UMA ANÁLISE DISCURSIVA DA CANÇÃO "QUEM TE VIU, QUEM TE VÊ" DE CHICO BUARQUE

O trabalho a seguir trata-se de uma análise da narrativa “Quem te viu, quem te vê”, do escritor, cantor e compositor carioca Chico Buarque de Hollanda, e tem como objetivo encontrar a estrutura da mesma, usando como fundamentação teórica a Análise do Discurso.

Com base nessa fundamentação, começaremos o trabalho encontrando o ponto mais abstrato que é a oposiçõe de base, ou timias. A partir daí passaremos aos Programas Narrativos, onde teremos os actantes, ou sujeitos, divididos em Sujeito de Fazer, aquele que vai usar de manipulação para transformar o outro sujeito, Sujeito de Estado, em conjunção ou disjunção com o Objeto de Valor.

Após o PN (Programa Narrativo) passaremos ao Percurso Narrativo, que é uma sequência de PNs, onde está contido um encadeamento lógico de um programa de competência com um programa de perfórmance, ou seja, é o momento da narrativa que o sujeito de estado adquire competência para realizar, ou não, a perfórmance.

Por último, teremos a Sintaxe e a Semântica Discursivas. Neste momento do trabalho serão definidos o tipo de enunciação da narrativa (desembreagem enunciativa ou desembreagem enunciva) e qual o procedimento semântico do discurso, se se trata de tematização, formulação dos valores de modo abstrato, ou figurativização, atribuição de traços de revestimento sensorial aos percursos temáticos.

Timia: SEPARAÇÃO x VOLTA

Separação ----- Não-Separação ----- Volta

(Euforia) ----- (Não-Euforia) ----- (Disforia)

S1= Sujeito do Fazer = Homem (e escola de samba)

S2 = Sujeito de Estado = Mulher

Ov = Volta (do relacionamento)

E. E – F (Junção)

--- S2 U Ov = Mulher U Volta

A mulher encontra-se em disjunção com o Objeto de Valor (Ov) que é a volta do relacionamento, e em conjunção com a Separação, sendo assim a separação um estado de euforia e a volta (união) um estado de disforia.

Pode-se notar demonstrações da separação e do afastamento dela para com ele nesta parte: “Hoje a gente anda distante do calor do seu gingado/ você só dá chá dançante onde eu não sou convidado”. O fato deles “hoje andarem distante” implica que antes tiveram uma relação que não existe mais e o fato dela só “dançar onde ele não é convidado” deixa claro que essa relação foi extinta por ela, e que, se dependesse do desejo dele, ambos ainda estariam juntos, o que caracteriza a euforia dela em relação a separação e a disforia em relação a volta.

No trecho “Hoje de teimoso eu passo bem em frente ao seu portão / pra lembrar que sobra espaço no barraco e no cordão” fica bem claro a insistência dele em voltar para ela. O uso da palavra teimoso pressupõe que ele já tentou outras vezes esta volta e que a resposta dela sempre foi a negativa, mas que mesmo assim ele permanece lembrando-a que caso ela queira voltar, há espaço não só na vida dele (barraco), mas na escola de samba (cordão), que os dois frequentavam juntos, também.

E. F – F (Transformação)

O homem (Sujeito do Fazer = S1) vai tentar transformar a mulher (Sujeito do Estado = S2) em conjunção com a volta (Objeto de Valor), ou seja, ele vai tentar fazê-la voltar para ele e para a escola de samba.

Isso pode ser exemplificado no seguinte trecho da narrativa: “Hoje o samba saiu lá lalaiá, procurando você”, onde o desejo de ainda tê-la é apresentado quando ele diz que o samba saiu à procura dela, esse samba é que o sentimento dele por sua amada, feito em forma de música. Outro exemplo do anseio de uma volta por parte dele se dá no seguinte fragmento: “O meu samba assim marcava na cadência os seus passos”, explica uma dependência dele em relação a ela, uma vez que cadência significa regularidade de movimentos ou de sons, e essa regularidade de movimentos do samba (amor) dele era marcado (guiado) através dos passos dela.

