Profissão: Escritor. Pode?

O caderno literário do Jornal O Globo, Prosa & Verso, do sábado dia 3 de junho de 2006, trouxe matéria de capa com o título “Sai a musa, entra o diploma”, escrito por Miguel Conde. (www.oglobo.com.br/cultura)

A matéria, cuja simples leitura do título já seria de espantar, trata do primeiro curso superior de formação de escritores e agentes literários a ser implantado oficialmente no Brasil. Não prezado leitor, você não leu mal; é um curso universitário para diplomar escritores! Coordenado pelo poeta Fabrício Carpinejar, iniciará suas atividades no dia 2 de agosto deste ano, na Unisinos de São Leopoldo (RS).

Necessário dizer que tal tipo de curso não é nenhuma novidade, existem diversas oficinas de produção textual em todo o país, algumas dirigidas e ministradas por escritores famosos e de talento inquestionável, mas nenhuma delas diploma ninguém como escritor. Tudo bem que sempre se pode ensinar algumas técnicas de escrita, mas será que o talento pode ser aprendido nos bancos universitários ou escolares? Penso que a própria história da Literatura tem nos demonstrado o contrário.

Partirei do próprio texto da matéria para fazer minha análise do fato em si.

Primeiramente vejamos as palavras do próprio poeta Carpinejar. Segundo a matéria, ele “se diz comprometido com a desmistificação da figura do escritor”. Bom, se há ou não a mistificação em torno da figura do escritor (o que particularmente não acredito) ela se deve ao fato de haver um certo mistério em torno de todo aquele que tem uma aptidão específica, um talento ou, se assim o quiserem, um dom especial. Pessoalmente acho inacreditável o que algumas pessoas são capazes de realizar sem ter a “formação específica” para tanto. Nelson Rodrigues é um ótimo exemplo, já que ficou conhecido como jornalista muito antes de sequer terminar os estudos fundamentais.

Outra palavra de Carpinejar: “O importante não é o diploma, mas a experiência que será adquirida dentro do curso.” Bom, o curso terá duração de dois anos e meio (30 meses) e contará com alguns escritores para ministrar aulas e acompanhar os alunos. Pergunto: quanto tempo se leva para amadurecer um talento? A vida toda, talvez. Pensemos nos autores que deixaram seus nomes registrados na história da literatura. Citemos Joseph Conrad.

De seu primeiro livro, 'A loucura do Almayer' (1895), iniciado em 1889 e concluído em 1894, até aquele que é considerado como sua obra prima, 'O coração das trevas' (1902), pode-se acompanhar uma trajetória literária das mais intrigantes por constituir verdadeira gradação de estilo, permeada por alguns tropeços e escorregões, que fizeram de sua obra o que há de mais rico na literatura de língua inglesa. Temos aí cinco anos de escrita seguidos de mais sete até a maturidade. Acredito que o exemplo fala por si.

Curioso que o release do curso sugere que o fato de um escritor se formar sozinho implica amadorismo e improvisação. Acredito que Machado de Assis escreveria uma bela crônica sobre isso. O próprio Carpinejar afirma que não se trata de amadorismo, engraçado ele contradizer a ementa do curso ao qual está defendendo com tanto afinco, e diz mais: afirma que “a verdadeira vocação terá mais facilidades de vir à tona na universidade”. Dá pra levar isso a sério? Então pergunto: qual curso universitário nos deu um novo Heitor Villa-Lobos, uma nova Patrícia “Pagu” Galvão, um novo Castro Alves?

É risível e revelador o que o coordenador Carpinejar diz em certo trecho da entrevista:

“[...] Quantos escritores parecem mendigar a leitura de seus textos aos amigos e familiares, dependendo de uma segunda opinião? Estamos propondo a convivência, a conversa com grandes autores que tomaram a literatura como seu principal ofício, a imersão criativa, a leitura criteriosa dos seus textos, o acompanhamento integral. É o fim das gavetas. Trabalhar a criação em sala de aula resultará num maior rigor, senso de observação e sensibilidade ao aluno. Acho que temos que destruir o egoísmo da genialidade [...]”

Essa então é demais! A conversa com grandes autores com a finalidade de formar escritores? Aparentemente o curso vai formar é repetidores, padrozinando a produção literária. Com esse tipo de postura corre-se um grande risco de formar escritores medíocres que jamais trarão uma contribuição renovadora para a literatura nacional.

Há um dado que está me intrigando muito: sendo um curso de formação de escritores, como avaliar a obra desses escritores? O curso parte portanto do pressuposto de que seus alunos já possuam uma obra de gaveta. Afinal, é formação ou avaliação? Ou será que tal curso servirá para validar trabalhos que tem ficado nas gavetas por sua qualidade duvidosa?

Mas a melhor e mais reveladora afirmação é a de que existe a necessidade de “destruir o egoísmo da genialidade”. Já disse que Machado de Assis se divertiria às custas desse curso. Percebe-se finalmente que o curso nada mais é do que uma afirmação do fenômeno mais preocupante da globalização: nivelar pela média não por um sentido de democracia, mas por um total despeito à figura do Gênio. Sim, temos medo dos Gênios. Achamos absurdo que alguém consiga destacar-se da maioria, ser diferente, fazer algo de realmente novo e original.

Nunca antes se fez tanta questão de esquecer e menosprezar as contribuições de figuras notáveis como o já citado Machado de Assis bem como de Einstein, Fernando Pessoa, Patativa do Assaré, Chaplin e outros que ocupariam linhas e mais linhas de qualquer lista, embora tenham sido personagens sem essa formação academicista que procura reduzir até mesmo a beleza da arte a um gráfico ou a uma planilha.

Eis o problema do Gênio: atestar a existência da média. Eis a arma dos que estão na média: querer nivelar todos a si próprio.

OBS: Enviado ao Caderno Prosa & Verso

Glaucio Cardoso
Enviado por Glaucio Cardoso em 15/06/2006
Código do texto: T175751
Classificação de conteúdo: seguro