Sobre castas e a Verdade II

Entre os que constam em minhas listas de contatos por e-mails, muitos devem ter recebido o primeiro comentário “Sobre castas e a Verdade”. Nele, referendei um dos considerados maiores horrores da cultura indiana, um sistema de castas (ou varnas) excludente, bem como suas correspondências com o arcabouço de valores que constituem o que consideramos “nossa” cultura, tão explicitamente excludente quanto o sistema de castas hindu. Além disso, surpreendentemente, em “nossa” cultura, estão presentes muitos dos maus hábitos daquela cultura, e outras tantas superstições, a fundamentar comportamentos, alguns tão estranhos quanto os dos indianos – embora “nossa” cultura pareça bem menos perversa do que a hindu, quase verdadeiramente cristã em seus exercícios de tolerâncias, estímulos a inclusões e assistências sociais.

Em meu primeiro comentário sobre o assunto, aos olhos de alguns eu não poderia ter contado verdade maior. Para outros, contudo, cometi excessos nas avaliações sobre as arbitrárias invencionices humanas (sic) e o que pode ser considerado puras expressões da Verdade, também entre os homens (sic).

Escrita com “V” maiúsculo, a palavra “Verdade” diz respeito àqueles fatos forjados pelas forças da Vida, material e organicamente expressos na Natureza – que, ao nos inserir entre seus organismos, não nos pede permissão a realizar seus impulsivos desejos de Ser ou não ser, torne-se Ela o que ou quem for, doa a quem doer.

Assim, como referendei no primeiro comentário, foi um tal “Manu” quem estabeleceu o sistema de castas na Índia, baseado em suas observações dos variáveis tipos humanos (sic) existentes e de suas inclinações a prestações de certos serviços (e/ou desserviços) à comunidade onde vivem.

Entre os tendenciosamente voltados à busca de conhecimentos intelectuais, por exemplo, Manu reconheceu-lhes a capacidade de serem sábios “brâmanes” (e há, de fato, comprovados sábios valores, sentidos ou, como queria Pitágoras, filósofo grego matemático-musical, descobertos através das “visões do Espírito”, ou Daquilo que, por vontade própria, anima nossas vidas e consciências a nos mostrar outras dimensões e existências de Sua Vida infinita).

Além de sábios brâmanes, Manu reconheceu-nos também a capacidade de sermos, entre professores e ricos comerciantes, humilhados e humilhantes mendigos. E, talvez, entre esses, verdadeiros “santos”, como querem alguns, secretamente mais sábios que certos brâmanes, uma vez que muitos abdicaram do mínimo usufruto confortável da própria vida num “exagerado” exercício de desapego. Porque exercitam o não-desejo pela compreensão de que nada, de fato, nos pertence, ou pode pertencer, seja uma coisa ou nosso próprio corpo.

Em sua busca de imaginar sobre como a ciência poderá influenciar a felicidade em megacidades futuristas, o escritor e filósofo inglês Aldous Huxley, citado no comentário anterior, em seu livro ficcional Admirável Mundo Novo nos imaginou capazes de sentirmos-nos exclusivamente felizes somente se, criados a partir de manipulações genéticas e psicológicas, realizarmos felizmente os trabalhos para os quais seremos criados a realizar, sejamos nós “Ypsilons” ou “Alfas-mais” (em sua ficção, respectivamente representantes de castas relativas aos “dalits” e aos “brâmanes” na cultura hindu, embora aos “Alfas-mais” de Huxley esteja excluída a propensão à busca por conhecimentos que anima os brâmanes).

Com seu Admirável Mundo Novo, Aldous Huxlei força-nos a refletir sobre o dilema do livre-arbítrio entre a escolha da felicidade e a liberdade – incompatíveis no Mundo Novo – para expressarmos, com as artes, o que nos ditam as paixões e as emoções extintas no Mundo Novo, uma vez que tais artes fomentam mais paixões e, consequentemente, mais instabilidade individual e social.

Sempre desejei conhecer in loco o país que gerou e mantém tanta miséria, além das representações artísticas de “Brahma” (ou de Deus) e por onde andou Gandhi. Também quis conhecer de perto o templo dos Kama-Sutra, mestres na arte de buscar expressar a integração espiritual através do erotismo, do sexo e também como deve proceder uma donzela a sedução de seu macho pretendente, tanto quanto uma mulher casada, entre outras. Também quis conhecer a Índia por suas ideologias interessantes sobre os princípios da Vida e as funções da morte – mas tudo isso antes de ler o livro do jornalista francês Marc Boulet que, numa ousada empreitada existencial e intelectual, com a ajuda de seu editor e de sua amada esposa-amiga (uma chinesa, que também o acompanhou em sua aventura narrada em seu livro anterior, Na Pele de um chinês), fantasiou-se de dalit a conhecer todos os horrores pelos quais passam os integrantes dessa que é a pior das castas indianas.

