AFINAL, QUEM FOI TIRADENTES?

Considerado pela Coroa Portuguesa como o cabeça da conjuração Mineira, morto por enforcamento, Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes, tornou-se herói nacional e uma das figuras mais polêmicas da nossa história. Muito tem-se falado dele, mas sabe-se pouco de sua vida. O que conhecemos dele encontra-se nos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira (Publicado pela Imprensa Oficial, Belo Horizonte,1982) em alguns documentos. Portanto, para compreendermos quem foi Tiradentes e buscarmos algumas pistas de seu papel na Inconfidência Mineira, é necessário analisarmos os Autos como fonte e documentação históricas. Montados pelas autoridades portuguesas, eles representam o poder da época construindo fatos, escolhendo seus personagens e suas vítimas e mesmo protegendo determinadas figuras quando isso convinha. Devemos trabalhar com os Autos, não esquecendo que os presos encontravam-se incomunicáveis, sujeitos a toda forma de pressões psicológicas e torturas. Vejamos, então, como Tiradentes surge nos Autos, através de seus próprios depoimentos e de seus companheiros de conjuração. Nas suas três primeiras inquirições ele tanto nega o movimento como sua participação. Perguntado sobre o levante responde: "... que tal não há, que tudo é uma quimera, que ele não é pessoa, que tenha figura, nem valimento, nem riqueza, para poder persuadir um povo tão grande a semelhança asneira". (Autos, v.9, p.254) Assim, ele negou até a quarta inquirição quando, repentinamente e sem uma explicação plausível, confessa ser o cabeça da conjuração, assumindo toda a responsabilidade pela tentativa de levante em Minas Gerais. Foi a partir desta resposta que grande parte dos historiadores começam a forjar sua trajetória de herói: "...que ele até agora negou por querer encobrir a sua culpa, e não querer perder ninguém; porém que a vista das fortíssimas instâncias com que se vê atacado, e a que não pode responder corretamente senão faltando clara, e conhecidamente à verdade, se resolve a dizê-la, como ela é: que é verdade, que se premeditava o levante, que ele ... confessa ter sido quem ideou tudo, sem que nenhuma outra pessoa o movesse, nem lhe inspirasse coisa alguma, e que tendo projetado o dito levante, o que fizera desesperado, por ter sido preterido quatro vezes, parecendo a ele ..., que tinha sido muito exato no serviço, e que achando-o para as diligências mais arriscadas, para as promoções e aumento de postos achavam os outros, que só podiam campar por mais bonitos, ou por terem comadres ...". (Autos, v.5, p.36)

Entretanto, a sua participação surge em quase todos os interrogatórios dos demais envolvidos. A maioria revela um Tiradentes louco, falastrão, leviano, uma pessoa sem maior importância e caráter. O Coronel Alvarenga Peixoto afirma que o tenente-coronel Freire de Andrada, comandante da Tropa Paga de Minas Gerais, e também conspirador, insistia para que o ouvisse, pois: "fazia gosto que ouvisse ao dito Alferes Joaquim José, só por ver quanto inflamado na matéria, que chegava a chorar...". (Autos, v.5, p.116)

O próprio Padre Rolim fala de um outro Tiradentes, muito diferente do suposto "herói" de que nos dá notícia Alvarenga: "... porém como o mesmo alferes disse a ele ..., em outra ocasião, que a alguns dizia que entravam várias pessoas a que ele não tinha falado nem sabia que entrassem, por isso ficou na dúvida, e ainda hoje está nela, de que o dito Desembargador entrasse ...". (Autos, v.5, p.348)

São duas narrativas de frades franciscanos que testemunharam os momentos derradeiros dos inconfidentes: "Últimos momentos dos Inconfidentes de 1789, pelo frade que os assistiu em confissão", de Frei Raimundo da Anunciação Penaforte, que, na província franciscana da Repartição Sul, ocupava o cargo de Custódio da Mesa, de 1792 e "Memórias do êxito que teve a Assim, Tiradentes torna-se modelo de cristão, generoso, arrependido, castigado, mas preparado para bem morrer. Segundo Frei Desterro, Tiradentes recebeu sereno e convencido da gravidade de seus pecados a sentença de condenação. Após a leitura do Decreto Régio, sua reação foi de alegria pelos outros réus que receberam o perdão real, e pouco trabalho tiveram seus confessores em seu consolo, pois já estava "humilhado e contrito, exercitando-se em muitos atos das principais virtudes" (Autos, v.9, p.108)

Descreve sua caminhada para a forca, como se fosse o próprio Cristo: beija os pés e perdoa o carrasco; recebe a alva, despe a camisa e fala: "Nosso Senhor morreu nu por meus pecados ..."; caminha com o crucifixo na mão, certo de "oferecer a morte como sacrifício a Deus". (Autos, v.9, p.108)

Também Frei Raimundo Penaforte relata os momentos derradeiros de Tiradentes, descrevendo a cena com o carrasco e a preparação para a execução, traçando, também, seu perfil cristão: "Ligeiramente subiu os degraus; e sem levantar os olhos que sempre conservou pregados no crucifixo, sem estremecimento algum, deu lugar ao carrasco para preparar o que era necessário; e, por três vezes, pediu-lhe para abreviar a execução" (Autos. v.9, p.174)

Assim, os frades franciscanos nos legaram um Tiradentes arrependido de seus pecados e culpa, uma imagem idealizada segundo os princípios cristãos.

Na vida ou na morte, Tiradentes não foi bem acolhido por Joaquim Norberto. Porém, delineia-se em sua obra o mesmo comportamento sereno e cristão traçado pelos frades franciscanos: "dirigiu como um mártir cristão brandas palavras repassadas em unção e de amor ao próximo ao padre que confortava dizendo que morria cheio de prazer". (SILVA, v.2, p.203)

A sua imagem é propagada, permanecendo o homem cristão resignado e convicto da vida eterna.