O que é isto, o voto nulo?

Wilson Correia*

Caro aluno,

Leia, a seguir, o poema de Bertolt Brecht:

“O Analfabeto Político

Bertolt Brecht

O pior analfabeto é o analfabeto político.

Ele não ouve, não fala, nem participa

dos acontecimentos políticos.

Ele não sabe que o custo de vida,

o preço do feijão, do peixe, da farinha,

do aluguel, do sapato e do remédio

dependem das decisões políticas.

O analfabeto político é tão burro que

se orgulha e estufa o peito dizendo

que odeia a política. Não sabe o

imbecil que da sua ignorância política

nasce a prostituta, o menor abandonado,

e o pior de todos os bandidos que é o

político vigarista, pilantra, o corrupto

e lacaio dos exploradores do povo."

Pois então... Não é época de eleição. Mas o exercício político não tira férias. Pode ser diuturnamente praticado por quem escolhe fazer valer a cota de poder que tem nas próprias mãos. Pensando nisso, sua pergunta em sala de aula não é inoportuna. Aliás, demonstra um interesse saudável por um assunto-tabu entre nós: “O que é e para que serve o voto nulo?”

Veja! Sou leigo em direito, mas vivo as conseqüências das decisões tomadas pelos entendidos em direito. Por isso as questões jurídicas que afetam o nosso cotidiano são sérias demais para que as deixemos apenas nas mãos dos juristas e outros expertises em lei.

A lei, caro aluno, não é um ente puro, santo e imaculado que baixa na cabeça de quem a elabora. Nem o legislador o é. Todo homem e toda mulher vivem em um tempo, em um espaço e dançam sob as injunções de um e de outro. A lei é expressão de força, de força política, de poder.

O processo de elaboração de uma lei abre um campo de batalha entre múltiplos interesses. Quem tiver mais força política nesse jogo faz-se hegemônico, quer dizer: sai vitorioso na tarefa de dar à letra da lei o viés que mais lhe parecer apropriado, conforme os interesses que defende, claro!

Ainda assim, a lei é o instrumento de que podemos lançar mão para entender certos assuntos, tais como esse sobre o qual me interroga: o voto nulo.

Pois bem! Se ainda estiver valendo a Lei 4737**, de 15 de julho de 1965, vale conferir o que ela diz em seu Artigo 224:

Art. 224. “Se a nulidade atingir a mais de metade dos votos do país nas eleições presidenciais, do Estado nas eleições federais e estaduais ou do município nas eleições municipais, julgar-se-ão prejudicadas as demais votações e o Tribunal marcará dia para nova eleição dentro do prazo de 20 (vinte) a 40 (quarenta) dias.

§ 1º Se o Tribunal Regional na área de sua competência, deixar de cumprir o disposto neste artigo, o Procurador Regional levará o fato ao conhecimento do Procurador Geral, que providenciará junto ao Tribunal Superior para que seja marcada imediatamente nova eleição.

§ 2º Ocorrendo qualquer dos casos previstos neste capítulo o Ministério Público promoverá, imediatamente a punição dos culpados”.

Viu bem, caro consulente? Se numa eleição para o cargo mais alto da República, ou de quaisquer dos entes federados da União, os votos nulos alcançarem um registro maior que cinquenta por cento em relação ao número de votantes, a eleição será nula e o Tribunal competente terá entre 20 e 40 dias para convocar novas eleições. E mais: parece-me que, nesse caso, os candidatos reprovados pelos eleitores não poderão concorrer nessa nova eleição aí, a ser marcada entre 20 e 40 dias pelo Tribunal Eleitoral.

Você deve estar se perguntando por que, então, isso não é esclarecido à população, por que os órgãos oficiais que fazem campanhas a favor do ato de votar não deixam isso bem entendido para o eleitor, e você está correto em perguntar isso. Eu suspeito que o valor do voto nulo não é claramente dito porque aqueles interesses aos quais me referi lá em cima falam mais alto do que a letra da lei. Percebe como a lei pode ser, não apenas tendenciosa em sua feitura, mas mobilizada para confundir uns em benefício de outros?

Pois bem! Ainda que não esclareçam, é fato que casos existem para serem arrolados aqui como sustentadores do que estou tentando esclarecer. Em 2004, por exemplo, dois municípios do Estado de São Paulo tiveram novas eleições, exatamente porque, neles, os votos nulos foram em maior quantidade do que 50% com relação ao número de votantes, com os eleitores chamando para si as rédeas das eleições municipais, fazendo com que gente melhor prepada pudesse se submeter ao escrutínio dos respectivos colégios eleitorais. Leia abaixo a notícia do Portal Terra, de 04 de outubro de 2004, sobre esses dois casos:

“Duas cidades paulistas devem voltar às urnas. O total de votos válidos não atingiu 50% nos municípios de Rosana e Ribeirão Branco. Nestes casos, a lei prevê a realização de uma nova eleição nas cidades, conforme informa o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) de São Paulo”***.

Mas esses fatos, corroboradores do que diz a lei citada acima, tem no sentido político o seu maior significado. Assim, o voto nulo tem tanto peso quanto o voto válido. É bom pensar nisso...

Nas próximas eleições de que participar vida afora, ainda que mudem a letra lei para salvaguardar interesses inescrupulosos, lembre-se do valor do voto nulo. Ele é a legitima expressão do poder de quem quer se fazer verdadeiro portador de poder, a característica daquele homem e daquela mulher que também almejam alcançar vivência da genuína condição política e cidadã.

Não se trata de delegar a outrem o que cabe a cada eleitor, mas de, desde a origem, fazer valer a idéia de que candidatos que não servem para nos representar não devem participar de pleitos eleitorais. E, assim, a responsabilidade do voto é garantida, sobretudo porque é o eleitor que baliza as candidaturas daqueles em quem julga ser digno votar.

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Nota: Interpretações recentes dão conta de que a maioria de votos nulos não anulam uma eleição. Dizem, TSE e ministros, que se, em uma eleição, 60% dos votos forem nulos, por exemplo, um candidato obtiver 20% mais um dos 40% restantes, o eleito será esse que obteve essa maioria. Pergunto: qual a legitimidade que esse político teria? Por isso, se interpretações antigas da lei previam a anulação de uma eleição, caso algo como o desse exemplo acontecesse, é a elas, penso, que a cidadania deve recorrer. Até para que o princípio vigente na democracia representativa de que a vontade da maioria tem de ser respeitada seja obedecido. Como vemos, a luta por uma democracia realmente consequente é grande. Nosso trabalho torna-se ainda maior... Essa é uma ideia da qual não podemos arredar pé.

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* Wilson Correia é filósofo, psicopedagogo e doutor em Educação pela Unicamp e Adjunto em Filosofia da Educação na Universidade Federal do Tocantins. É autor de ‘TCC não é um bicho-de-sete-cabeças’. Rio de Janeiro: Ciência Moderna: 2009.

** Lei disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L4737.htm>. Acesso em: 01.07.2009.

*** Notícia disponível em <http://noticias.terra.com.br/eleicoes2004/interna/0,,OI396606-EI2542,00.html>. Acesso em 01.09.2009.