Destinador – Manipulador

S1 regendo S2

Sedução

O homem tenta manipular a mulher a voltar para ele e faz isso através da sedução, lembrando-a dos momentos em que viveram juntos.

Essa manipulação fica explícita em toda a narrativa, onde o homem se remete sempre a lembranças de momentos vividos entre os dois como forma de tê-la de volta. A relação que existia entre os dois, o forte sentimento que ele ainda nutre por ela e o desejo dele de voltar a ter essa relação continua sendo demonstrado no decorrer da canção, como na seguinte parte: “O meu sonho se embalava no carinho dos seus braços/ hoje de teimoso eu passo bem em frente ao seu portão/ pra lembrar que sobra espaço no barraco e no cordão”. O homem (S1) deixa claro sua insistência em lembrá-la, como forma de manipulação, que ele ainda a ama e que ainda a quer de volta. E é por isso que a maioria da narrativa está no passado, porque ele sempre recorre a este (passado) a fim de fazê-la lembrar o que viveram juntos, para assim tentar convencê-la a voltar a ter não só o relacionamento, mas a vida que ela tinha antes.

SUJEITO

Competência

Doação (aquisição)

Querer fazer

O homem doa à mulher seu amor e suas lembranças, em forma de elogio, como meio de tê-la de volta, e a partir daí, cabe a ela querer ou não voltar a ter um relacionamento com ele.

A doação dessas lembranças é feita ao longo de toda a narrativa:

“Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala / você era a favorita onde eu era mestre-sala / quando o samba começava você era a mais brilhante / todo ano eu lhe fazia uma cabrocha de alta classe/ de dourado eu lhe vestia pra que o povo admirasse / suas noites são de gala / quem brincava de princesa acostumou na fantasia”.

Performance

S1 = S2

Não querer fazer

Performance não realizada

Neste momento, o S1 (Sujeito do Fazer) é igual ao S2 (Sujeito do Estado), por que agora cabe à mulher querer ou não realizar a performance (voltar o relacionamento), e como ela não quer voltar para ele, visto que a separação se deu por conta dela e não dele, a performance não é realizada.

Esta não realização é exemplificada, na narrativa, através do uso do verbo no presente e do advérbio de tempo hoje: “Hoje a gente nem se fala, mas a festa continua / Hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria / Quero que você me assista na mais fina companhia”, o que indica que mesmo com tudo que o homem fez para tê-la de volta, a mulher não quis voltar a ter um relacionamento com ele e nem a vida que tinha antes. Isto caracteriza a não realização da perfórmance e a permanência da mulher em conjunção com a separação e em disjunção com o Objeto de valor volta.

DESTINADOR – JULGADOR

Interpretação

S2 U Ov

O homem (S1) não conseguiu transformar a mulher (S2) em conjunção com a volta (Objeto de Valor), o que implica dizer que a mesma permanece disfórica em relação à volta e eufórica em relação à separação.

Chegando ao final da narrativa fica claro que mesmo depois de tudo que ele fez para tê-la de volta, ela não quis voltar para ele, mantendo assim a separação: “Hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria”, neste trecho pode-se perceber que a separação ainda continua, já que eles vão estar em lugares diferentes durante o carnaval, ele na pista, lugar onde sempre saiu na escola, e ela na galeria, lugar geralmente frequentado por pessoas de classe social um pouco mais elevada e, portanto, oposto ao dele, o que justifica bem o título na narrativa/canção “quem te viu, quem te vê”; quem a viu antes dançando na pista, no local mais popular, não a reconhece mais quando a vê, hoje, na galeria. E no último verso da canção ele deixa claro que caso ela sinta saudade de estar onde sempre esteve, bata palma como uma turista, uma vez que na galeria é onde ficam também os turistas durante o carnaval: “Se você sentir saudade por favor não dê na vista / bate palma com vontade, faz de conta que é turista”.