Assim, para dar continuidade a sua experiência de espião social, o jornalista francês Marc Bulet escreveu Na pele de um Dalit , um breve relatório sobre suas ousadas, sebosas, deprimentes, perigosas e minimamente prazerosas experiências entre “os filhos de Deus” – como chamava Gandhi os dalits, segundo ele. Para tanto, teve que usar de seu talento de maquiador e dominar as línguas orientais (falando fluentemente albanês, inglês, chinês, coreano, hindi – idioma que ele aprendeu em um mês – e italiano, segundo o texto da contracapa de seu citado livro), além do adiantado apoio financeiro de seu editor.

“Ram Munda” foi nome que ele adotou como o moreno “aborígine” que se tornou, com ajuda do uso de perigosas drogas cancerígenas, como o metoxipsoraleno e o bronzeamento de partes do corpo acelerado a base de cremes especiais e exposições ao sol, além de vestimentas típicas que ele tornou imundas e esmolambadas, mais apropriadas a um mendicante dalit, e o culto de um bigode, apropriado a um hindu, a viver sua aventura de intocável.

Com sua experiência, constatou que o país não é absolutamente nada do que lembraria as influências de Gandhi em sua formação cultural, sendo um brâmane que bebe água no copo de um intocável forçado a se purificar absorvendo apenas urina de vaca. Para ele, entre muitas outras coisas interessantes (e nojentas) da cultura hindu, o sistema de castas “é uma maluquice, já que os intocáveis sofrem com o sistema e se discriminam entre si, à imagem de seus opressores”!

Mas, para provar que Gandhi também tivera razão quando afirmou que, entre regras, precisará somente existir uma única exceção exemplar para que o tipo-regra seja quebrado e não seja mais apenas imaginário, entre os imundos dalits, segundo “Ram Munda”, há alguns com espírito de brâmane. Como o jovem dalit que ele encontrou em Ravindrapuri, uma “via calçada de pedras e deteriorada”, que “veste uma calça preta e uma camisa amarela larga e na moda. (...) Consegue ser chique habitando nessa favela, onde a lama cobre o chão dos pardieiros, não há água corrente e a única mobília consiste em camas de corda, onde os homens e os porcos vivem juntos” – sendo aquele o único (?) que faz questão de não compactuar dos maus hábitos de seus irmãos miseráveis. “Se eu cruzasse com ele no centro não o distinguiria de um brâmane chique”, observa Marc Bulet, ou melhor, “Ram Munda”, ao mesmo tempo em que, noutro trecho de seu informativo livro, confessa ter conhecido “um brâmane miserável”.

Assim, em meio a toda miséria e sujeira, Marc Bulet descobriu um dalit, “pobre, mas limpinho”, como dizemos por aqui; e outro, com “pedigree” de brâmane, mas imundo – talvez pela necessidade de, a exemplo do Sidarta de Hermann Hesse em sua busca interior, ter transcendido seus costumes de brâmane e provavelmente desenvolvido todo despojamento necessário aos iluminados, tendo talvez se tornado um tanto sujo demais para os de sua casta, como também acontece por aqui, mesmo que em exemplos raríssimos, onde há certos mendigos provenientes de nossa “alta sociedade”.

Diante de tais dicotomias do comportamento humano (sic) no país de Krishna e Ranuman, o “deus dos macacos” – sendo os cadáveres de macacos encontrados nas ruas mais dignos de receberem esmolas que os dalits! – ele nos faz reconhecer as verdades que expressam certos ditados populares, existentes também pelas bandas do nordeste brasileiro. Porque, ao que parece, a despeito do que os movimentos culturais se esforçaram a mudar (principalmente a natureza ou o temperamento de certas pessoas), pelas bandas de cá também “quem é bom (naturalmente organizado, limpo, tendenciosamente justo etc.) ou quem é mal (naturalmente desorganizado, sujo, injusto etc.) já nasce feito”, sendo uma variação irônica de nossos dias o fato de que, às vezes, também “quem é bom já nasce feio”.

Como escreveu o desembargador Mário Moacyr Porto em 1962, em seu texto O Efêmero e o Eterno no Direito (considerado “um Esteta do Direito” pelo falecido poeta paraibano Vanildo Brito), “ninguém empobrece quando dá sem receber (...). O que se perdeu não era nosso; a gente só perde aquilo que não tem”. Mais adiante, reconhece que “a norma não exauri o Direito e que, muitas vezes, há uma inconciliável contradição entre a correta aplicação da lei e a real distribuição de justiça; entre o que é certo em face da lógica formal e o que é verdadeiro através dos reclamos da equidade”.

Jesus que o dissesse.

Continuo a comentar a interessante história de “Ram Muda” em “Sobre castas e a Verdade III”. Até lá.