As revoltas de escravos na Roma antiga e o seu impacto sobre a ideologia e a política da classe dominante: a contestação da teoria da escravidão natural, as mudanças na organização do Estado e as reformas do Principado

Introdução

A presente comunicação versa sobre as principais revoltas de escravos ocorridas na Roma antiga e o seu impacto sobre a sociedade romana. Esta pesquisa se iniciou a partir de uma outra comunicação apresentada na VI Jornada do CEIA intitulada “Eunus e Espártaco: semelhanças e diferenças entre as maiores revoltas servis no final da República Romana (séculos II e I a.C.)” e culminou posteriormente numa monografia intitulada “A mobilização dos escravos nas revoltas da Sicília e de Espártaco nos séculos II e I a.C. na ¹República Romana: o impacto da revolta dos subalternos na política das classes dominantes”, onde levantei a hipótese de que as rebeliões de escravos de grandes proporções colocaram em xeque a visão do escravo como simples coisa ou animal, tendo os autores que relataram as revoltas na época, dentre eles Plutarco e Apiano, tido que reafirmar, com bastante esforço, o caráter inferior dos escravos, mas não sem deixar escapar em alguns momentos o seu valor, como a coragem dos escravos combatentes e a inteligência de suas lideranças. Os rebeldes dos exércitos siciliano e espartacano questionaram a antiga teoria da escravidão natural elaborada por Aristóteles e aplicada na prática pela classe dominante romana, tendo num caso tomado o poder político de Estado e administrado o mesmo e no outro, organizando um exército que percorreu a Itália e derrotou Roma sucessivas vezes. Com isso, a opção pelo discurso que reconhecia a humanidade dos escravos, como foi o caso dos estóicos, foi adotado pela classe dominante junto com uma série de reformas que regulamentavam a relação entre senhor e escravo e concediam aos últimos certos direitos. Este foi o ponto de partida do projeto de mestrado que tem como proposta aprofundar esse estudo e que se materializa na comunicação atual, com novas análises e novos problemas e traz uma nova discussão a ser aberta como contribuição para o conjunto de debates sobre escravidão e luta de classes na Antiguidade.

As rebeliões dos escravos e o questionamento da ideologia escravista

Nos séculos II e I a.C. modificações profundas no interior da sociedade romana provocaram abalos severos na superfície. As transformações pelas quais passou o modo de produção escravista em Roma acentuaram as contradições daquela sociedade, levando mais tarde à crise da República. As grandes revoltas de escravos desse período inserem-se nesse contexto.

Na verdade, para que façamos uma análise ainda mais precisa, teremos de estudar o processo de maneira mais global, recuando um pouco no tempo, tendo como ponto de partida o século IV a.C, pelo menos, com a aprovação da Lei Petélia Papíria, que estabeleceu a abolição das dívidas dos camponeses e a proibição de escravizá-los, por serem cidadãos romanos, até o século I d.C. ao analisarmos a difusão do discurso dos estóicos que fundamentaram a nova ideologia dominante para a sustentação do regime imperial e escravista. Em suma, se por um lado o nosso estudo estará centrado no período de II-I a.C., estabelecendo um corte cronológico que abarque a crise da República romana e de eclosão das grandes rebeliões servis, por outro, só é possível compreender o processo ora exposto numa análise de longa duração e que capte a totalidade deste momento histórico específico em todos os seus aspectos e em cada etapa de seu desenvolvimento.

Esta pesquisa tem por objeto a Primeira Revolta de Escravos da Sicília, liderada por Euno, e a Revolta de Espártaco, além de tecer alguns comentários sobre outras revoltas do período e propor alguns problemas acerca desses fatos históricos. Revisitar um tema já tão discutido nunca é fácil nem tampouco inovar e apresentar uma hipótese original, mas é exatamente a essa tarefa que se destina esse estudo, tentando projetar luz sobre áreas até o momento de sombra e produzir um novo olhar sobre um cenário já visto de modo tão natural, reconstruindo a velha paisagem, polemizando e problematizando sobre conclusões anteriores. Poderemos, com isso, chegar a novas conclusões ou, pelo menos, a novas dúvidas. De qualquer modo, reabrir o debate, senão com novas provas materiais, mas com novas interpretações, serve-nos para questionarmos velhas certezas.

