FILOSOFIA É TAREFA DIFÍCIL: uma interpretação da "Alegoria da Caverna" de Platão

FILOSOFIA É TAREFA DIFÍCIL: uma interpretação da “Alegoria da Caverna” de Platão

Ideal, irreal, pólis perfeita, dentre tantos outros adjetivos - é dessa forma que a cidade socrático-platônica perfila-se no horizonte filosófico: qual uma estrela distante.

O filósofo Platão [428?-348 a.C], expressando o seu desencanto, ou melhor, a sua visão e o seu juízo sobre a decadência da pólis grega – no conjunto de sua obra -, constrói, então, o projeto de uma cidade modelo, uma cidade paradigmática, na qual, em especial, toda causa de corrupção estaria fadada à extinção.

Consoante à visão platônica, existe, para além do plano dos fenômenos sensíveis, um outro mundo: uma espécie de “planeta” povoado de realidades constituídas pelos mesmos atributos que existem em nosso exterior ou interior. Estas “realidades” seriam as idéias perfeitas (“eidos”). Elas não representariam, apenas, simples formas abstratas do pensamento, mas seriam realidades objetivas com atributo de eternidade (isto significa realidade para Platão!). Nesse caso, as coisas terrenas não passariam de meras cópias dessas idéias perfeitas. As coisas terrenas seriam cópias impregnadas de imperfeições e, sobretudo, passageiras; elas habitam o “Mundo das Sombras”, em contraponto ao “Mundo Inteligível” ou ao “Mundo das Idéias”, donde procede o foco luminoso e transcendente da idéia do Bem Supremo.

Todavia, caso queiramos bem definir o que caracteriza tal atitude filosófica platônica, os obstáculos multiplicam-se, pois, como pode o perfeito se perfazer no irreal? E como pode o irreal ser perfeito e ideal, isto é, o “Mundo Inteligível” ou o “Mundo das Idéias”? De certo, nos confrontamos com um paradoxo! com uma visão fulgurante! ou com um êxtase místico?!

Com efeito, nada mais que um dos nós do pensamento platônico... Entretanto, as possíveis respostas para tais questões - que geralmente latejam informuladas na esfera da noção comum – devem ser iluminadas por aquilo que se lê, de corpo inteiro, nas páginas de “A República”, a obra que, sem sombra de dúvidas, é a mais representativa de Platão, auxiliando-nos a esclarecer, sobretudo, o que se entende por cidade platônica.

O que significa, exatamente, para Platão, o Estado? O Estado, para Platão, versa, em última instância, sobre a alma do homem. A “Alegoria da Caverna” e, por extensão, toda a filosofia platônica, ambas tomam como ponto de partida o conceito (idéia que expressa a essência das coisas), verdadeiro objeto da filosofia para Sócrates [469-399 a.C], mestre de Platão – cujas lições Platão ouviu por muito tempo, e mais tarde as transcreveu. Entretanto, o Sócrates de Platão (Sócrates nada deixou por escrito), apesar de colocar em ação os princípios paradigmáticos socráticos, divergiu do mestre quando buscou relacionar o conceito com a realidade.

Já foi dito que a máxima confirmação do filósofo é o aluno que se tornou maior do que o mestre – com efeito, sempre que o aluno seja guiado pelo amor ao verdadeiro e ao Bem. Bem a propósito, quanto a Platão pois, diferentemente de Sócrates, que acreditava que o conhecimento intelectivo derivava do mundo sensível mediante o diálogo, isto é, da e pela linguagem, para Platão, o conhecimento intelectivo não poderia derivar do mundo sensível, haja vista o sentidos representarem um obstáculo rumo ao conhecimento da verdadeira realidade. Tal diferença de perspectiva é considerável! pois, Platão, nesse aspecto, ao se opor a Sócrates, contradiz o mestre, porque Platão entende que a linguagem, um dos elementos constitutivos da realidade do mundo sensível, é grávida de enganos, mentiras, ilusões, perigos e outros que tais.

Compreenderemos melhor o alcance dessa diferença ao lançarmos vistas sobre a escritura da célebre “Alegoria da Caverna” - inscrita num dos textos mais famosos de Platão, isto é, o “Livro VII” in “A República”.

Podemos dividir as passagens - quanto à ascese do humano rumo ao conhecimento perfeito - da referida alegoria em quatro episódios:

. Primeiro episódio = como numa morada subterrânea, em forma de caverna, os prisioneiros estão acorrentados, imobilizados, sem poder mover a cabeça; eles apenas observam as sombras das marionetes que desfilam em uma parede. Os prisioneiros as tomam por seres verdadeiros e crêem ouvi-las, quando, na verdade (isto é, na realidade), ouvem as vozes de carregadores ou de titiriteiros.

. Segundo episódio = quando um dos cativos é libertado e obrigado, de súbito, a se erguer, andar e olhar para a luz; deslumbrado pela luz do fogo, ele é forçado a olhar as marionetes, que passam por cima do muro.

