O trabalhador e a crise nossa de cada dia

Lúcio Alves de Barros*

"O Bacha, 20 anos atrás, diz que eu fiz desse país uma Belíndia**. Agora ele vai para o governo e faz desse país uma Ingana, os impostos da Inglaterra e os serviços públicos de Gana" (Delfim Neto, In: Edmar Bacha, 2008, Entrevista ao O Globo).

Já foi o tempo em que os trabalhadores podiam peitar o patrão. Peitar mesmo. Eles começavam quietos, meio apagados, paravam um pouco ali, depois aqui, e diante do “movimento”, logo os supervisores davam o grito para os superiores chamarem as lideranças sindicais para negociação. Tempos bons diriam os remanescentes da esquerda decente. Tempos que se foram diriam os da esquerda indecente. Tempos que mudaram diante das contingências diria um trabalhador mais realista com as metamorfoses que tomaram a economia doméstica e mundial.

No caso do Brasil, a coisa ainda é mais interessante, um ex-líder sindical tornou-se presidente e, paradoxalmente, o país do atraso, da desigualdade social e da miséria manifesta é aplaudido como um emergente no cenário internacional simplesmente porque não andou fazendo o dever de casa. Chega a ser hilária a nossa condição de antes pedinte e agora credor de fundos internacionais, mas também pudera: com os trabalhadores que temos, o salário que pagamos, a taxa de impostos que cobramos e o conformismo da população não há cenário melhor.

A crise financeira pela qual as grandes potências estão passando não é nada para países como o Brasil ou a Índia. Estamos acostumados com crises e, dificilmente, saberíamos viver sem elas. O trabalhador é que não percebe. O próprio IBGE não deixa dúvida: a taxa de desemprego em março foi de 9% e 8,9% em abril, significando nada menos que 2.046 milhões de desempregados somente nas regiões metropolitanas. O Dieese vai mais longe e registra desemprego na casa dos 15%. Na década de 80, a CUT faria um estardalhaço com estes dados e talvez até uma greve geral em algum canto do Brasil. Aos que não têm trabalho ainda acrescentam-se aqueles que estão economicamente ativos, porém na informalidade. Estes, na casa dos 50%, vivem de “bico” ou em atividades temporárias e precárias. É o país da crise. Da crise que sempre vivemos e não da crise financeira que perpassa com força a economia internacional. O trabalhador, não obstante os solavancos nos bancos das agências de desemprego, das filas nas entradas das fábricas, ou mesmo nos escritórios e repartições passa despercebido. É um domesticado no campo laboral. Mudaram muitas coisas é verdade, mas “jamais na história desse país” se viu operários tão autômatos como os de agora. O leitor pode dizer que é o medo do desemprego. Também pode asseverar que é o costume, pois lidamos com “burros de carga”. Todavia, é forçoso mencionar que se trata de um pedaço do Brasil que trabalha decentemente e no momento não deseja fazer nada.

Explico-me melhor, a crise financeira da sociedade do consumo não é a mesma de 1929. A do passado foi de superprodução e esta, além de invisível foi forjada na base de dinheiro virtual, simbólico, existente somente nos computadores e em títulos que não se vê. Nesta crise não há como detectar a mais valia real, perversa e concreta. Tudo é “líquido e se evapora no ar”. É uma mutação do modelo de produção do mercado que ainda necessita do Estado para controlá-lo. Os que pagam as contas são os mesmos. Os trabalhadores que no Brasil saiam às ruas, hoje - acompanhados com novas gerações - olham resignados para a situação do desemprego e da recessão. Amedrontados, docilizados, maltratados eles se empanturram de televisão, engordam seus olhos em um BBB e ainda engolem com suco de uva os escândalos de Brasília. Parece ser fato, mas se o modelo de produção baseado no mercado tem grande capacidade de adaptação não creio que o mesmo pode-se dizer do trabalhador. Alienado ele segue boicotando o companheiro, gosta de ser chamado de “cooperador” e bajula o empregador dando uma de empreendedor. Diante da crise, ele ora para pastores endinheirados e reza deixando uma boa grana para padres que dão espetáculo na Igreja Católica. O trabalhador literalmente, com ou sem crise, perdeu suas origens, não tem mais a clara percepção de suas condições objetivas de vida. É um espantalho, um morto vivo que espera a hora do abate quando chegar aos 40 ou 50 anos.

De todo modo, ainda tivemos sorte. Nosso atraso em vários sentidos ainda nos permite espalhar os trabalhadores em obras públicas, medir a taxa de desemprego somente tendo por base as regiões metropolitanas e encarar com naturalidade o mercado informal e o desempregado. Infelizmente, pouco ou nada sofrem aqueles que detêm o poder econômico e político. A miséria e a pobreza jamais serão democratizadas. O trabalhador brasileiro não está distribuído em classes. A crise, normal em tempos de capitalismo excludente legitima esse cenário: temos um mercado de trabalho dentro de estamentos fechados e não meritocráticos. Hierarquizamos a tal ponto o trabalhador que não é por acaso que os que mais sofrem são os que recebem de 01 a 03 salários mínimos (aproximadamente, 42% da PEA). São estes operários que mudaram de vida. Por enquanto, com o emprego ainda disponível consomem e dormem pensando no próprio umbigo. Aos poucos vão envelhecendo, os filhos também são encaminhados para o mercado de trabalho, os netos aparecem, novas crises se instalam e tudo fica como antes, mesmo que - por infelicidade - eles venham a perder o emprego, ou conseguir mais um, dois, três... Essa é a crise nossa de cada dia.

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* - é professor e sociólogo, mestre em sociologia, doutor em ciências humana pela UFMG.

** - "Belíndia", é uma palavra inventada pelo economista Edmar Bacha, na qual se referia à política econômica de Delfim durante o regime militar. Através de sua fábula ("O economista e o rei da Belíndia, uma fábula para tecnocratas"), ele dizia que o anti-herói Delfim Neto estava criando um país dividido entre os poucos que tinham as condições econômicas da Bélgica e os muitos que carregavam os padrões econômicos da Índia. Acima foi colocada a resposta de Delfim Neto (após 20 anos) quando Edmar Bacha participou do Governo FHC.