É importante dizer que este estudo não é nada fácil já que pretendemos analisar os eventos a partir do ponto de vista dos escravos e que os mesmos não nos deixaram nada por escrito e mesmo os vestígios arqueológicos são precários. Se não existe crime sem corpo, no caso da revolta de Espártaco nos deparamos com um problema da mais alta relevância: o seu corpo, que comprovaria a sua morte e a sua existência, da suposta batalha travada na primavera de 71 a.C., na Apulia, nunca foi encontrado. O que faz, então, com que a revolta de Espártaco seja um fato histórico real e não uma obra de ficção, um texto literário ou moralizante, já que não há vestígios arqueológicos nem memórias escritas pelos próprios escravos? O que confirma essa verdade: de que esses homens existiram, que aquilo realmente aconteceu? Nesse caso, somente pelo seu impacto na sociedade romana de então. É claro que ainda há o processo lógico de se produzir uma análise crítica com base na verossimilhança, que também será útil na hora de investigar o que há de verdade nos próprios relatos que chegaram até nós. Estes relatos, é importante dizer, foram produzidos pelos ideólogos dos senhores escravistas, pelos mais brilhantes intelectuais da classe dominante do Império Romano e que, além de falarem de um lugar social específico, produziam os seus relatos num tempo bastante posterior ao acontecimento das revoltas descritas. Portanto, isso também será objeto dessa investigação, bem como o impacto que as revoltas de escravos tiveram no processo de reorganização e de reformulação dos mecanismos de dominação político-ideológica daquela sociedade.

O ponto de partida deste trabalho de investigação é a hipótese que baliza todo o debate: apesar das revoltas de escravos da Sicília e de Espártaco terem sido militarmente derrotadas, elas provocaram uma fissura no plano ideológico. O discurso dominante estava todo alicerçado na teoria da escravidão natural, formulada por Aristóteles. Segundo essa teoria, existem homens que nasceram para mandar e outros para obedecer; que uns são dotados, por natureza, de autoridade e inteligência e outros são dotados apenas de sua força física para que possam executar as tarefas que lhe são designadas. Na obra Política, do filósofo Aristóteles, os escravos são comparados a coisas, instrumentos de uso, ou a animais domésticos e explica que os homens que são escravos por natureza são aqueles que não são dotados plenamente da razão. E essa era a idéia corrente nas sociedades antigas do Ocidente até a eclosão dessas rebeliões. Mais importante do que o fato das pessoas acreditarem ou não no discurso (poderia haver senhores ou escravos que, provavelmente, pelo convívio, não acreditassem na ideologia dominante) é que este era um discurso que não havia, até então, sido contestado de forma patente na realidade. Entretanto, na medida em que os escravos rebeldes demonstraram um grande valor em sua luta desesperada pela liberdade, sendo que no caso dos escravos sicilianos, os revoltosos tomaram o poder na Sicília, assumindo o controle do Estado, administrando-o e retirando a antiga aristocracia escravista do poder, mesmo que mantendo o regime social escravista e adotando um regime político comum na Antiguidade e, portanto, conhecido por eles, que era a monarquia de tipo helenística, e no caso dos escravos espartacanos, sua rebelião conseguiu por diversas vezes derrotar as forças do exército romano e que só puderam ser enfim desmobilizados e ter destruído o seu exército rebelde pela mobilização de três generais romanos – Crasso, Lúculo e Pompeu, a tese que sustentava a inferioridade natural dos escravos ruiu. Não era mais possível sustentar, nem mesmo de forma cínica, que os escravos eram inferiores por natureza. Os próprios relatos de Plutarco e Apiano, em determinados momentos, deixam transparecer características vistas nos escravos que geralmente só eram reconhecidas nos cidadãos romanos, homens livres e de natureza superior. Plutarco relata claramente a coragem dos rebeldes em batalha. Apiano, ao apresentar a origem de Espártaco, tenta justificar o fato de ser ele um homem de grande valor, que repartia igualmente o produto dos saques entre os combatentes e destacar suas características positivas, como a sua qualidade enquanto líder, por introduzir em sua narrativa a observação de que Espártaco teria sido um soldado do exército romano, posteriormente capturado e escravizado. Plutarco também o aponta como um homem inteligente, muito humano, corajoso e fisicamente vigoroso, dando ênfase às suas qualidades. Na ideologia escravista, homens que não eram escravos por natureza poderiam ser escravizados. Nesse sentido, todo o esforço dos autores foi em tentar revalidar a teoria da escravidão natural, pois, ao mesmo tempo em que destacavam os atributos positivos de Espártaco, é apontado pelos autores que a maior razão do fracasso da revolta residiu no fato de ser uma revolta de escravos, como parte do discurso ideológico dominante. Mas o estrago já estava feito. A realidade social havia posto em xeque a validade do discurso escravista de então. Por isso, com o advento do Principado, o discurso dos estóicos de reconhecimento da humanidade dos escravos e que pregava uma relação harmônica entre senhores e escravos estava mais em conformidade com o espírito do regime imperial, que havia estabelecido mecanismos de controle mais eficazes juntamente com a concessão de certos direitos aos escravos e que regulava as relações entre senhor e escravo, sendo agora o Estado um árbitro importante das relações sociais para a garantia da estabilidade política e social.