. Terceiro episódio = daí o arrastam à força pelo áspero e íngreme aclive, e não o soltam antes de o lançar para a luz do verdadeiro fogo, isto é, o Sol; o cativo é, a princípio, cegado pela luz, tornando-se incapaz de observar o que, agora, são os “seres reais”. Contudo, aos poucos, ele vai se adaptando. Contempla as sombras e os reflexos, depois os próprios seres que projetam essas sombras. Ele se encontra no “Mundo das Idéias”.

Quarto episódio: seu olhar eleva-se em direção ao Sol. Ele conclui que esse é que produz a vida, as estações e os anos, e governa, também, o plano visível, e o último é tudo aquilo que antes via, de algum modo, de maneira distorcida, quando se encontrava sentado lá no fundo da caverna. Desse modo, relembrando da primeira morada e da falsa sabedoria ou não-sabedoria lá existente, além dos companheiros de cárcere, ele se considera feliz pela mudança, porém sente dó dos outros. Assim, ele é forçado a retornar ao fundo da caverna e comunicar aos companheiros a sua descoberta, com a finalidade de livrar das ilusões os que estão acorrentados.

Tarefa difícil! O amor à unidade de Verdade e de Bem. Risco de morte! Não foi isso que aconteceu a Sócrates? Por quê? Porque a filosofia é amor pelo valor supremo, conduzido pela unidade do verdadeiro saber e do bom comportamento do homem. Enfim: a filosofia desmistifica, porque o sujeito (dotado de Razão), pleno de amor ao saber, contrasta com a ignorância, ou melhor, com a cegueira e a ingenuidade da desrazão dos prisioneiros encerrados no fundo da caverna. Desse modo, o antigo prisioneiro, agora tornado filósofo, faz valer (dirigido pela idéia do Verdadeiro e do Bem) a univocidade do discurso racional, para poder espantar-se e confessar o seu próprio espanto: “_NADA SEI!”; despertando assim do seu sono dogmático.

Eis em Sócrates, consoante escritos de Platão, a verdadeira dramatização da ascese do conhecimento. Tal é a dimensão pedagógica da filosofia platônica.

De outra parte, se anteriormente afirmamos que a filosofia é tarefa difícil, objetivando, no momento, contemporizar nossa reflexão, podemos asseverar, em conjunto com a filósofa do cotidiano Agnes Heller, que a filosofia tornou-se tarefa ainda mais difícil no mundo atual, haja vista a filosofia encontrar-se inserida na divisão social do trabalho. Como se isto já não bastasse, um agravante: do ponto de vista de Heller, desafortunadamente, em nossa modernidade, a filosofia, que não é uma profissão, tornou-se uma profissão! Noutras palavras, a objetivação filosófica - ou seja, as perguntas primeiras da autêntica filosofia, tais como: _ Que é isto? _ Como é isto? _ Por que deve ser assim? - eclipsou-se diante do caráter de “profissão” que adquiriu o autêntico ato do filosofar, em última instância, do pensar. Daqui, segue abaixo, em palavras textuais, a lúcida reflexão da filósofa húngara Agnes Heller sobre o exílio imposto ao legítimo filósofo moderno, porque dissociado de sua verdadeira tarefa:

“Com poucas exceções, o filósofo hoje só pode ser ‘mestre’ se é ‘professor’. E, enquanto tal, tem de se adaptar às exigências da divisão do trabalho encarnada na instituição, bem como às expectativas da ‘corporação profissional’. A sua tarefa filosófica consiste em formar a capacidade de sentir espanto, de desenvolver automaticamente o pensamento; consiste em provocar a ‘elevação’, no compromisso irônico com o ‘não sei nada’. Por outro lado, essa tarefa contrasta com a instância ‘profissional’ de ampliar o ‘saber positivo’ [isto é, técnico], exigência inteiramente incompatível com o irônico ponto de partida representado pelo ‘não sei nada’ (...).”

Entretanto, uma saída na trilha do pensamento de Heller:

“O que é difícil não é, contudo, impossível. Dever do filósofo (...) é viver segundo a sua filosofia; ele deve assumir o risco do conflito com a ‘profissão’, com a divisão do trabalho que priva a filosofia de sua eficácia, de sua função específica, de seu caráter democrático (...) Quem teme esse conflito melhor se escolhesse ser sapateiro.”

Após tais considerações, reflitamos sobre a questão formulada pela professora Marilena Chauí: a filosofia representa risco de morte?

Desafortunadamente, podemos afirmar: _ SIM ! pois o perigo existe e é permanente.

A “Alegoria da Caverna” ou o “Livro VII” d’ “A República”, de Platão, possui múltiplas dimensões; além da forte conotação pedagógica que nele perpassa, além de em toda “A República” (o título é enganador, pois o referido texto é mais um tratado sobre a educação do que propriamente um tratado político), a “Alegoria...” também pode ser apreciada como uma ascese religiosa, ou um tratado filosófico, científico ou político que, consoante o contexto de “A República”, certamente não permite que tais considerações venhamos a negligenciar.

