A fome e a nossa irracionalidade

Virgílio, do século I a.C., cunhou a expressão “Auri sacra fames” para denunciar a “sagrada fome de ouro”, com o sentido de execrável e inextinguível vontade de acúmulo de riqueza material. Desde então, quando se quer referir ao irrefreável desejo de ganho, esse apetite cego que aniquila o mais comezinho dos valores humanos, exclama-se: “Auri sacra fames!!!”.

Hoje essa máxima vem a calhar. É que num mesmo jornal havia duas notícias. Textualmente, elas não se remetem. Porém, no teor, elas tem tudo a ver. A primeira informava que usineiros de cana-de-açúcar não precisam oferecer alimentação a trabalhadores braçais que produzem álcool, açúcar e biodiesel, mas apenas repassar o recipiente chamado "marmita" a eles. O utensílio deve ser distribuído a quase 500 mil cortadores de cana brasileiros, a maioria em condições subumanas de vida.

Esses exaustos trabalhadores dos canaviais brasileiros não estão sozinhos na dificuldade de conseguir alimento. Ao redor do mundo, e aqui está a segunda notícia, a Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação (FAO) estima que existam aproximadamente 1 bilhão de pessoas famintas. Esse número equivale a um sexto da população mundial e fará parte do mais recente relatório da FAO sobre segurança alimentar.

O intolerável – nessa era de tolerâncias intoleráveis –, é a outra informação que estará nesse relatório da FAO: 2009 é um ano de recordes mundiais na produção de produtos alimentícios, razão pela qual não é a falta de alimento que miserabiliza e mata, mas, sim, a falta de condições equinânimes para a apropriação e o consumo desse tipo necessário de bem material.

A meu ver, motivando os fatos relatados nessas notícias, dadas pela Folha de S. Paulo de hoje, encontra-se a “Auri sacra fames”. Por que? Porque a irracionalidade do sistema capitalista, guiado pelas lógicas do lucro e da acumulação, não combina em nada com um sistema que pudesse ser mais equitativo, justo e igualitário.

A propósito, enquanto vigorou a Guerra Fria, dizia-se que a irracionalidade humana ao produzir o arsenal bélico estava no fato de as nações envolvidas nela terem produzido armas que, juntas, davam para destruir sete vezes o planeta Terra. À época, a pergunta era: onde está a racionalidade em tudo isso, se depois da primeira destruição não haverá nenhum terráqueo para testemunhar e contar como todas as outras destruições aconteceram?

De maneira semelhante, o sistema capitalista permite a um indivíduo que precise de “X” para viver uma vida longa com a própria família chegue a acumular mil vezes “X”, sem levar em conta o fato de que toda riqueza é humana e socialmente produzida. Enquanto isso, mundo afora, e cá entre nós, o número de desnutridos vai aumentando, por não poderem entrar no grupo dos que se alimentam condignamente, mas no daqueles que engordam as estatísticas que matematizam o contingente vexaminoso dos nossos iguais que morrem de fome.

Somos a civilização ocidental, cientificamente crescida, tecnologicamente hercúlea e culturalmente amadurecida, a mesma que, eticamente, agoniza, vitima do próprio pigmeísmo, por isso mesmo depressiva e cultuadora da morte como nunca se viu.