Em suma, o objeto de estudo dessa pesquisa é o que representou para a sociedade romana o levante de escravos nas duas revoltas, o impacto disso nos discursos e nas políticas das classes dominantes, a contradição entre o discurso ideológico e a realidade e o quanto essas revoltas colocaram em xeque a própria ideologia escravista, cujo discurso oficial propagava a inferioridade dos escravos frente aos homens livres, uma inferioridade natural, mas que na análise das lutas, autores como Plutarco deixam escapar comentários como o presente na obra Crasso:

“Esta foi a mais dura batalha de todas. Ele(Crasso) matou 12300, e apenas dois deles foram encontrados com ferimentos nas costas: todos os outros tinham morrido permanecendo em seus postos e lutando como romanos”. Plutarco, Crasso, Ch.11.3

Essa hipótese pode ser confirmada não só pelo deslize de Plutarco, como também pela comparação dos discursos de Aristóteles e Sêneca.

A teoria da escravidão natural, formulada por Aristóteles, ofereceu o suporte ideológico para a legitimação da relação senhor/escravo e fez parte do discurso dominante na Grécia antiga e em Roma no período da República.

“Qualquer ser humano que, por natureza, pertença não a si mesmo mas a outro é, por natureza, escravo; e um ser humano pertence a outro sempre que fizer parte da propriedade, ou seja, uma parte da propriedade que é um instrumento para a ação de um senhor.” Política 1254 a 4-18 (GARNSEY, 1996, P. 108)

“Eles são escravos”, as pessoas declaram. Não, eles são homens. “Escravos”. Não, companheiros. “Escravos”. Não, eles são despretensiosos amigos. “Escravos”. Não, eles são seus camaradas-escravos, se refletir que a fortuna tem direitos iguais tanto sobre escravos como sobre homens livres.” Epistulae 47.1, IO (cf.17) (GARNSEY, 1996, P. 67)

Mesmo colocando os fragmentos dos distintos autores em seguida é fácil distinguir quem é quem. No primeiro fragmento, é feita a defesa aberta de que para diferentes homens existem diferentes naturezas; e mais que isso: que as distinções sociais têm uma fundamentação natural. Já no segundo fragmento, é nítida uma mudança de postura, a partir do reconhecimento da humanidade dos escravos. Os estóicos não eram de modo algum abolicionistas. Eles também não vislumbravam uma sociedade alternativa àquela que viviam e defendiam mesmo a escravidão; mas pregavam uma relação mais harmoniosa entre senhores e escravos e essa tese se popularizou no século I d.C., no Alto Império Romano, em oposição à teoria da escravidão natural, afirmando que “cada bom homem é livre, e cada mau homem é um escravo”. Esse novo olhar sobre a realidade social projetado pelos estóicos pode ser analisado de forma nítida no relato de Diodoro sobre a Primeira Guerra Servil, onde ele condena as atitudes excessivamente cruéis dos senhores de escravos da Sicília, colocando sua crueldade e a corrupção das autoridades romanas como os principais fatores que geraram aquela revolta, sem deixar de condenar, é claro, os escravos revoltosos também, pois sua posição é a de defesa da ordem, de uma atitude ordeira, harmoniosa e equilibrada de ambas as partes.

