além de terem de comer e fazer necessidades básicas sem enxergar, os internos têm que conviver com o fato de o abrigo receber cada vez mais cegos que vão, passo a passo, entrando em conflito, desde a disputa por um lugar na cama, passando pela quantidade de comida destinada a cada um, e chegando à absurda exploração sexual das mulheres em uma das alas. A Mulher do Médico, com sua visão intacta, torna-se a protagonista da história, auxiliando a maioria na suas necessidades como cuidar dos doentes, dar banho nas mulheres e guiar os outros até o banheiro; além de ganhar força revolucionária em sua camarata na guerra contra alguns cegos desleais de outra.

Após algumas semanas em quarentena, os cegos conseguem sair do exílio após a explosão do mesmo, e encontram as ruas fétidas e quase sem sinal de vida. O grupo formado pelos primeiros cegos – inclui-se aí o Médico, o Primeiro Cego entre outros – encontra abrigo na casa do Médico, e passam a procurar comida por toda a cidade. Ao cabo da aventura pouco a pouco os cegos vão voltando a ver, e assim termina a narrativa.

Já a obra Memorial do Convento, livro escrito na década de 1980, mais precisamente em 1982, apresenta duas histórias paralelas: remonta a história de Portugal através da construção do Convento de Mafra por D. João V; e paralelamente conta a história de amor entre Baltazar e Blimunda envolvidos na construção da Passarola – máquina de voar – idealizada e projetada pelo Padre Bartolomeu. A primeira história revela episódios da história portuguesa no tempo da construção do Convento de Mafra, um grandioso monumento construído pelo rei D. João V oferece a obra a Deus para que a rainha engravide e lhe dê um herdeiro. A segunda história, com a qual a primeira se entremeia; é a história de amor, entre Blimunda e Baltazar (que se conhecem durante a execução da mãe da heroína pela Santa Inquisição, por possuir poderes de visão e ser tida como bruxa), pessoas humildes do povo, que se unem ao Padre Bartolomeu em seu sonho de voar através da construção de uma máquina, a qual chamam de passarola. Blimunda tem poderes especiais, consegue ver as pessoas por dentro e se torna a responsável por captar as vontades das pessoas. As vontades recolhidas das pessoas servem de combustível para a passarola, uma espécie de metáfora de liberdade. Pe. Bartolomeu, Baltazar e Blimunda conseguem fazer com que a máquina voe, porém, o padre idealizador passa a ser perseguido pela inquisição, e foge para Toledo, onde acaba morrendo tempos depois. Baltazar e Blimunda cuidam da passarola que foi escondida. Baltazar durante a manutenção da máquina acaba voando nela e não mais voltando; Blimunda procura-o por nove anos por todas as partes do país, até que em Lisboa, durante um auto de fé, reconhece Baltazar a caminho da fogueira. Quando Baltazar está para morrer, sua vontade se desprende e é finalmente recolhida dentro do peito de sua amada Blimunda.

Após essa descrição, retomamos brevemente a crítica feminista e suas pensadoras. A crítica feminista, resumidamente, é um reflexo, ou efeito, do movimento feminista na literatura. Desde que o movimento eclodiu, a mulher vem sendo objeto de um olhar mais libertário em várias ciências, como: Psicanálise, Sociologia, História, entre outras. A crítica feminista levanta discussões a respeito da experiência feminina diante da obra literária, ou seja, aponta experiências próprias, diferentes das do sexo masculino, tentando questionar as práticas acadêmicas patriarcais. Além das novas perspectivas de leitura, essa vertente da teoria literária volta o seu olhar para os estereótipos do feminino, freqüentemente utilizados como marca disfórica sobre a mulher na literatura.

Ela promove, também, debates sobre o espaço relegado à mulher na sociedade e seus reflexos no campo literário, uma vez que há correspondências entre sexo e poder, sendo o casal uma extensão da esfera pública, baseada, normalmente, na relação de poder. Tenta-se, assim, fazer uma desconstrução da visão discriminatória das ideologias de gênero que foram geradas ao longo dos tempos, ou seja, a oposição binária homem/mulher, tão enraizada em nossa cultura.

