INDISCIPLINA, AFETIVIDADE E DESENVOLVIMENTO

Educadores sempre estão às voltas com o problema da indisciplina. Na verdade, em meio aos materiais pedagógicos, planejamentos e currículos, manter a disciplina na escola é um tema que toma grande parte da atenção e do tempo de todos os que estão envolvidos com a realidade escolar.

A maneira como se lida com o assunto reflete o caráter ideológico adotado por determinada unidade ou sistema de ensino, demonstrando as possibilidades articuladas de se lidar com questões como autoridade, liberdade e política. Para muitos, a escola representa o primeiro contato real com a poda da liberdade. O confronto direto com uma autoridade fria e desconhecida, da qual não se sabe às vezes nem o nome, mas que somos forçados a obedecer. Nestes moldes, a indisciplina passa a ser o produto natural da escola.

O ser humano tem, em si, a natureza rebelde. Não se contenta com a não-resposta, com o absoluto, por muito tempo. Somos uma classe de seres vivos que pensa e repensa. Que para e reflete se as coisas deveriam ser assim. Por isso o ser humano se rebela. É da sua natureza.

A criança que, por sua vez, ainda não está totalmente “enquadrada” ao cabresto social, chega na escola e percebe que “a festa acabou”. Ainda tenta estabelecer algum contato íntimo, como na educação infantil onde as “tias” têm um especial valor afetivo para as crianças, enquanto regras de conduta e convívio social vão aos poucos sendo apresentadas a elas. O que não acontece nos anos subseqüentes, onde a professora deixa de ser a “tia” para representar a autoridade constituída, a figura do poder.

Os anos em que a criança reinou absoluta como dona de sua vontade, ou pelo menos via na figura da autoridade um vínculo afetivo que a confortava, agora foram substituídos por uma outra realidade, difícil de aceitar. Precisa reconhecer a autoridade constituída. Uma pessoa desconhecida que, de uma hora para outra, tem o poder de decisão sobre ela. Cena que, ao longo de sua vida, repetir-se-á inúmeras vezes. E por ser uma nova realidade, desconhecida, a criança protesta. E segue protestando enquanto sua vontade de liberdade e desenvolvimento não se vir em conformidade com o que a escola tem a oferecer. Ou até o sistema a dominar, o que de mais triste pode acontecer à inteligência pura de uma criança.

Ao entrar na escola, a criança está não só começando a conhecer o ensino sistematizado, como sendo preparada para viver “pacificamente” na sociedade em que vive. Aquela que logo se adequa – ou seja, é obediente, serena, facilmente moldável, e responde ao planejamento de aula como previsto – é rapidamente classificada como “bom aluno”. No entanto, aquela que resiste ao “fórceps social da escola”, que briga, que não fica na fila, não senta onde a mandam, não responde aos questionários e tem respostas na ponta da língua nem sempre tão ortodoxas assim, é catalogada como “aluno-problema”. Para ser um bom aluno é preciso atender à demanda. É necessário encaixar-se perfeitamente no tipo de inteligência esperada pela escola, embora já há muito saibamos sobre as inteligências múltiplas, lembrando Gardner. Mas a escola impunemente finge não saber.

Quanto mais limitadas as possibilidades de desenvolvimento dos diversos tipos de inteligência, maior o problema da indisciplina, maior a repressão para controlar esta indisciplina, e menos se aprende, menos se desenvolve, menos se deseja estar na escola. Classificam-se como bons apenas aqueles que se encaixarem no perfil apertado que a escola traçou como ideal. A escola torna-se então um lugar de massificação, de estuporação de ideias, onde quem não se sobressai luta para sobreviver na linha da mediocridade (o conhecido “se der pra passar ta bom”).