O impacto das revoltas de escravos no Estado romano

A relação dessas revoltas com a reorganização do Estado romano e a rearticulação das forças políticas e sociais no seu interior também é um elemento essencial que devemos abordar. Essas rebeliões servis são parte de toda a crise social de fins da República. E, na verdade, foram justamente as transformações ocorridas no modo de produção escravista o motor de muitas delas.

A primeira grande mudança na sociedade romana que apontou no sentido desse desenvolvimento foi a Lei Petélia Papíria, visto que a proibição da escravização de homens livres e pobres aos credores ricos foi a última condição para o surgimento do escravo-mercadoria em Roma. Isso fez com que, cada vez mais, Roma tivesse de buscar sua mão-de-obra escrava entre os prisioneiros de guerra. O expansionismo militar romano com o aprisionamento cada vez mais massivo de homens destinados à escravidão combinava-se com o processo já em curso de concentração da terra nas mãos de poucos proprietários, surgindo um novo padrão agrário dominante – o latifúndio – e o alargamento do mercado. Com isso, tornava-se uma realidade a expulsão dos camponeses dos campos para se tornarem plebe ociosa nas cidades, enquanto a produção agrícola em larga escala era garantida pela mão-de-obra escrava estrangeira e a serviço de uns poucos grandes proprietários de terras e de escravos que formavam a nova aristocracia romana; por ironia do destino, a aristocracia nascida das lutas que os plebeus travaram contra os patrícios por mais direitos políticos e que levou os plebeus ricos a se tornarem parte dessa nova classe dominante – a nobilitas. No decorrer desse processo, foi desaparecendo com o tempo as características patriarcais da escravatura romana primitiva, não se encontrando mais os escravos como membros integrantes da família patriarcal romana. Agora, os escravos passavam a se constituir como uma camada social distinta. A classe dominante via o escravo como mero instrumento de uso destinado a manter seu modo de vida e sua riqueza. E os escravos começavam a se enxergar como classe oposta ao dos senhores, passando a se constituir numa relação de antagonismo com relação aos seus senhores, em grupo a parte.

A sociedade romana, extremamente estratificada e desigual, passou por profundas transformações a partir do século II a.C. Na verdade, os eventos deste século aceleraram as mudanças ocorridas na sociedade romana desde o século IV a.C. e aprofundaram o seu desenvolvimento, tornando inevitável aquilo que até então existia enquanto possibilidade, determinando o curso desse mesmo desenvolvimento e a gravidade dos eventos que se seguiram. A decadência e proletarização do campesinato itálico, a formação de grandes propriedades fundiárias e a utilização em larga escala de escravos na produção são algumas das mudanças decorrentes diretamente da Segunda Guerra Púnica, quando ocorreu uma entrada em massa de prisioneiros de guerra para trabalharem como escravos. A rapidez dessas modificações na estrutura social vigente foi um motor importante da crise da República. Além disso, a estrutura política da República romana estava organizada para gerir uma determinada estrutura social e uma forma específica da economia escravista. O Império foi uma adequação da política de Estado e dos mecanismos disponíveis para a classe dominante na esfera da administração pública com o objetivo de regular as relações sociais existentes. Esse período de grandes revoltas de escravos iniciado justamente no século II a.C. também teve como elemento importante o fato de muitos dos escravos serem de primeira geração, guardando ainda consigo a memória da liberdade e o ressentimento e o ódio dos senhores perante sua escravização.