A questão feminista passou a ter uma voz (ao menos “rouca”, no entanto uma voz) nos últimos dois séculos. Vem em busca do direito de igualdade de remuneração salarial, direto a voto, entre outros. Alguns autores discutem tais pontos. Zolin, a propósito da posição de déspota do homem em relação à mulher na sociedade familiar, escreve:

O fato de o poder absoluto não ser aceito no estado político, por ser um método impróprio para governar seres racionais e livres, mas existir na família. Do mesmo modo que questiona o fato de todos os homens nascerem livres e todas as mulheres nascerem escravas (Bonicci & Zolin, 2004:163, 164).

Ou seja, se na sociedade o poder absoluto não é aceito, ao menos não conscientemente, é fatalmente aceito nas relações familiares, onde se tem tal poder absoluto do homem sobre a mulher: reflexo da sociedade patriarcal e falocêntrica. Eis o que Simone de Beauvoir diz a respeito da situação da mulher:

A mulher? É muito simples, dizem os amadores de fórmulas simples: é uma matriz, um ovário; é uma fêmea, e esta palavra basta para defini-la. Na boca do homem o epíteto “fêmea” soa como um insulto; no entanto, ele não se envergonha de sua animalidade, sente-se, ao contrário, orgulhoso se dele dizem: “É um macho” (Beauvoir, 1980: 25).

Para a sociedade com visão patriarcalista a mulher não passa de um útero, serve apenas para a reprodução. O homem aceita sua condição de animal ao ser chamado de macho, mas rejeita essa condição se se trata da mulher. Entretanto, na segunda metade do século XIX é que o feminismo político começou a se organizar como movimento, mais especificamente na Inglaterra e nos Estados Unidos. Através de documentos e petições, esse movimento foi em busca da igualdade legislativa, ou seja, do voto, já que o mesmo significava a maior bandeira feminista, pois a partir do mesmo, outros objetivos poderiam ser alcançados. Contudo, foi exatamente nesta época que, na Inglaterra, durante a Era Vitoriana, a mulher foi majoritariamente discriminada, como se vê nas palavras de Zolin:

A mulher que tentasse usar seu intelecto, ao invés de explorar sua delicadeza, compreensão, submissão, afeição ao lar, inocência e ausência de ambição, estaria violando a ordem natural das coisas, bem como a tradição religiosa [...] a condição de subjugada da mulher deve ser tomada como sendo de vontade divina (Bonicci & Zolin, 2004: 164).

Vê-se que se utiliza de vários meios para manter a mulher como submissa, e um dos mais fortes é a tradição religiosa, cujo discurso reforça violentamente a idéia de que a mulher “boa” é subjugada ao sexo masculino.

Simone de Beauvoir, escritora francesa, é uma das precursoras e mais estudadas ensaístas femininas. Em seus estudos sobre a mulher, centra seu olhar em um foco existencialista, onde ela desenvolve teorias na relação entre os casais, dentro dos quais, normalmente, a mulher sempre é vista como escrava e o homem como o senhor. Segundo ela, essa submissão é herança que vem desde os primeiros povos, e que, por razões sociais e biológicas, impuseram essa condição à mulher. Para corroborar tais afirmações cita-se, novamente, Zolin:

O fato de a mulher dar à luz é tomado como a matriz das diferenças entre os sexos. Estando impossibilitada de ir à caça e de dedicar-se a trabalhos pesados em razão das limitações físicas e dos cuidados com o bebê, ela foi privada de afirmar-se em relação à natureza, como fizeram os homens. Como a superioridade, explica Beauvoir, é dada não ao sexo que dá à luz, mas ao sexo que mata, a mulher é tomada como o Outro, contra quem os sujeitos masculinos se afirmam (Ibidem: 168).

E diz, também, que o próprio ato sexual condiciona a mulher à submissão, uma vez que ela cumpre, tradicionalmente, um papel passivo, o que, provavelmente, influencia em todos os seus traços, atos, e relações com o mundo. Para terminar, Beauvoir diz que a mulher é uma das principais responsáveis para que essa oposição homem/mulher como servo/submisso se mantenha pelas gerações, já que a ma fé dos outros acaba por não ser suficiente para anular-lhe totalmente a liberdade. Logo, entende-se que a mesma se torna cúmplice de sua situação e responsável por sua “escravização”. Para fugir dessa condição, Beauvoir diz que a mulher deve evitar o casamento e filhos, fugir de seu papel de mãe e de mulher indefesa, assumindo, assim, seu lugar junto aos homens no mundo.

