O que significa patrimônio?

A forma como se percebe o espaço é única, pode-se pensar por exemplo num homem na praia, uma praia paradisíaca, com areias brancas, céu azul com poucas nuvens, a praia é circundada por coqueiros e o mar é calmo e de águas límpidas e quentes, ao fundo próximo aos coqueiros uma casa simples, praticamente uma cabana com um pequeno quintal e crianças brincando, ou seja, bem próximo da idéia ocidental de paraíso, agora posso imaginar que essa paisagem é observada por três observadores distintos, em um mesmo dia, de um mesmo ponto de observação, o que eles veriam seria a mesma paisagem ou não?

Imaginemos o primeiro observador como um pescador que nasceu e cresceu naquela praia, o pescador estaria olhando para uma paisagem familiar e cotidiana, ao olhar o mar ele veria mais que um exemplo de beleza refletido, mas o local de trabalho, local onde ele se arrisca em busca de sustento para os seus, ao olhar a casa simples ele reconheceria seus filhos a brincar e sua casa, local sagrado para os homens, onde ele busca abrigo e proteção, essa paisagem seria carregada de símbolos para esse pescador, lembranças, memórias boas e ruins, aquele seria o seu lugar, ele olharia em volta e se reconheceria em diversos pontos, com categorias muito bem definidas, ele sentiria, provavelmente, que pertence àquele espaço.

O segundo observador é um antropólogo que chega à casa do pescador e se depara com um objeto de estudo, uma casa a beira mar, construída segundo padrões culturais bem definidos, com uma divisão interna que tem sua razão de ser, ao olhar o mar o antropólogo provavelmente veria como pertencente ao universo do pescador, como local onde o pescador realiza rituais ligados à sua fé, como flores para a rainha do mar ou coisas deste tipo, ao olhar para as crianças brincado ele veria que elas se ocupam de um jogo que tem décadas de história e sempre foi ensinado às crianças daquela localidade, enfim o antropólogo veria uma situação de estudo e diversos patrimônios culturais a serem preservados, inclusive patrimônio materiais como a casa e seus arredores, sua percepção desse espaço seria dada por anos de estudo e trabalho de campo que moldaram um observador atento para perceber as nuances presentes nessa cena paradisíaca.

Como terceiro observador pode-se imaginar um homem de negócios, um capitalista do setor hoteleiro, com intenção de construir um empreendimento turístico na região, um grande hotel com quartos e completa infra-estrutura para lazer e deleite dos hóspedes, ao olhar para o mar o homem de negócios veria um atrativo natural a ser explorado, talvez pensasse na construção de um ancoradouro, ou a implantação de um restaurante a beira mar, ao olhar para a casa do pescador ele pensaria que ali é um bom local para uma piscina e a casa do pescador seria um obstáculo a ser removido, as crianças brincando talvez nem despertasse a atenção de nosso investidor, mas se ele os visse o que passaria na sua cabeça seria o que fazer com esses pescadores.

Assim descrevendo de forma rápida as cenas me parecem verossímeis e chama a atenção o fato de que cada um dos observadores tem categorias próprias de análise desse espaço, categorias essas carregadas em simbolismos, cada um dos observadores têm uma percepção completamente diferente do espaço que observam, simplesmente porque para cada um deles o espaço é visto sob suas própria idéia de espaço, ou aquilo que cada um tem na cabeça do que seria aquele determinado espaço.

Essa percepção diferenciada deste espaço é inerente ao ser humano, pode-se ficar por horas a imaginar vários outros tipos de pessoas a olhar esse mesmo espaço e cada um deles terá uma percepção diferente dessa paisagem, todos veriam essa paisagem sob um olhar construído a partir de sua noção de mundo, sob suas convicções e crenças, um religioso veria um presente de Deus, um ateu veria uma bela praia e assim por diante.

Mas qualquer pessoa que passar por ali irá ter uma percepção dos símbolos contidos naquele espaço, ainda que completamente diferentes entre si.

Outra discussão seria a de que baseado no que cada um dos três observadores pode ver pode-se pensar que os três imaginam prognósticos completamente diferentes para a região. O pescador provavelmente imagina que aquilo ficará daquela mesma forma eternamente, pois é assim desde o tempo de seus avós, e ele não tem a intenção de modificar nada, o antropólogo veria uma situação que precisa ser preservada e veria um futuro de exploração turística desenfreada com pessoas chegando aos montes trazendo violência e mudanças, determinado o fim de vários patrimônios materiais por depredação e o fim dos costumes tradicionais pelo contato com culturas diferentes, já o homem de negócios veria um futuro promissor com muita receita advinda da exploração do local, com hotéis, estradas, restaurantes e a população local trabalhando como mão de obra desqualificada no empreendimento.

A própria existência de tal análise já faz parte de uma categorização, pois o pescador é calmo e conformado, o antropólogo é um estudioso preocupado e o capitalista um demônio mal e destruidor pois essas são categorias construídas por mim, baseadas na minha percepção das pessoas em função simplesmente da profissão que exercem, ou seja, a partir de preconceitos.

Ainda que deixe de lado o preconceito e as observações acima representem a verdade será possível à determinação de qual visão das três apresentadas é a mais correta, ou a melhor? Impossível que possa se determinar à visão que representa a mais correta, pois ela simplesmente não existe, temos sim um emaranhado de relações entre pessoas e conceitos que coexistem em harmonia ou não, baseados em categorizações e percepções que são fruto de interações sociais existentes e que fazem parte de todos nós, até no sentido de qualquer análise seria a partir de determinados interesses, ou será possível que uma pessoa possa analisar esse ou qualquer outro fato a partir de uma visão completamente desinteressada? Acho que não temos essa capacidade, os homens sempre têm algo a os motivar, ainda que inconscientemente.

Esse talvez seja o maior problema da gestão do patrimônio, a partir do momento que nomeamos algo baseado pura e simplesmente no poder que nos é dado para nomear algo como patrimônio passamos a nos preocupar com sua preservação , mais esse patrimônio é meu, é baseado em categorias aceitas no espaço que ele se insere, ou não? E ainda que consigamos uma unanimidade de nomear algo como patrimônio, a forma de gestão proposta é aquela que a comunidade espera ou aceita, ou é a correta, ou é ao menos plausível? Sob o ponto de vista de quem? Sob quais interesses?

Não posso deixar de pensar em como preservar o patrimônio, se simplesmente não é possível determinar que significa esse patrimônio e para quem ele significa o que, o problema de gerir algo como o patrimônio vai muito mais além de simples técnicas de gestão empresarial ou simplesmente a adoção de técnicas adequadas de conservação e manutenção, mas passa pela discussão do que significa patrimônio?

Cristiano Leão
Enviado por Cristiano Leão em 13/05/2005
Código do texto: T16647