Os maus tratos eram uma marca da escravidão em Roma e na Sicília nesse momento histórico, de uma forma que extrapolava aquilo que seria considerado normal mesmo dentro de uma lógica escravista. Foi exatamente o que ocorreu na Primeira Revolta de Escravos da Sicília. A ilha, em meados do século II a.C., tinha uma composição social formada por uns poucos camponeses, que viviam em situação de extrema miséria, e uma massa de escravos que viviam sob um regime de opressão extrema e numa situação em que seus senhores não garantiam o mínimo necessário para eles como sua alimentação e roupas para vestir. Segundo Diodoro, a revolta foi o resultado dos vícios dos próprios senhores, que caíram na luxúria, eram orgulhosos e exageravam nos maus tratos aos escravos, colocando-os cada vez mais contra os seus donos. A corrupção dos administradores e o poderio dos senhores de terras e escravos levaram a que os governadores não repreendessem os senhores que tratavam cada vez pior os seus escravos, desnecessariamente, e que não provinham o mínimo para eles, permitindo-lhes que roubassem e matassem as pessoas que viajavam pelas estradas da Sicília.

Podemos definir os escravos de Roma enquanto uma classe social subalterna à aristocracia por estar a mesma na base da produção da riqueza social existente e ser essencial para a própria reprodução da classe dominante, do seu poder político, de sua riqueza material e de seu modo de vida. O marxismo delimita o início da sociedade de classes a partir da dissolução das antigas sociedades comunitárias, isto é, a partir do surgimento da propriedade privada. Eles não chegaram a ser uma classe para si, mas formavam uma classe social na medida em que viviam em condições semelhantes de existência, sendo, portanto, uma classe em si. No entanto, nesse momento específico, os escravos antigos atingiram um certo grau de consciência que lhes permitiu se organizarem e se mobilizarem para a luta contra seus senhores e contra o Estado, sem apresentar ou desenvolver uma nova alternativa de sociedade, não se podendo definir o estágio por eles alcançado como o de uma verdadeira consciência de classe.

A excepcionalidade dessas grandes revoltas de escravos, que não se repetiram nem em Roma, nem em toda a Antiguidade e que não tiveram par antes do século II a.C., tem a ver com esse desenvolvimento do modo de produção escravista, baseado em grandes latifúndios, e num contexto em que não só a classe dominante ainda estava aprendendo a desenvolver os mecanismos de controle para aquela nova forma de produzir e aquela nova situação social, como também, por sua crise interna, abriam para os escravos a possibilidade de lutarem por sua liberdade. Se é verdade que o nível de consciência possível de ser alcançado pelos escravos rebeldes determinava de antemão os limites e o curso de sua luta, dentro de um quadro de determinadas variáveis e escolhas, e as formas mesmas dessa luta; também é verdade que não estava predeterminada a consolidação do sistema escravista naquela forma, nem que no caso de Espártaco, por exemplo, não fosse possível de fato para aqueles escravos participantes da revolta o sonho de liberdade. A atuação da aristocracia romana enquanto classe naquela conjuntura específica, bem como o advento posterior do Principado como forma de conter esta e muitas outras crises da República foram determinantes nesse sentido. Para a consolidação desta nova organização da produção necessitava-se de uma reorganização da sociedade também no plano político. A alternativa encontrada naquele contexto foi a combinação da grande produção escravista com o cesarismo, como forma de governo capaz de manter a unidade da classe dominante, para que o Estado escravista pudesse manter o equilíbrio entre as classes, atuando como árbitro dos conflitos sociais, sendo capaz de realizar muito mais concessões do que o sistema de governo republicano. O Império era, assim, não só uma ditadura militar, mas a forma política capaz de incorporar também parte das reivindicações dos escravos, itálicos, plebeus, proletários e provinciais. Diante da ineficácia dos mecanismos político-ideológicos, o uso mais freqüente da força para a resolução dos conflitos, com uma centralização maior da própria classe dominante e do conjunto da sociedade a partir do aparato de Estado, e a concessão de certos direitos aos subalternos e aos setores secundários ou marginalizados da própria classe dominante aparece como a saída para a crise social e política daquela sociedade. Como conseqüência, não existiram outras revoltas de escravos de grandes proporções, nenhuma que pudesse ser considerada algo comparável às de fins da República. O que se abriu naquele momento, então, foi uma oportunidade, uma janela histórica em que os escravos puderam travar uma luta de massas, num movimento de grandes proporções contra o Estado escravista romano.