Como, na maior parte dos casos, o aluno não tem como se defender e nem
expressar o que sente, lutará pelo viés da indisciplina, da contestação gratuita, da fuga, da evasão. Porque ele não sabe dizer, mas sabe sentir. Sabe que queria outra coisa ao invés de estar ali. Sabe que não reconhece a autoridade daqueles que estão a determinar as coisas. Se tem dificuldades com este ou aquele conteúdo, fica para trás, é tachado e classificado, enquanto outras possibilidades de crescimento e desenvolvimento estão presas dentro dele. Será a música? Será o esporte, será a liderança? Será a oratória, porque não? E tudo vai ficar guardado, cristalizado, enquanto a criança vai aos poucos, acreditando ser incapaz, ser medíocre, em meio às produções de texto e fórmulas matemáticas. O que a escola oferece é muito pouco. É ínfimo, frente às reais possibilidades de uma criança.

A criança não reconhece ainda o poder pelo poder, pois está acostumada a trocar a obediência pelo afeto, pela satisfação de suas necessidades, desde que nasceu. Agora precisa se render. Precisa produzir, simplesmente porque precisa, porque esperam dela. E tem que dar bons resultados em áreas que não foi ela quem escolheu, diferente de tudo o que viveu até então.

Em casa ou na pré-escola, qualquer coisa de bom que fizesse era recebido com alegria e mais estímulo. Na educação infantil, todas as áreas eram estimuladas ao mesmo tempo, e se não se sobressaía em uma, certamente compensava-se em outra, salvaguardando assim sua autoestima e sua vontade de contribuir. Ao chegar no ensino fundamental, apenas o modelo que a escola pedir  serve. Até em casa o esperado é que se cumpra o modelo da escola. E se não consegue, é reprovado. Este círculo vicioso gerador de indisciplina, se não contornado através de um sistema de ensino que proporcione o pleno desenvolvimento da criança, tende a repetir-se, gerando conflitos ao longo de toda a jornada escolar. O aluno protesta porque não queria estar ali. Não obedece porque a autoridade que se apresenta diante dele não representa afetivamente autoridade nenhuma. É “à fórceps”.Não é natural. Não se interessa porque o que lhe ensinam não é o que queria aprender. A escola torna-se, paradoxalmente, a prisão da inteligência da criança, de sua capacidade de julgamento, de criticidade, de percepção e avaliação social.

Quando são ampliadas as possibilidades de desenvolvimento dos muitos tipos de aptidões e inteligências humanas dentro de um mesmo espaço, como música, desenho, teatro, situações de liderança, esportes, línguas, artes em geral, o aluno se desenvolve não só numa área específica, mas em todas. Porque em alguma delas, certamente, ele será bom, e receberá aceitação e estímulo, facilitando seu empenho nas outras em que será apenas regular.

Muitas vezes mal interpretado pelos próprios educadores por sua obra “Professora Sim, Tia Não”, o mestre Paulo Freire foi um defensor da afetividade no processo ensino-aprendizagem, do respeito mútuo, da liberdade de pensamento e expressão deste pensamento em todas as esferas. A autoridade revestida de afetividade não necessita ser forçada. Ela flui naturalmente e contribui para o progresso e desenvolvimento de todos. No entanto, a autoridade por si só, que tiranamente é imposta dentro da escola, aos moldes do que a criança encontrará adiante na vida, só mesmo poderá formar cidadãos de cabeça baixa e assim reproduzir o sistema.
 
Portanto estão aí delineadas duas soluções conjuntas para o problema da indisciplina: oferta maior por parte da escola, para que o aluno tenha o desejo de estar ali, descobrindo e desenvolvendo suas habilidades e talentos; a afetividade como formadora de uma autoridade natural e não imposta. Esta autoridade não é a que forçará os indivíduos a produzir e seguir aquilo que não lhes dá prazer, mas aquela que orientará suas escolhas, iluminará o caminho na direção do pleno desenvolvimento de suas potencialidades individuais. Para isso, uma Pedagogia cuidadosamente delineada e professores bem orientados e motivados, assim como políticas públicas que sustentem esta linha pedagógica.

Com certeza os professores que com mais apreço e respeito guardamos na memória são justamente aqueles que respeitaram nossa individualidade, que mostraram um caminho para o desenvolvimento, que acreditaram em nosso talento, que corrigiram a contento nossas falhas. Sim, por estes, sem reclamar eu ocupo pacificamente meu lugar na fila e abaixo a voz.