Outra grande ensaísta feminista é a escritora Virgínia Woolf, que centra sua discussão justamente neste campo, ou seja, a mulher como escritora. Segundo ela, o grande erro das escritoras femininas é lançar uma voz ressentida em relação à figura masculina, ou seja, nota-se uma fala carregada de indícios contra o sexo masculino. Sobre isso Zolin diz:

Outro aspecto fundamental da abordagem de Virgínia Woolf acerca do tema “mulher e ficção” está ligado à questão do ressentimento que marca a literatura escrita por mulheres e que, de certa forma, interfere em sua qualidade. Os poemas escritos por mulheres abastadas do século XVII [...] são visivelmente marcados pela amargura, pelo ódio e por ressentimentos em relação aos homens, seres odiados e temidos por deterem o poder de barrar-lhes, entre tantas outras coisas, a liberdade de escrever (Ibidem: 166).

E para “livrar-se” desse ressentimento, a ensaísta diz que a mulher deve pensar na literatura como uma arte, e não como um meio de expressões pessoais dirigidas a outrem. Ela atenta, também, para a necessidade de se pensar em uma mente andrógina, e não separadamente, ou seja, desconstruir a oposição homem/mulher. A partir do momento que se toma essa posição, pode-se ter uma qualidade maior na literatura escrita por mulheres.

Kate Millet, outra das grandes escritoras do feminismo, faz uma outra abordagem dentro dessa crítica. Ela pondera discussões sobre a esteriotipação feminina nas obras literárias. Segundo ela, nas narrativas de autores masculinos, tudo tem uma perspectiva e um direcionamento totalmente masculinos, como se todos os seus leitores também o fossem. Logo, as personagens femininas ficam deixadas em um segundo plano, seguindo paradigmas de estereótipos e papéis. Eis o que diz Zolin:

... as (os) crítica (os) feministas mostram como é recorrente o fato de as obras literárias canônicas representarem a mulher a partir de repetições de estereótipos culturais, como, por exemplo, o da mulher sedutora, perigosa e imoral, o da mulher como megera, o da mulher indefesa e incapaz, e entre outros, o da mulher como anjo capaz de se sacrificar pelos que a cercam. Sendo que à representação da mulher como incapaz e impotente subjaz uma conotação positiva; a independência feminina vislumbrada na megera e na adúltera remete à rejeição feminina (Ibidem: 170).

E para dar exemplos, pode-se enquadrar, segundo as definições dadas acima, algumas das personagens mais importantes das Literaturas Brasileira e Portuguesa. Como mulher sedutora ou perigosa tem-se Capitu (Dom Casmurro) e Lúcia (Lucíola); enquadrando-se como megera tem-se Julia (O Primo Basílio); e como mulher indefesa: Teresa (Amor de Perdição).

Contudo, após essas primeiras abordagens, surgiram outras dentro da crítica feminista. Ao invés de se dedicar às obras escritas por homens, passou-se a focar as obras feitas por mulheres, tentando desconstruir as ideologias das dicotomias de gênero, e, também, enfatizando quatro pontos principais: o biológico, o lingüístico, o psicanalítico e político-cultural.

Em se tratando do primeiro, ou seja, o biológico, critica-se a posição dos homens em relação ao corpo feminino, não sendo “nada mais que um útero”, obrigando a mulher a aceitar sua condição de inferior como uma imposição da natureza. Quanto ao enfoque lingüístico, parte-se do ponto de que existe uma diferença no uso da linguagem entre homens e mulheres, e que o homem tem “aprisionado as mulheres nas armadilhas da verdade masculina”. Então, defende-se a adoção de um tipo de linguagem feminina que seja revolucionária, que pode ir contra o discurso falocêntrico e patriarcal.