As revoltas de escravos coincidiram com as lutas mais acirradas entre as frações da classe dominante e seus “partidos” – os optimates e os populares. A Primeira Revolta de escravos da Sicília se deu em 135 a.C. A revolta ainda estava em curso (durou de 135-132 a.C.) quando estourou o conflito entre Tibério Graco, o tribuno da plebe, e a oligarquia senatorial, em 133 a.C. De 133-129 a.C. estourou a revolta de Aristônico, na Ásia Menor, outra revolta escrava de grandes dimensões. Seu início se deu paralelamente ao conflito envolvendo Tibério Graco. O tribunato de Caio Graco foi de 123-122 a.C., no qual se deu mais uma luta acirrada por reforma agrária e outras mudanças no regime republicano. Novos confrontos políticos entre populares e optimates se deram no período de 103-100 a.C. A Segunda Revolta de Escravos da Sicília ocorreu no período de 104-101 a.C. Podemos notar que coincidem os levantes de escravos com o período de dissidências no seio da classe dominante. A ditadura de Sila foi no período de 82-79 a.C. Em 74-71 a.C. estourou a Revolta de Espártaco. A dissolução do sistema constitucional de Sila data de 70 a.C. Um ano após o esmagamento do exército espartacano. O movimento dos Graco cobriu um período de 133-121 a.C. Este período engloba, pelo menos, duas importantes revoltas de escravos: a Primeira Revolta da Sicília e a Revolta de Aristônico. A Segunda Revolta da Sicília coincidiu com o momento em que reacendeu o conflito entre reformadores e conservadores, entre os anos de 104 e 100 a.C. Nesse momento, Caio Mário e Lúcio Apuleio Saturnino, o tribuno da plebe de então, estavam à frente da facção dos populares em oposição à velha nobreza, especificamente entre os anos 103 e 100 a.C.

Diante disso, podemos dizer que não é ocasional o fato de coincidirem no tempo as disputas entre as frações da classe dominante e as revoltas escravas. Primeiro, estas disputas são produto das próprias modificações ocorridas naquela sociedade escravista, estando os populares ao lado dos plebeus que perderam suas terras, defendendo a reforma agrária, e a distribuição de cereais à plebe ociosa das cidades para amenizar sua situação de penúria e de outros setores sociais em que tentavam se apoiar na sua disputa política, ao mesmo tempo que são os que mais avançam nas mudanças que gerariam a nova ordem política a exemplo da reforma do exército romano promovida por Caio Mário, que alterava sua forma de recrutamento. Se antes o exército romano era formado por camponeses-cidadãos-soldados, agora passavam a ser recrutados para as suas fileiras os proletários sem bens (capite senci), sendo o seu equipamento fornecido pelo Estado. Esses proletários aderiam ao exército com a promessa de que, quando desmobilizados, receberiam terras para produzir. O seu soldo era garantido pelos generais. A garantia de subsistência desses homens e a possibilidade de adquirirem terras a partir da influência política desses generais, forjaram a lealdade dos soldados em relação ao líder, assentando-se aí as bases do poder unipessoal; e os optimates eram o setor mais conservador, defensor da velha república romana e de suas tradições, lutando para manter o regime de dominação da ordem senatorial e o regime escravista tal como se encontrava. Segundo, as disputas entre optimates e populares era o momento perfeito para que os escravos se rebelassem, assim como os momentos de guerra externa, pois os recursos e energias dos seus senhores não podiam ser usados integralmente contra eles, criando uma oportunidade. Até que, na revolta de Espártaco, a classe dominante romana se unificou para sufocar de vez aquelas rebeliões, utilizando-se de uma forte repressão e do método do terror ao crucificarem 6 mil rebeldes no caminho que vai de Cápua a Roma, servindo de exemplo para os outros escravos que porventura pensassem em se rebelar.