Sanção

Renúncia

A mulher renunciou à hipótese de voltar a ter um relacionamento com o homem, permanecendo no mesmo estado em que começou a narrativa, disfórica em relação a uma possível volta do relacionamento, ou seja, a performance não foi realizada.

Essa renúncia ou negativa dela para a volta do relacionamento fica explícito quando o homem diz: “Quero que você me assista na mais fina companhia”, ou seja, uma outra companhia, possivelmente um outro homem e não ele.

Como o texto trata da separação de um casal e é narrado pelo homem, a narrativa se constitui, em sua maioria, em primeira pessoa, o que caracteriza uma desembreagem enunciativa, mas com pequena presença da terceira pessoa, desembreagem enunciva. Ou seja, o texto quase todo é narrado em primeira pessoa, um EU falando para um TU, o que o torna subjetivo.

Ao longo de toda a narrativa o narrador se refere à mulher como você e já inicia o texto desta forma: “Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala / Você era a favorita onde eu era mestre-sala...” permanecendo assim durante toda a narrativa. O tempo mais presente é o do ontem, mas ele usa deste recurso para caracterizar o hoje. Quando o narrador diz que a mulher era a mais bonita das cabrochas da ala, pressupõe-se que ela, no tempo do agora, não é mais. O texto é construído no passado para indicar que agora, no persente, tudo mudou e nada mais é como era antes. O passado, o tempo do ontem, é usado como um recurso de caracterização do agora, tempo do hoje, embora, em alguns momentos da narrativa, esse hoje seja explicitado: “hoje a gente anda distante...”/ “hoje eu vou sambra na pista...”.

O mesmo acontece com o espaço. A medida que a narrativa se dá no tempo do ontem, o espaço se dá no lá. Trata-se do mesmo recurso, usa-se o passado que aconteceu lá, para caracterizar o presente que acontece aqui. A mulher não é mais (presente-agora) a cabrocha mais bonita dessa ala (aqui).

A primeira pessoa se torna mais explícita através dos pronomes eu, meu, nosso e do a gente: “...onde eu era mestre-sala”/ “hoje a gente nem se fala...”/ “...nosso samba ainda é na rua”/ “o meu sono se embalava...”/ “o meu samba assim marcava...”/ “hoje a gente anda distante...”/ “...onde eu não sou convidado”, já a terceira pessoa, desembreagem enunciva, aparece no texto quando o narrador se dirige à mulher em forma de pronomes possessivos: “suas noites são de gala”/ “...no carinho dos seus braços”/ “...bem em frente ao seu portão”/ “...do calor do seu gingado”.

4. SEMÂNTICA DISCURSIVA

O Procedimento semântico que rege, em grande parte, o discurso é a tematização. Segundo BARROS (2000), “tematizar um discurso é formular os valores de modo abstrato e organizá-los em percursos”(p.68).

Esses valores abstratos aparecem no decorrer de todo o texto e começa pela própria timia, ou oposição de base (separação x volta) é claramente abstrata. O sujeito da narrativa, o homem, recorre a várias palavras, entre substantivos e adjetivos, usando-as de modo abstrato para caracterizar a mulher, o relacionamento que tinham e a relação dos dois hoje.

Ao elogiar a mulher, através de adjetivos como favorita, bonita e brilhante: “Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala / Você era a favorita onde eu era mestre-sala / Quando o samba começava você era a mais brilhante”, o sujeito da narrativa está tematizando o discurso, já que favorita, bonita e brilhante no texto estão em sentido completamente abstrato, afinal nem a beleza e nem o fato dela ser a brilhante e favorita são concretos.