Tendo Lacan e Freud como pontos primordiais de suas discussões, o enfoque psicanalítico parte do pressuposto de que há uma aceitação do falo como uma situação privilegiada em relação às mulheres. Sendo assim, tenta-se fazer um estudo psicanalítico sobre a escrita feminina e sua relação com o “ser mulher”, ou seja, sua identidade. Já o enfoque político-social trabalha as mudanças sociais e econômicas, as diferenças entre gênero e classe social, e a experiência literária feminina em relação ao contexto no qual ela se insere, e que, também, vê a situação conjugal da mulher como uma extensão da esfera social. Os quatro pontos citados estão contidos nas duas grandes vertentes da crítica feminista: a anglo-americana e a francesa, que, de um certo modo, as englobam.

A crítica anglo-americana vai ter como principal enfoque a “ginocrítica” que trata da mulher como escritora, tentando identificar um discurso típico da mesma.

A questão essencial, portanto, nessa segunda vertente crítica, não é mais tentar reconciliar pluralismos revisionistas, mas discutir a diferença por meio do estudo da mulher como escritora, privilegiando a história, os estilos, os temas, os gêneros e as estruturas dos escritos de mulheres; a psicodinâmica da criatividade feminina; a trajetória da carreira feminina individual ou coletiva; e a evolução e as leis de uma tradição literária de mulheres (Showalter, apud Bonicci & Zolin, p.172).

Essa vertente, em suma, tenta mostrar que a própria escrita feminina pode vir embutida de elementos enraizados na cultura patriarcal e falocêntrica. A desconstrução dos estereótipos (citados mais acima) é um grande passo para uma literatura feminina mais experimental. E é justamente um novo rumo no direcionamento da escrita de autoria feminina foi o que se viu após a década de 1960 com escritoras como Clarice Lispector, onde se encontra, partindo das experiências femininas, uma angústia, uma sexualidade, e uma mais real identidade feminina, fugindo da tradicional ideologia machista e patriarcal.

A corrente francesa, além de buscar uma linguagem especificamente feminina, detêm-se sobre a tradicional relação dicotômica homem/mulher, enraizada na cultura do ocidente, onde se transfere para a mulher termos de inferioridade:

Para a escritora e crítica literária Hélène Cixous, a oposição homem/mulher (ou macho e fêmea) consiste em um elemento fundamental na cultura ocidental e está presente, subjacentemente, a todos os tipos de oposições que aparentemente não têm relação com ela. Nessa ordem de idéias, o termo “inferior” é sempre associado com o elemento feminino; o termo que ocupa a posição privilegiada, como o masculino trata-se da “solidariedade do logocentrismo ao falocentrismo” (Ibidem: 75).

Pode-se constatar facilmente essa relação a qual Cixous se refere. As línguas ocidentais são dicotômicas, ou seja, sempre se tem um termo oposto para outro. Logo, percebe-se que “claro/escuro”, “bem/mal”, “forte/fraco” são exemplos do referido. Segundo a autora, então, a mulher sempre é relacionada com o oposto, a parte “ruim” da dicotomia, “restando” ao homem ser relacionado ao “topo” dicotômico.

Tendo essa breve noção da crítica feminista e suas abordagens, parte-se, então, para a análise das personagens escolhidas. A Mulher do Médico, de Ensaio Sobre a Cegueira, sacrifica-se, logo no início da obra, em prol do marido. Ela o acompanha até ao manicômio onde os cegos estão sendo alojados, fingindo estar também cega para, assim, estar junto dele. A partir dessa atitude, outros fatos importantes se desencadeiam e tornam sua participação na fábula de extrema importância. A sua imunidade acaba se tornando um peso para ela mesma. Enquanto os outros estão cegos e jogados à barbárie, ela, com os seus olhos abertos, acaba por testemunhar toda a decadência humana, física e moral. No entanto, ela não se entrega, sacrifica-se novamente, desta vez em prol dos cegos de sua camarata: reivindica medicamentos para os feridos, demanda mais comida para a ala que passa fome, dá banho nas outras mulheres e ajuda os feridos.