Desse modo, qual foi o papel dessas revoltas na queda da República e no surgimento do Principado? Em primeiro lugar, é verdade que diretamente o Principado surge como produto das lutas no seio da própria classe dominante. É totalmente inconsistente o estabelecimento de uma relação direta das grandes rebeliões de escravos com a queda da República e o surgimento do regime imperial. A última revolta de escravos de grandes dimensões ( a revolta de Espártaco) se encerra em 71 a.C. A vitória de Octávio sobre Marco Antônio na batalha do Áccio foi em 31 a.C., e depois com a morte de Antônio em 30 a.C., Octávio Augusto concentrará em suas mãos plenos poderes e governará de 27 a.C. a 14 d.C. Existe aí, pelo menos, um lapso de tempo de quatro décadas. Além disso, um ano depois da revolta de Espártaco é dissolvido o sistema constitucional de Sula, marcando uma abertura temporária no regime político vigente. Entretanto, se considerarmos que a situação política e social continuou convulsionada ainda um pouco depois e mesmo alguns anos antes da disputa final entre as diversas facções durante a república, como foi o caso da conspiração de Catilina, em 63 a.C., contra o Estado romano, sendo esse um movimento que agregava elementos de diversas camadas sociais, com relativo peso político entre as massas proletárias. Essa situação de crise permanente e a memória de terror das grandes revoltas servis do passado, provavelmente influenciaram, mesmo que de maneira indireta na opção pelo estabelecimento de um governo forte.

A historiografia soviética tendeu a classificar essas revoltas de revoluções. Na historiografia ocidental, mesmo entre os marxistas, optou-se por ver nelas simples rebeliões, que tiveram um grande impacto, é verdade, mas ainda assim ressaltando o seu caráter limitado e episódico, ou no mínimo secundário. Penso que devemos analisar mais profundamente esta questão e tentar trabalhar com os diferentes conceitos de revolução forjados ao longo do século XX, tais como revolução social, revolução política, revolução cultural, revolução passiva. Nesse caso, em especial, trabalharei apenas com os conceitos de revolução social e revolução política, além do conceito de insurreição que é diferente de revolução. De fato, nenhum dos movimentos descritos consistiu numa revolução social. O Império Romano e a escravidão antiga simplesmente desmoronaram. Nenhuma dessas contradições, nenhuma dessas disputas políticas ou lutas sociais levou a construção de uma alternativa societária. Se virmos o conceito de revolução política, no entanto, ele pode ser aplicado, pelo menos, a duas situações: ou na mudança de um regime político, pela derrubada do regime anterior, ou pela tomada do poder político de Estado, com a troca de uma classe por outra no poder, mesmo que sem a mudança do regime econômico-social. Isso efetivamente ocorreu no caso da Primeira Revolta da Sicília, liderada por Euno, mas que terminou com sua derrota militar e retomada do Estado pela antiga classe dominante. Ainda assim, a revolta que mais se aproxima do conceito de revolução política seria esta. No caso da revolta de Espártaco, não foi tomado o poder de Estado, não foi modificado o regime político ou social. Foi, sim, uma luta de massas. Uma luta armada por um objetivo reformista, na falta de um termo mais adequado. Digo isso, porque sequer esses escravos queriam uma reforma no interior do Estado romano, desejando apenas sua liberdade individual. Coisa esta que realmente ocorria no interior da sociedade romana, havia vários libertos em Roma, a alforria era algo possível. Mas nesse caso, não viria de forma individual nem por concessão, mas de forma coletiva e pela luta. Cada escravo teria a sua liberdade individual, é verdade, mas conquistada coletivamente. Nesse caso, podemos definir a revolta de Espártaco como uma insurreição, na tentativa de definir essas revoltas com conceitos mais precisos do ponto de vista do marxismo.

