Ainda o velho patrimonialismo**

Wilson Correia*

Quem lê Max Weber, Sérgio Buarque de Holanda, Raymundo Faoro e Oliveira Vianna, entre outros, talvez já associou o que se passa no cenário político brasileiro com aquilo que esses autores caracterizaram como “patrimonialismo”: a marca daquele tipo de governo que não distingue o público do privado. Ele entrecruza o bem comum e o bem particular, pessoal, como a história mostra ser uma característica dos regimes absolutistas.

Parece que esse modo de governar já se fazia presente em Roma antiga, invadida pelos germanos, os quais desconsideraram a noção de público e privado mantida pelos romanos e instauram o uso descomedido das riquezas comuns como posses privadas, hereditariamente transmitidas no tempo e no espaço. Passou a valer aí o uso do erário em proveito próprio e de pequenos grupos encastelados no poder.

Essa maneira de lidar com o poder não foi de todo extinta com o regime republicano, como pode ser inferido das leituras dos autores lembrados no início deste artigo. Weber, por exemplo, inspira o seguinte entendimento:

“No patrimonialismo, o governante trata toda a administração política como seu assunto pessoal, ao mesmo modo como explora a posse do poder político como um predicado útil de sua propriedade privada. Ele confere poderes a seus funcionários, caso a caso, selecionando-os e atribuindo-lhes tarefas específicas com base na confiança pessoal que neles deposita e sem estabelecer nenhuma divisão de trabalho entre eles. [...] Os funcionários, por sua vez, tratam o trabalho administrativo, que executam para o governante como um serviço pessoal, baseado em seu dever de obediência e respeito. [...] Em suas relações com a população, eles podem agir de maneira tão arbitrária quanto aquela adotada pelo governante em relação a eles, contanto que não violem a tradição e o interesse do mesmo na manutenção da obediência e da capacidade produtiva de seus súditos. Em outras palavras, a administração patrimonial consiste em administrar e proferir sentenças caso por caso, combinado o exercício discricionário da autoridade pessoal com a consideração devida pela tradição sagrada ou por certos direitos individuais estabelecidos” (Reinhard Bendix. Max Weber: um perfil intelectual. Trad. Elisabeth Hanna e José Viegas Filho. Brasília: Unb, 1986, p. 270-1).

No “patrimonialismo”, o governante, funcionários e as relações de poder que eles vivenciam entre si e com a população não ultrapassam o entendimento de que tudo para quem governa pode se constituir como “posses do meu quintal”.

É verdade que a Constituição da República Federativa brasileira de 1988 estabelece o seguinte: “Art.37 – A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência”. Imaginou se esses princípios fossem seriamente considerados? Porém, não é esse antipatrimonialismo aquilo a que assistimos na prática política brasileira.

Os “atos secretos” ora no centro de mais um vexame político brasileiro o atesta sobejamente. Esses “segredos de compadres” no Senado da República, beneficiadores de particulares com o mau uso do bem público, na mais crassa rendição à prática patrimonialista de governo, não fere somente a nossa Constituição Federal: eles atentam contra nosso senso moral, esse que, no momento, nos leva à vivência de mais uma indignação.

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*Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins, Câmpus Universitário de Arraias. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009. Endereço eletrônico: wilfc2002@yahoo.com.br.

** Artigo publicado no Diário da Manhã em 05.08.2009, p. 19.