Sua pureza, ou se preferirmos, sua não altivez, faz com que ela sequer considere a hipótese de tirar proveito da visão intacta, por exemplo, pegando mais comida para si. Ela compartilha os horrores da situação, seguindo com outras mulheres voluntárias até a ala vizinha para servirem, com seus corpos, como moeda de troca por comida para os habitantes da sua ala. E essa “superioridade” que ela tem sobre os outros, ou seja, o fato de enxergar em meio a cegos, ao invés de trazer vantagens, leva-a ao perigo. Após assassinar com uma tesourada o líder da camarata que fazia das mulheres objeto de estupro e/ou prostituição, ela correu o risco de ser entregue por sua própria ala ao covil dos lobos da camarata três. Correu o risco, também, de se tornar escrava dos próprios cegos, guiando-os aos banheiros, lavando suas roupas, etc. Portanto, sua imunidade ao mesmo tempo em que fortalece sua condição de mulher-sujeito, que se coloca como uma líder, também a coloca em perigo.

Sua força de tutora dos cegos leva-a ao encontro do abuso, recordando-nos de uma figura da mitologia celta: o rei casado com a terra, soberano cuja vida seria oferecida em sacrifício na eventualidade de seca e fome. O ditado “em terra de cego, quem tem um olho é rei” é assumido por ela, mas não no sentido que normalmente se imagina: ser rei nesse contexto significa responsabilidade, cumplicidade e sacrifício, em vez de vantagens, imunidade e ócio.

Tentando fazer uma leitura e tentando encaixá-la nos estereótipos femininos encontrados na literatura escrita por homens, ela bem se aproxima daquela cuja função é se anular perante aos outros, sendo pura e compreensiva (mesmo diante da traição do marido com a amiga), já que ela realmente se sacrifica pelos outros. Porém, ela é uma personagem que foge um pouco desses estereótipos. A Mulher do Médico age, faz com que as coisas aconteçam, se fortalece e lidera a todos em meio a uma sociedade patriarcal e imunda. Ela se rebela, enfrenta o perigo ao entrar na camarata dos bandidos para assassinar seu líder. Vê-se que sua imunidade não é a razão que a faz líder, apenas reforça sua liderança dentro do manicômio e fora dele. Desde o início da obra, pode-se perceber sua determinação e convicção, ao se proclamar cega, mesmo não estando, para acompanhar o marido até o manicômio.

Entende-se, por fim, que a Mulher do Médico contém muito dos aspectos que tanto a crítica feminista busca: uma igualdade de papéis entre homem/mulher, uma mulher com características fortes e força de mudança, ser determinada, espirituosa e líder e mesmo assim continuar sendo uma mulher, com todas as suas peculiaridades femininas. É um grande passo para a desconstrução da dicotomia que tanto a crítica feminista luta para desfazer.

Tem-se, agora, a visão focada sobre Blimunda, protagonista de Memorial do Convento. Filha de uma condenada à fogueira, ela conhece Baltazar justamente durante a execução de sua mãe. A sua primeira manifestação de independência ocorre aí: sem conhecê-lo, leva-o para morar consigo.

Nota-se, também, que no casal Baltazar/Blimunda há uma igualdade de papéis. Não há, entre eles, dominador e dominado. Ao contrário, no casal da nobreza, ou seja, na relação entre o Rei e a Rainha, fica evidente a condição da mulher em relação ao patriarca: a soberana serve apenas para a reprodução; em outras palavras, para dar um herdeiro varão ao trono. A esterilidade da soberana pode desgraçá-la, uma vez que transferiria a coroa para um parente próximo do rei. Em meio à nobreza, a relação de poder existente na esfera social se transfere para a esfera matrimonial. Na pobreza, percebe-se, como dito acima, que o casal se coloca no mesmo nível hierárquico: outro ponto importante na leitura de Blimunda. Vê-se que nas classes populares a mulher tem maior liberdade e nem mesmo a virgindade, dentro dessas classes, é considerada um bem tão precioso. Essa liberdade de ação é bem explorada por Saramago em contraposição à mulher anulada socialmente e sem força de ação, ou seja, a Rainha. Enquanto uma leva um homem para morar consigo e estabelece dentro do seu relacionamento uma igualdade hierárquica de papéis, a outra é anulada pelo poder existente dentro do casal nobre.

