A política como tortura

“Não há dúvida de que a verdadeira Cidade (a que não o é somente de nome) deve estimar acima de tudo a virtude. Sem isso, não será mais do que uma liga ou associação de armas.” (Aristóteles, In: "A Política")

Lúcio Alves de Barros

Há algo inegável que se aprende ao assistir as reuniões ou mesmo os debates travados em nosso congresso, senado ou nas comissões de diversos assuntos que fazem parte daquelas casas. Como se sabe, está na pauta política o caso da ex-secretária da Receita Federal Liana Vieira. Ela teria, em algum dia, se encontrado com a ministra Dilma Rousseff, provável candidata à presidente da república, para discutir as investigações acerca das empresas da família de José Sarney (PMDB-AP). A ex-secretária, mais de uma vez, em voz já cansada e amedrontada repetiu por horas a mesma ladainha: “Ela (a ministra) pediu para agilizar, blá, blá, blá...". Diante de sua fala, alguns senadores não pareceram satisfeitos: não existem provas do encontro, não se sabe o dia, o mês ou a semana e, de quebra, a ex-secretária foi mais de uma vez acusada, humilhada, maltratada e um monte de pedras lhe foram jogadas em relação ao crime de prevaricação. De uma forma ou de outra, a reunião da comissão - um saco de ver para quem não gosta - talvez desnecessária, nos remete (no mínimo) a três questões.

A primeira, “a corda sempre arrebenta para o lado mais fraco”. A ex-secretária passou maus bocados. Em cada fala de um senador, inclusive os da oposição, era mais do que perceptível a contundência, a ignorância, a pessoalidade e a falta de respeito em relação a uma cidadã que recebeu um convite para prestar informações. Apesar das palavras de “a senhora,”, “a vossa excelência”, “a doutora” e tudo mais, o calvário da ex-secretária foi duro e longo. Sua condição de mulher talvez tenha aumentado os ânimos dos senadores que há tempos bradam pedindo respeito, todavia, eles não pouparam a competente funcionária pública: manobras de argüição, repetição exacerbada de perguntas, inversão de falas, uso do cansaço e desrespeito ao ser humano foi o que mais se pode observar na presente sessão. Obviamente estavam por ali os que queriam aparecer diante da mídia, contudo, mais de uma vez a ex-secretária repetiu a mesma coisa. De duas uma: ou os senadores queriam tirar da ex-secretária o que não existiu ou o pano de fundo era outra coisa e a senhora Lina Vieira caiu bem – provavelmente por ingenuidade – como boi de piranha ou minhoca da vez.

Um segundo ponto, diz respeito à importância dada ao fato. Não é possível que uma democracia como a nossa se abale diante de uma conversa que durou cerca de 10 minutos entre duas mulheres que se “enfrentaram” em torno de amenidades e um pedido de agilização de um processo. O caso pode ser grave para a oposição ou mesmo para a situação, a qual tratou de demitir a funcionária. Mas convenhamos, se cada conversa de funcionário vazar para a imprensa e abalar a democracia brasileira, imagine quando ocorrer algo realmente sério. A coitada da ex-secretária, em meio aos senhores do senado, disse que a maior parte da conversa foi sobre amenidades do dia a dia e mesmo assim foi chamada de mentirosa e de prevaricadora. E mais, ela ainda informou da presença de um jornalista da “Folha de São Paulo” que, anteriormente já havia perguntado sobre o assunto tratado com a ministra. Logo, no lugar dela deveria estar o jornalista e não uma funcionária pública que passou em concurso e dedicou 33 anos de sua vida a observar as contas do erário. Vamos aos fatos, de duas uma: ou os senadores querem aparecer para a vitrine da mídia, notadamente respondendo aos ditames da “Folha de São Paulo”, ou eles não desejam discutir o mais importante, ou seja, a CPI da Petrobrás, os escândalos que perpassam a família Sarney (e por ressonância, sua teimosa permanência no senado) e o lançamento precoce da candidatura Dilma Roussef à presidência da república. Infelizmente, a entrevista na Comissão não mostrou nada, a não ser a má educação, o despreparo e o ambiente sádico e histérico já secular na política brasileira.

Por último, é bastante preocupante o tom dado a este tipo de sessão. Na verdade já vi coisas piores pela TV Senado, mas a sessão da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) estava muito próxima (guardadas as devidas proporções) ao cenário das antigas inquisições. A fogueira da vaidade estava por lá. O espírito da mentira e da verdade, também se faziam presentes. Em tela, uma “semi-bruxa” estava sendo queimada aos poucos, mesmo que torturada no intuito de responder as mesmas perguntas de uma conversa que teve com uma autoridade do governo. É de extrema importância o debate e as discordâncias na consolidação da democracia, mas ganhar “no grito” dividendos políticos com base nas incongruências da memória colocando na fogueira uma mulher que pouco ou nada interferiu no governo é no míninimo covardia. É difícil não pensar que o governo não esteja utilizando funcionários para calar a o espírito da verdade. E mais do que isso, se rendendo aos ditames de uma entrevista que, na verdade, alguns jornalistas da “Folha de São Paulo” já sabiam. É preciso reforçar a legitimidade, a crença e a fortaleza de nossas instituições, mas quando vejo os dedos em riste de alguns senadores, a arrogância manifesta e o descaso com os menores ou menos favorecidos politicamente penso na fragilidade de nossa democracia e como somos vulneráveis a determinadas autoridades que esbanjam poder: eles não erram, não mentem, são virtuosos, onipotentes e onipresentes. Não são seres humanos, não estão senadores, ou deputados, ou ministros, são “deuses”, incapazes de errar e ou escorregar na máquina governamental.

De todo modo, é bom acompanhar a TV Senado. Com os personagens aprendemos que a compaixão, a educação e o respeito são virtudes que fazem parte de uma sociedade virtuosa. Não é o caso da nossa: quem achar o contrário que leia o livro “A Política” de Aristóteles (384 a.C. – 322 a.C.). E, se os senadores tiverem a oportunidade de ler minhas singelas e poucas palavras, aproveito para indicar a obra do mesmo filósofo, “Ética a Nicômano”. Obra na qual o filósofo grego chama atenção para a prudência, bem como a atitude e a medida certa para cada ação.