Nesse sentido, aquele que se liberta do fundo da caverna, isto é, das ilusões, conhece a “Idéia Suprema do Bem”), elevando-se à visão da autêntica realidade, e é, por fim, o rei-filósofo que pode e que deve governar a pólis ideal, com a finalidade de libertar os outros prisioneiros das trevas ou da caverna. É nesse sentido que o Estado, em Platão, versa, em última análise, sobre a alma do homem, como já afirmamos anteriormente. Primeiro: porque existe a possibilidade de sair da prisão. Segundo: porque todo o vigor da “Alegoria da Caverna” está justamente em mostrar que se trata de uma mudança essencial na vida humana. Ocorre, na verdade, uma transfiguração da própria alma, pois o contato efetivo com a “Idéia do Bem” é fonte de possibilidade de “alétheia”, isto é, de desvelamento. Nas palavras de Platão:

“(...) quanto à subida ao mundo superior e à visão do que lá se encontra, se a tomares como a ascensão da alma ao mundo inteligível, não iludirás a minha expectativa, já que é teu desejo conhecê-la (...). Pois, segundo entendo, no limite do cognoscível é que se avista, a custo, a idéia do Bem; e, uma vez avistada, compreende-se que ela é para todos a causa de quanto há de justo e belo; (...) e que é preciso vê-la para ser sensato na vida particular e pública (...).

Em contrapartida, claro está que “a novidade” em Platão pretendia eliminar uma tradição anterior, ou os “males do passado” (expulsão dos poetas) e do presente (expulsão, sobretudo dos sofistas) da pólis ideal. E pretendia fazê-lo por intermédio de uma arte de ensinar constituída, nas palavras do historiador da filosofia Châtelet, por “disciplinas despertadoras”, as quais permitissem ao futuro governante, isto é, o rei-filósofo, “praticar o inteligível”. Platão busca a sistematização dos saberes (na verdade, a “Alegoria da Caverna” trata-se do primeiro registro de confecção de um currículo de disciplinas, no mundo ocidental. Antes disso, ou de Platão, os saberes encontravam-se diluídos tanto na mitologia quanto na filosofia) para formar aqueles que querem sair da caverna. Daí a importância da aritmética, da geometria, da astronomia, da música, dentre outros saberes, até que se alcance o “último saber” do currículo platônico, isto é, a dialética (na definição socrático-platônica = a arte do discurso e do diálogo); o referido saber auxilia os indivíduos a elevarem-se dos conhecimentos sensíveis (inscritos no mundo da caverna ou no mundo das ilusões ou no mundo das “doxas”, isto é, das meras opiniões) aos conhecimentos inteligíveis (inscritos no “Mundo Perfeito” ou no “Mundo Inteligível” ou no “Mundo das Idéias”) - alcançáveis pela atividade da contemplação, isto é, do pensamento. Nesse caso, a dialética socrático-platõnica auxilia o espírito a odiar a mentira e o erro. Assim, consoante tal verdade, perigo de morte! numa pólis regida por cidadãos corruptos.

Por fim, a pedagogia, segundo Platão, seria esse lado da filosofia, ou consoante as palavras da professora Marilena Chauí:

“Pedagogia e filosofia, destinadas a liberar o espírito das sombras da caverna, pô-lo em contato com a luz fulgurante do Bem, do belo. Ensinar era dividir a palavra-diálogo com aqueles que já sabem, embora ainda não o saibam...”,

porque o verdadeiro conhecimento é uma reminiscência – a alma racional é livre. Em punição por algum delito, contudo, guarda a lembrança (reminiscências) das idéias contempladas na encarnação anterior (conceito de metempsicose em Platão!) e que, pela percepção, faz voltar à memória. Isto esclarece a maiêutica (parto das idéias) socrática.

Depois de tudo isso, esses homens perfeitos estão prontos para assumir as funções mais elevadas da vida pública. São, afinal, os reis-filósofos, que irão governar a pólis ideal, libertando a espécie humana de toda corrupção. Assim, o Estado Ideal de Platão deve ser entregue aos filósofos.

BIBLIOGRAFIA

BRANDÃO, Carlos R. (et al) “O Educador: Vida e Morte”. 8 ed. Graal: Rio de Janeiro, 1988.*

CHÂTELET, François. “A Filosofia Pagã” .Tradução José A.Furtado. Rio de Janeiro: Zahar, 1973.

CHAUÍ, Marilena. “O Educador: Vida e Morte”. In BRANDÃO, Carlos R. (et al) (vide acima*).

HELLER, Agnes. “A Filosofia Radical”. Tradução Carlos Nelson Coutinho. São Paulo: Brasiliense, 1983.

NOVAES, Adauto (et al) “O Olhar”. São Paulo: Cia das Letras, 1988.

PLATÃO. “A República”. 5 ed. Tradução Maria Helena da R. Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbekian, 1987.

PROF. DR. SÍLVIO MEDEIROS

Campinas, é outono de 2006