Quando usa de metáforas para exemplificar a relação que os dois mantêm hoje o sujeito também está tematizando seu discurso, como em “Suas noites são de gala, nosso samba ainda é na rua”. Neste trecho a palavra gala tem o sentido de luxo, riqueza, indicando que a mulher hoje tem uma vida de luxo (aquela-que-é-rica), enquanto o homem permanece na mesma vida de antes, uma vida simples e até de pobreza, que é indicada na expressão samba de rua (na rua). E esta oposição riqueza (gala) x pobreza (rua) é expressa de forma abstrata.

No decorrer da narrativa pode-se perceber mais valores abstratos:

“calor do seu gingado / o meu sonho se embalava no carinho dos seus braços / quando o samba começava você era a mais brilhante / você só dá chá dançante / o meu samba assim marcava na cadência os seus passos / de dourado eu lhe vestia / uma cabrocha de alta classe / quem brincava de princesa acostumou na fantasia”.

Todas essas palavras negritadas identificam e exemplificam a tematização no discurso. Pela narrativa tratar do fim de uma relação amorosa, o sujeito recorre a palavras que expressam sentimento para descrever tal situação. Verbetes completamente abstratos como carinho, sonho, fantasia são postos no texto para definir o sentido amoroso. Já expressões como alta classe, princesa e dourado são usadas, metaforicamente, para enfatizar a já citada oposição riqueza x pobreza. No caso do dourado é uma plena analogia ao ouro, metal mais valioso que existe, já que a mulher cansou de usar dourado (objetos falsos) e deseja agora usar ouro realmente.

Outra forma de tematizar se dá através do amor. Se percebermos bem, a palavra amor não é citada em nenhum momento na narrativa, mas nem por isso deixamos de identificar que o texto trata disto. O sujeito sempre que quer falar do amor dele para com ela, usa a palavra samba. No texto o samba também é o ritmo, mas é, principalmente, o amor dele, o que fica bem explícito na primeira frase do refrão: “Hoje o samba saiu lá lalaiá, procurando você...”, esse samba nada mais é que o sentimento do poeta por sua amada, feito em forma de música.

Após a análise em questão, podemos concluir que “Quem te viu, quem te vê” tata-se de uma narrativa que tem como timia principal separação x volta, mas também timias secundárias como, por exemplo, riqueza x pobreza. Logo em seguida, vemos que todo o percurso narrativo se dá em torno do desejo do homem de voltar a ter um relacionamento com a mulher e, usando as lembranças de momentos passados do dois, vai tentar seduzi-la a voltar para ele, mas não consegue, o que acarreta na não realização da perfórmance.

Quanto à sintaxe discursiva, percebemos que tal narrativa se caracteriza pela desembreagem enunciativa, já que sua estrutura, em grande parte, é formulada na primeira pessoa; o homem fala de seu sentimento diretamente para a mulher, tratando-a como você, ou seja um EU que fala para um TU. O tempo, com vimos é o do passado, mas para caracterizar um presente, o que indica que o relacionamento mudou e não é mais como antes.

Já em relação à semântica discrusiva, observamos que a tematização rege o discruso, recheado de metáforas, palavras e expressões abstratas, que o narrador usou para descrever seu sentimento pela dama.

Esta análise, fundamentada na Teoria do Discuso, da canção do compositor carioca Chico Buarque, forneceu uma outra visão e uma outra análise da música, que na maioria das vezes, foi vista como poesia, tendo sua parte narrativa um pouco esuqecida.

REFERÊNCIAS

BARROS, Diana Luiz Pessoa de. Teoria Semiótica do Texto. 4ª ed. São Paulo: Ática, 2000.

FIORIN, José Luiz. Elementos de Análise do Discurso. 14ª ed. São Paulo: Contexto, 2009.

HOLLANDA, Chico Buarque. Quem te viu, quem te vê. In: Chico Buarque de Hollanda Vol.2. Rio de Janeiro: RGE, 1967.

http://www.chicobuarque.com.br/letras/quemtevi_66.htm – acessado em 18/05/2009.

Roberta Cavalcanti
Enviado por Roberta Cavalcanti em 29/07/2009
Reeditado em 20/09/2009
Código do texto: T1725445
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