Por fim, é importante localizar também qual setor dos escravos desempenhou o papel de protagonista dessas rebeliões e as razões disso. Exceto em casos excepcionais como o da revolta de Espártaco, em que um grupo de gladiadores mobilizou-se numa revolta, somente um setor dos escravos tinha condições de deflagrar uma revolta armada, que eram os pastores, dotados de uma maior liberdade de movimentos, menos vigiados que os trabalhadores rurais, mas submetidos igualmente aos maus tratos e à dureza do trabalho e que, por isso, reuniam as condições objetivas e subjetivas para a organização de uma verdadeira revolta que, de fato, ocorrera na Sicília. Na fase de consolidação do modo de produção escravista baseado na escravidão-mercadoria em Roma, a revolta comandada por Euno foi o primeiro ensaio das grandes mobilizações de escravos. Mas dizer isso ainda me parece insuficiente. Se por um lado as condições ideais para uma revolta estavam reunidas nos pastores, o fato é que os gladiadores de Cápua também o fizeram. E que escravos compunham a maior parte desses exércitos? Qual era a base desses exércitos? Eram os escravos rurais dos ergástulos, os trabalhadores das lavouras. Desse modo, podemos dizer que escravos que tinham acesso a armas e alguma capacidade de organização e mobilização desempenharam um papel de vanguarda e liderança das insurreições, sendo efetivamente sua camada dirigente. E as tropas eram, em sua maioria, formadas pelos escravos mais explorados e submetidos aos castigos mais cruéis, além de trabalharem em grandes unidades de produção aos milhares, estando bastante concentrados. Já os escravos urbanos estavam mais sujeitos a aderir ao discurso dominante, mais sujeitos ao seu controle ideológico. Sua proximidade maior dos senhores lhes permitiam certos privilégios em relação aos escravos rurais. E o fato de circularem pela cidade e verem vários libertos fazia com que eles nutrissem a esperança de que um dia seriam alforriados pacificamente pelos seus senhores. Assim, as rebeliões de escravos nunca encontraram solo fértil nas cidades.

Conclusão

Essas são as linhas gerais de um debate muito mais amplo e que, sem dúvida, mostra-se interessante e fecundo. Analisar os limites e possibilidades daquelas insurreições sempre ajuda a avançarmos na nossa compreensão sobre a sociedade romana e sobre o modo de produção escravista antigo. Dar voz àqueles que não puderam deixar para nós, em palavras, o seu choro, o seu brado, o seu grito; aqueles que tiveram calada a sua dor e sua alegria, o seu sonho e o seu tormento, a sua esperança e a sua angústia, e que foram pintados e apresentados nesse quadro que foi legado pra nós pelos seus próprios algozes. Às vezes, é preciso ousar e tentar ir além para que as várias regiões de sombra da história se iluminem e que as várias vozes e as várias cores que se transformaram nesse cinza brotem como flores numa primavera de sonhos e de esperança. A ciência histórica tem que ser encarada com o maior rigor científico e toda a seriedade que deve ser conferida ao ofício de historiador. Mas objetividade e neutralidade ou imparcialidade não são coisas que se confundem. Fazer e escrever história implica sempre uma escolha. E foi por essa escolha que enveredei pelo difícil caminho de dizer o não-dito naquilo que está subentendido. Analisando não aquilo que o autor quis de fato que os outros o vissem dizer, mas aquilo que se deixa escapar num ato falho. Falar do ponto de vista dos vencidos, do ponto de vista dos escravos foi a opção por este historiador aqui adotada. Mais do que nunca a teoria nos serve para preencher os espaços vazios, os pontos ocultos, desvendando segredos e iluminando caminhos, revestida, no entanto, de um manto de rigor metodológico para que essa difícil análise científica não escorregue momento algum para a ficção. É ir além do que dizem as fontes para se fazer uma história o menos ficcional possível. Porque, à vezes, um empirismo supostamente científico, um caminhar unicamente pelas vias apontadas diretamente pelos autores das fontes estudadas, é que pode, justamente, deixar-nos mais longe do que podemos imaginar do real, no mais imaginário dos mundos, por não diferenciarmos ideologia e realidade, discurso e realidade objetiva, e presos ao relato deixado pela classe dominante de uma época, que se estudado de maneira descuidada terá dominado não só o mundo do passado, mas a própria visão do passado hoje. Introduzir outras perspectivas, buscar construir uma análise o mais global possível é o objetivo desta pesquisa.

Fontes primárias (seleção):

1 – Fontes disponíveis de forma impressa em Thomas Wiedemann. Greek and Roman Slavery. Diodoro Siculus, com os relatos da revolta da Sicília; Plutarco, em Crasso, que representa um dos principais relatos da revolta de Espártaco; e Apiano, em Guerras civis em Roma, outro importante relato de um contemporâneo da revolta de Espártaco.Baltimore, EUA: The Johns Hopkins Press, 1981.

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