Por força de sua “estranheza”, ou seja, seu poder de visão (Blimunda podia ver as pessoas por dentro, tanto seu interior físico quanto suas vontades, se estivesse em jejum) ela se torna imprescindível para o vôo da passarola. . Ora, se o vôo pode ser lido, no romance, como metáfora da liberdade, o papel de Blimunda como a única personagem que pode reunir os elementos (vontades) imponderáveis, etéreos, que serão necessários na engenharia renascentista dessa liberdade, ganha um significado inequívoco.

Depois do sumiço de seu companheiro, que fez um vôo com a passarola e nunca mais foi visto, Blimunda peregrina todo o chão de Portugal em busca de seu amado. Procura-o por nove anos, indo de terra em terra, povoado em povoado, cidade em cidade. Tal atitude pode ser considerada, por um lado, como uma atitude de submissão e fidelidade ao seu marido, por outro, pode-se considerar essa posição de Blimunda como força de mulher-sujeito, por ser fiel a si, ao seu amor, aos seus princípios, enfrentando as convenções sociais de sua época, recebendo o rótulo de louca que vem não se sabe de onde e vai não se sabe onde. Chega até mesmo a enfrentar um apedrejamento nessa sua peregrinação. Contudo, ela não esmorece, vai até o fim, e encontra seu amado a arder na fogueira da Santa-Inquisição.

À guisa de conclusão, enfatiza-se o que se pretendia com este breve trabalho: encontrar aspectos desafiadores nas personagens femininas de Saramago em uma sociedade onde o ser masculino dá todas as prerrogativas. Entende-se, então, por hora, que tanto a Mulher do Médico quanto Blimunda fogem dos estereótipos femininos arraigados na Literatura. Em se tratando da primeira, desde o início da obra ela toma sua posição de líder e enfrenta todos os problemas que lhe atravessem o caminho. Quando a situação está se encaminhando para uma dominação total, tanto moral e física, por parte dos bandidos da ala três, ela toma uma decisão: assassinar seu líder. E ela o faz apesar de sua consciência acusá-la de que acabara de matar um homem. Sua não altivez em não se aproveitar de sua imunidade para tornar-se uma tirana também reforça seu caráter. É mulher que atua em meio a uma sociedade onde os homens ditam as regras.

Quanto à Blimunda, seus poderes a fortalecem como mulher que atua, porém, mesmo sem eles, ela continua sendo agente, tomando iniciativas sempre que mudanças sejam necessárias, tomando decisões quando os outros não fazem. Ela também não se submete à dominação masculina e falocêntrica, adota uma postura, juntamente com Baltazar, de igualdade dentro de um “casamento”. Vê-se uma nítida diferença de valores em comparação com o casal da nobreza, em que se tem o Rei como centro e dominador e a Rainha como mero objeto para reprodução e com vontades e papéis praticamente nulos. Em se tratando de Blimunda, sua independência contribui para sua força de ação e realização de suas vontades.

Ambas personagens contribuem, através de suas atitudes, para uma desconstrução dos estereótipos femininos mais conhecidos (a megera, a santa e sedutora/perigosa), contribuindo também para uma desconstrução da ideologia de diferença de gêneros: a dicotomia homem/mulher, em que um sempre é dominante e o outro dominado. É importante, ao fim, frisar que não há um “super-heroísmo” nas mesmas, e nem esse é o norte da crítica feminista. Elas sofrem, passam por tribulações, e são pessoas absolutamente comuns, mas com uma diferença: agem. O que se quer é mostrar mulheres normais que podem, sim, ser ativas, tomarem decisões e ter um nível de igualdade em relação aos homens. Nota-se nas duas personagens que elas dividem os papéis com seus companheiros, tomando decisões, participando ativamente da fábula. É o que se pretendia com esse trabalho.

Referências Bibliográficas:

BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980.

BONICCI, Thomas & ZOLIN, Lucia Osana. Teoria Literária: Abordagens Histórias e Tendências Contemporâneas. Maringá, EDUEM, 2004.

SARAMAGO, José. Ensaio Sobre a Cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

SARAMAGO, José. Memorial do Convento. São Paulo: Círculo do Livro, 1982.

SHOWALTER, E. A Crítica Feminista no Território Selvagem, In: BONICCI, Thomas & ZOLIN, Lucia Osana. Teoria Literária: Abordagens Histórias e Tendências Contemporâneas. Maringá, EDUEM, 2004.