As muralhas e o mar agitado.

Na construção do domínio científico das ciências sociais, a distinção entre o sujeito e o objeto foi, com freqüência, colocada em termos de uma relação de dominação. O investigador nega a possibilidade do outro (objeto) ser um sujeito histórico. Ele prevalece na construção da verdade. A civilização ocidental encarou o negro, o pobre, os países da periferia do capitalismo e todos os demais “bárbaros”, que de algum modo não confirmaram o modelo imposto pelo jogo capitalista, com um olhar de desconfiança temerosa.

O medo de conviver com tais estranhos se manifestou em diferentes aspectos e momentos da formação da realidade social brasileira. No contato entre europeus e sociedades indígenas, por exemplo, esse sentimento tornou-se predominante. Os cronistas viajantes dos séculos XVI e XVII, os naturalistas alemãs do sáculo XIX, a primeira geração de românticos, José de Alencar, com a afirmação do índio europeu medieval como herói nacional, todos eles e muitos outros, observaram as sociedades indígenas, explícita ou veladamente, como um componente exótico na composição da cultura brasileira.

O longo processo de conflitos e lutas do povo brasileiro somente poderá ser compreendido se levarmos em consideração a perda dos elementos culturais das populações dominadas, evidentemente, não como algo inelutável, porém, fundamental na construção do discurso histórico das elites no Brasil. O processo civilizador, como notou Darcy Ribeiro, transfigura culturalmente os povos através da confluência econômica e dos interesses políticos dominantes. Muitas sociedades sofreram o impacto tecnológico de potências capitalistas que as subjugaram e descaracterizaram sua cultura.

Drama que continua atual. A sensação de estranheza nos envolve numa trama que contamina o nosso olhar e os nossos sentimentos. Somos moldados por tais valores e nos apavoramos diante do diferente. Não ficamos em pânico somente no onze de setembro. Ele se repete, diariamente, misturando medo, indiferença e opressão.

O temor de permanecer parado no semáforo com os vidros abertos enquanto crianças se aproximam do carro. A arquitetura da cidade de muros e cercas. A proliferação de condomínios que tentam manter o outro sob controle. Os contatos mediados por tecnologias que garantem o anonimato e devassam a vida particular. Tudo isso reflete o clima de terror vivido com fascínio pela nossa sociedade. Somos, muitas vezes sem percebermos, estrangeiros, refugiados, confinados em espaços cada vez mais restritos e iludidos com a sensação de total liberdade e segurança.

Apesar das sólidas muralhas o mar continua agitado do lado de fora. Os que estão dentro destes recantos de tranqüilidade e beleza, acreditam que viverão com o barulho da tempestade como trilha sonora, indefinidamente seguros e prósperos. Não percebemos nossa condição de reféns. Os nossos estranhos, por outro lado, continuam sobrevivendo privados da sua condição de cidadãos. Não existe diálogo, somente o desespero compartilhado por uma sociedade sempre dividida e miserável.

Os temas e problemas clássicos do século XIX continuam válidos. A burguesia continua a viver sozinha no meio da grande multidão, mas, conectada a redes de informação, reproduzindo e inventando novas formas de distinção social.

Marques Nunes
Enviado por Marques Nunes em 16/09/2009
Código do texto: T1813987
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