AO TERCEIRO DIA

AO TERCEIRO DIA

Era sábado o primeiro dia. Um sábado quase morto, prenunciando chuva. Talvez não chovesse logo. Mas estava carregada a atmosfera; estivera quente já desde cedo. Seis horas e alguns minutos, e eu já de sentinela frente à casa, tomando mate – coisa de aposentado. Nessa idade, quando a gente não tem mais fôlego para correr atrás de uma bola nem sequer de fazer longas caminhadas, outras atividades perfazem essa lacuna e moldam o esqueleto de novos costumes para o ser humano. E, nada melhor que iniciar o dia com um costume centenário dos filhos dos pampas. E por que tão cedo, quando o tempo convidava para deitar a preguiça a serviço do sono? Há de se compreender que hábitos adquiridos durante uma vida inteira não se os perde só porque as pernas já não são tão lépidas como o seriam aos vinte anos e, entre eles está, por certo, o de levantar cedito. Há de se entender, também, que, estando o cidade sonolenta, mais que em dias normais de trabalho, as atenções voltam-se para as novas características de que se revestem as ruas, já que o corre-corre de pessoas que buscam seu trabalho, não o há. Por isso, no silêncio da semi-obscuridade daquele sábado, notei que somente uma ou outra pessoa, ciosa dos deveres que ainda restavam a serem cumpridos antes que o domingo lhe desse oportunidade ao ócio, movimentou a rua ensimesmada e silenciosa. Mil e um pensamentos perseguem trilhas de criação de uma tese para esse novo aspecto da rua, que, normalmente, está suportando o vai-e-vem dos passantes.

O segundo dia das minhas observações foi domingo. Já amanheceu chovendo. Aqui no Bairro – abençoado – pouco vento e muita água. Abrigado da chuva, suguei a água quente com o sabor espumante da folha nativa, sapecada, secada e canchada, conforme os costumes do sul brasileiro, da cabaça, elegantemente cinturada, a linda mulata que me serve de cuia. Através dos grossos pingos que levantavam chupetas no asfalto, notei que estava só. Nenhuma alma visível saiu de sua casa. A rua estava deserta; as casas estavam fechadas; as janelas não se abriram sequer para, por elas, penetrar o ar puro e úmido da manhã. Nem sequer os cachorros e os passarinhos atreveram-se a desafiar a chuva. Os homens não trabalharam porque aproveitaram o dia do Senhor, chuvoso, para guardar a cama e, nela, dar-se ao luxo de dormitar, escutando a melodia maravilhosa da chuva que lhes batia no telhado. Os bichos, bem, estes não “trabalharam” seu almoço porque não gostam de se molhar. Tudo era silêncio sepulcral. Eu, sentado frente à casa e mateando e fumando meu cigarrinho, deliciava-me com essa harmonia formada pelo silêncio e o pingapingar rítmico das bagas pesadas da chuva que, na intermitência dos minutos, era vazada pelos xingamentos mútuos havidos entre camadas quentes e frias da natureza, que vociferavam trovões. Mas o Bairro acordou. E o terceiro dia iniciou sua festa.

E ao terceiro dia, como o Cristo ressurgiu dentre os mortos em todo o seu esplendor e glória, deu-nos também a natureza, uma bela segunda-feira. Neste terceiro dia, nem a chuva, nem o silêncio dominical se fizeram ouvir. Neste terceiro dia a cidade acordou do seu marasmo de final de semana e de chuva. A rua novamente adquiriu nuanças de progresso. As pessoas saíram de suas casas, animosas, cumprimentando umas às outras, desejando-se mutuamente um trabalho produtivo. Pássaros cantaram e cataram seus alimentos entre os elementos da natureza. Gatos miaram; cachorros latiram; galinhas cacarejaram e gansos grasnaram. O sol novamente presenteou este abençoado pedacinho do Planeta Terra com seu calor. A vida chapecoense, festejando este lindo dia, fluiu novamente em sua plenitude e graça.

Moral da história (que poderia, talvez, traduzir-se por: Moral histórica): nem eu entendi o que escrevi.

Tal qual o fazem os oradores políticos, religiosos e outros que se lhes assemelham, enfeitam suas falas e gritam de seus palanques, falando da cultura ideológica, de moral e das punições ortodoxas aos pecados, e nada dizem de realmente consistente. Os valores imediatos de tais oratórias têm a nítida intenção da lavagem cerebral. Os coitados dos ouvintes, ainda comentando que ouviram uma bela oratória, saem do recinto ou da praça, convencidos de que o orador falou a verdade... mas nenhum deles entendeu coisa alguma por ter sido a fala ininteligível.

Afonso Martini
Enviado por Afonso Martini em 26/09/2009
Código do texto: T1832471
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